Os barcos vão de saída e juntos, Inch’Allah
No Coliseu, Salvatore Adamo; no CCB, Fausto Bordalo Dias. Em dois dias consecutivos de Outubro, duas propostas musicais irrecusáveis.
Não há mais nada que os ligue a não ser a música (são ambos cantores e compositores) e o calendário: um nasceu em Comiso, na Sicília, Itália, no dia 1 de Novembro de 1943; outro nasceu cinco anos depois, a bordo de um navio, em pleno Oceano Atlântico, vindo a ser registado em Trancoso, Vila Franca das Naves, em 26 de Novembro de 1948. E se nasceram no mesmo mês, vão subir a diferentes palcos lisboetas também num mesmo mês, Outubro, e em dias consecutivos: Salvatore Adamo no Coliseu dos Recreios, no dia 25 (às 21h30), e Fausto Bordalo Dias no CCB no dia seguinte, sexta 26 (às 21h).
É provável que parte do público de Adamo vá também ao concerto de Fausto, e vice-versa. Mas, para lá disso, é a quase coincidência de datas que sugere uma revisitação às respectivas obras: à de Adamo, porque é um dos nomes da chanson que permanece no activo e cujas canções marcaram uma geração (a última vez que actuou em Portugal foi em 2004, no Casino de Espinho); e à de Fausto Bordalo Dias, porque o que ele apresenta no CCB, numa só noite, é A Trilogia, súmula em palco da monumental obra que dedicou à diáspora lusitana, por mares e terras adentro, na procura de novos mundos: Por Este Rio Acima (1982), Crónicas da Terra Ardente (1994) e Em Busca das Montanhas Azuis (2011), três obras-primas, em discos duplos, com lugar cimeiro na música portuguesa.
Adamo, que da Sicília se mudou muito novo com a família para a Bélgica (onde o pai arranjou trabalho nas minas) e daí para o Luxemburgo (onde ganhou um concurso na rádio local), rapidamente se tornou uma voz popular da canção de expressão francesa. Canções como A demain sur la Lune, Tombe la neige, Mes mains sur tes hanches, La nuit, Dolce Paola, Viens ma brune ou Vous permettez, monsieur instalaram-se na memória colectiva e foram grandes êxitos na década de 1960. Mas a par de canções de padrão romântico, Adamo também foi trovador da canção política, criticando situações ou regimes, da Espanha franquista (Manuel) à ex-União Soviética (Vladimir), passando pelas guerras do Líbano ou da Bósnia. A canção Inch’Allah, por exemplo, escreveu-a em reacção à Guerra dos Seis Dias entre Israel e o Egipto, em 1967. Mas alterou-lhe a letra quando Arafat e Rabin apertaram as mãos, em 1993, sob o patrocínio americano de Bill Clinton. Escreveu, esperançoso: “Eis que, ao cabo de tanto ódio, filhos de Ismael e filhos de Israel libertam de uma mão serena uma pomba rumo aos céus.” Mas não durou muito, tal esperança. Rabin foi assassinado em 1995 por um extremista judeu e o que se seguiu não é recomendável. Com que espírito cantará Adamo, agora, o seu Inch’Allah?
Por cá, na época dos grandes navegadores, esse “se Deus quiser” (o Inch’Allah árabe) revelava outros contornos. Tinha pela frente o mar e o desconhecido, e uma sede de abrir portas para novos mundos; pela expansão e pela conquista, é certo, mas também pela curiosidade da descoberta. A partir das raízes da música popular portuguesa, Fausto Bordalo Dias começou há mais de três décadas a sua própria viagem por esses mesmos caminhos, absorvendo o que deles foi deixado em testemunho escrito, da Peregrinação (1614) de Fernão Mendes Pinto à História Trágico-Marítima (1735-36) de Bernardo Gomes de Brito ou às Crónicas da Guiné (1453) de Gomes Eanes de Zurara, passando pelos relatos de Diogo Gomes, Cadamosto, Conde de Ficalho e pelas explorações de Silva Porto (figura tutelar na infância do cantor, quando viveu em Angola). O resultado é uma obra ímpar em toda a história da música portuguesa, pelo fôlego, pela qualidade musical, pelo extraordinário labor poético das canções, num todo genial e comovente. Se ouvir os discos que constituem esta trilogia é, há muito, um dever de todos aqueles que prezam a boa música, assistir a um concerto, com tal programa, de Fausto Bordalo Dias (concertos sempre intensos, mas infelizmente raros) é obrigatório. Por isso, já que os barcos vão de novo de saída, e agora juntos, só nos resta reservar um lugar a bordo.