Plácido Domingo vê o futuro da ópera em Lisboa
O tenor espanhol que virou barítono, um dos cantores líricos mais aplaudidos da actualidade, leva a Lisboa pela primeira vez o seu concurso internacional de ópera. Há 25 anos que anda à procura de jovens talentos e garante que cada vez é mais difícil escolher. A final é no dia 2 de Setembro.
Chega a horas e parece à vontade no foyer do Teatro Nacional de São Carlos. Lembra-se bem da última vez que ali esteve, há quase 30 anos, para interpretar um dos seus papéis de eleição: “Cantei aqui o Otello de Verdi [ópera baseada numa peça de Shakespeare]. É sempre fantástico estar num teatro com mais de 200 anos”, disse Plácido Domingo aos que assistiam à conferência de imprensa de apresentação do Operalia, o concurso mundial de ópera que criou há 25 anos e que ali decorre até 2 de Setembro.
Aos 77 anos, Plácido Domingo, um dos mais celebrados cantores líricos da actualidade, continua a acreditar no poder da música: “Estamos a viver um momento muito bom na ópera. Desde que haja sensibilidade, romantismo, a ópera vai continuar. Nós não podemos viver sem música.”
E é por acreditar que há muito talento disperso pelo mundo capaz de garantir uma renovação permanente, cantores a quem é preciso dar visibilidade e oportunidades de carreira, que o tenor que virou barítono criou esta competição que agora se realiza em Portugal pela primeira vez.
A concurso nesta que é a 26.ª edição estão 40 intérpretes entre os 18 e os 32 anos, oriundos de 24 países, da China ao Brasil, passando por Austrália, Itália, Alemanha, Estados Unidos ou Portugal. Foram escolhidos entre centenas e centenas de candidatos e serão agora submetidos à apreciação de 13 jurados internacionais (Domingo preside ao júri mas não tem direito a voto).
“Queremos que o Operalia dê resultados imediatos”, diz, reconhecendo que esse é um dos motivos pelos quais o concurso conta com “jurados de grande prestígio”: no júri têm assento consultores, responsáveis pela programação e gestores culturais de alguns dos principais palcos de ópera, como a Metropolitan Opera House, em Nova Iorque (Jonathan Friend, administrador artístico), o Teatro Real de Madrid (Joan Matabosch, director artístico) ou a Royal Opera House de Londres (Peter Katona, director de casting).
Só dez participantes chegarão à final do dia 2, em que o próprio Plácido Domingo dirigirá a Orquestra Sinfónica Portuguesa, que este ano festeja o seu 25.º aniversário (os bilhetes estão já à venda).
“Há uma atmosfera única nas competições dedicadas aos talentos emergentes”, diz Patrick Dickie, o produtor e programador de ópera britânico que é desde 2016 o director artístico do São Carlos. “O sentido da descoberta, a alegria da descoberta, é o que alimenta o futuro da ópera.”
Ouvidos bem abertos
A ideia é que estes cantores se apresentem a quem pode vir a contratá-los ou a incluí-los nos seus programas de desenvolvimento de jovens talentos. “Hoje há vozes extraordinárias, a escolha é difícil”, defende Domingo, lembrando que “todos os dias há vencedores do Operalia a cantarem nos grandes teatros” e que eles vêm “de todos os cantos do mundo”. É claro que, havendo mais por onde escolher, acrescentou, a competição é maior.
Se lhe perguntamos qual é a primeira coisa que procura num jovem talento, o espanhol que hoje é o director geral da Ópera de Los Angeles, e que continua a subir ao palco na qualidade de maestro e barítono – acaba de atingir no Festival de Salzburgo um recorde insólito, ao cantar o seu papel n.º 150 numa versão de concerto da ópera Les Pêcheurs de Perles, de Bizet –, fala de uma “combinação de voz e personalidade”.
Quando se está a avaliar um cantor ou cantora em começo de carreira, diz, “é preciso pensar de diferentes maneiras”. “Há cantores que já estão prontos [quando os ouvimos], há outros que têm talento, mesmo que não sejam vencedores, e que é preciso encaminhar para os programas de formação, de modo a que se tornem melhores.” Tanto num caso como noutro, garante, há que ter “uma grande disponibilidade” e “os ouvidos bem abertos”.
"Preciso do palco"
O cantor e maestro espanhol, que está envolvido em várias causas e entidades internacionais (é presidente do Europa Nostra) e é até dono de um restaurante (o Pampano, em Nova Iorque), nunca foi a uma competição como o Operalia – “na minha altura não existiam” – e admira os que conseguem fazê-lo. “Eu não seria capaz. Eu preciso do palco, não de estar em frente a um júri.”
Filho de dois cantores líricos, Plácido Domingo iniciou a sua carreira em 1959, como Borsa (Rigoletto), no Palácio de Belas Artes do México, mas foi a sua experiência na Ópera de Israel que esta manhã evocou em Lisboa para dizer que muito mudou para os jovens cantores nos últimos 50 anos. Lembrando aos jornalistas que a sua carreira arrancou mais a sério num “pequeno teatro” em Telavive, numa época em que os cantores circulavam muito menos do que hoje e adquiriam experiência antes de se estrearem em palcos de grande visibilidade, Domingo fez uma análise sumária das possibilidades e dos desafios que agora se apresentam aos intérpretes mais jovens. Se por um lado é mais fácil começar, porque há muito mais companhias, por outro é mais difícil, porque a concorrência é maior e o público mais exigente: “No passado era suficiente ter uma grande voz porque o público não era tão exigente com a interpretação teatral. Hoje não é assim.” Através dos media, da Internet, os espectadores têm acesso a tudo ou a quase tudo e por isso querem mais e melhor, continuou.
E, para ser melhor, um cantor tem hoje à sua disposição “programas de formação bem estruturados” das grandes casas de ópera, que na altura do jovem Plácido Domingo não existiam. “Muitos jovens cantores não sabem a sorte que têm. Hoje um cantor promissor com 20 e poucos anos é pago para estudar.” Há 40 anos havia que “lutar muito, gastar muito dinheiro e fazer muitos sacrifícios”. Para as mulheres, a tarefa de vingar no mundo da ópera, como noutros, era então mais difícil e continua a sê-lo, reconheceu. “Tenho uma grande admiração pelas mulheres que são cantoras e mães, que andam pelo mundo com os seus bebés.”
Rita Marques, 28 anos, é a soprano portuguesa em competição (o outro português é o tenor Luís Gomes) e está já habituada a lidar com as dificuldades de conciliar a vida familiar com a artística: “Há muitas viagens a fazer, muitas horas de estudo solitário, muitos momentos em que precisamos estar connosco mesmos. Consequentemente, há sempre festas de aniversário que se perdem ou que são comemoradas à distância, saídas entre amigos que ficam para mais tarde... Mas quando queremos, tudo se conjuga e tudo é possível”, diz ao PÚBLICO já depois de ter subido ao palco na primeira das sessões dos quartos-de-final para cantar um programa que incluía árias de Mozart e Delibes.
Marques, que no ano passado cantou com Plácido Domingo no espectáculo que o espanhol deu no Meo Arena, em Lisboa, diz ainda que, num concurso desta dimensão, o que importa não é concentrar esforços no resultado, mas no “desfrutar ao máximo da experiência dupla de estar no Operalia e de cantar no palco do São Carlos”. Ter o maestro e intérprete espanhol na sala não é intimidante porque “Plácido domingo é uma pessoa de uma generosidade enorme e que transmite sempre boa energia”, mas, admite, aumenta a responsabilidade.
Já no final da conferência, Plácido Domingo voltou a falar do “seu” Otello – talvez o papel mais marcante da sua carreira – para dizer que nunca poderia regressar ao São Carlos com esta ópera de Verdi. Já não canta papéis de tenor (desde 2009, segundo o diário espanhol ABC), e, como barítono, ser-lhe-ia impossível assumir o de Iago, o principal opositor do protagonista: “Eu nunca, nunca, poderia trair Otello.”