Mais tarde ou mais cedo, os insectos vão chegar-lhe ao prato
Temperados ao estilo asiático, incorporados em barras energéticas e bolachas ou integrados em rações para animais de consumo. A chegada dos insectos ao prato é algo a que o Ocidente não vai escapar por muito tempo. Depois do alerta deixado pela FAO em 2013 — que viu nos insectos uma fonte alternativa de proteína, mais sustentável do que a carne ou o peixe —, a legislação europeia começa a abrir-se a esta possibilidade e o sector não pára de crescer. Em Portugal, há empresas prontas a entrar no mercado. Mas as dúvidas são mais do que as certezas.
O cheiro é o primeiro impacto. Não necessariamente mau, apenas intenso. Há um odor a humidade. A sala, forrada a placas de madeira e lençóis de plástico, foi transformada numa estufa, com caixas de plástico vermelho empilhadas em blocos à altura do peito. O que à primeira vista poderia parecer uma zona de armazém inerte é, na verdade, uma colónia viva. Muito viva. Em cada caixa, entre aparas de farelos e cenouras, remexem-se dezenas de Tenebrio molitor nos diferentes estágios de crescimento, de larvas a pequenos besouros-pretos. Desde meados de 2016 que Guilherme Pereira e Sara Martins criam insectos desta espécie para depois os transformarem em farinha. A partir dela, estão a desenvolver produtos alimentares para consumo humano: barras energéticas, pães, massas, bases de pizza.
Há cinco anos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) lançava definitivamente o debate sobre o tema, ao publicar um extenso relatório onde defendia a produção e o consumo de insectos como uma fonte alternativa de proteína, mais sustentável do que a carne ou o peixe. Igualmente nutritivos, os insectos revelavam ser mais eficientes (em média, dois quilos de alimento chegam para produzir um quilo de insectos, enquanto no gado bovino são necessários oito quilos, por exemplo), produziam menos gases com efeito de estufa, era necessário menos água e menos área de produção e podiam ainda ser alimentados com subprodutos alimentares, fomentando a diminuição do desperdício e a economia circular.
A 1 de Janeiro deste ano entrou em vigor a directiva que torna a produção e comercialização de produtos à base de insectos para alimentação humana uma possibilidade na Europa. A integração de insectos nas rações para peixes produzidos em aquacultura também já foi autorizada. E a expectativa é que o mesmo aconteça para a produção de aves no próximo ano. E à medida que a legislação vai sendo aprovada, a chegada de insectos aos pratos ocidentais dos humanos começa a tornar-se uma realidade. É um sector ainda pequeno, a tentar perceber como vencer o estigma e produzir em massa. Mas em crescente dinâmica.
Este ano, a retalhista alemã Metro AG quis sentir o pulso ao sector com a venda de massas enriquecidas com farinha de insecto durante três meses numa loja em Düsseldorf. E os supermercados espanhóis da cadeia francesa Carrefour lançaram uma gama de dez produtos feitos pela Jimini’s, que vão desde barras energéticas a granolas. De acordo com um relatório publicado pela Arcluster em Abril, o mercado global de insectos edíveis (comestíveis) deverá atingir 1,54 mil milhões de dólares (1,3 mil milhões de euros) no prazo de cinco anos. Já o mercado da produção de insectos para rações animais, a dar os primeiros passos a nível mundial, deverá chegar aos mil milhões de dólares em 2022 (cerca de 900 milhões de euros), apontava a mesma consultora em 2017. Um estudo de mercado semelhante feito pela Meticulous Research é, no entanto, mais conservador nas estimativas: prevê que todo o sector não ultrapasse 1,18 mil milhões de dólares (mil milhões de euros) até 2023, incluindo no relatório diferentes aplicações, do consumo humano às rações animais, passando pela cosmética e farmacêutica.
Em Portugal, ainda são mais as intenções e as experiências do que as empresas a fazer efectivamente caminho no sector, pelo menos publicamente. Mas já está criada a Associação Portuguesa de Produtores e Transformadores de Insectos — Portugal Insect, fundada em Maio por três empresas (Portugal Bugs, EntoGreen e Nutrix). Objectivo: “Congregar este sector em crescimento e torná-lo uma realidade em Portugal”.
Uma incógnita legislativa
Até aceitar o desafio de um professor no último ano do curso de Engenharia Alimentar, Guilherme Pereira nunca tinha provado insectos. Desde pequeno que ouvia o pai dizer que “iam ser o futuro”. Mas, para ele, era uma realidade confinada ao continente asiático. “Sabia que se comia insectos no Oriente, mas não tinha tão presente que já estavam a criá-los no mercado ocidental”, admite. Quando lhes foi proposto desenvolverem uma barra proteica à base de farinha de insecto como projecto final de curso, Guilherme foi o único na turma a aceitar. Os colegas acharam-no “um bocado tolo”, diz. Mas ele viu ali uma ideia “extraordinária” e uma oportunidade de se lançar no empreendedorismo com uma “coisa diferente”.
Finalizada a licenciatura na Universidade do Porto, Guilherme fundou a Portugal Bugs com a namorada, Sara Martins. “Mandámos vir um quilo de tenébrios e arrancámos a produção na minha garagem”, recorda ao P2. “Coloquei-os numa caixinha, com uma lâmpada daquelas que as pessoas usam para aquecer as galinhas no Inverno. De repente, aquilo deu um salto muito grande: num dia tínhamos muitas larvas, no dia a seguir já tínhamos um monte de pulpas, depois besouros por todo o lado na caixa”, ri-se. O primeiro impacto para quem se lança na produção é quase sempre a “descoberta de um mundo novo”. Por muito que se leia ou se tente pesquisar na Internet, a informação disponível é muito pouca, garantem. Cada passo do processo é aprendido sobretudo com a experiência. Um ano e meio depois, a produção da Portugal Bugs saiu da garagem para uma ala adaptada de uma pequena moradia em Perafita, no concelho de Matosinhos. São agora 200 caixas, com capacidade para produzir entre 35 e 40kg por mês. Mas o objectivo é chegar aos 100kg/mês, pelo menos, até ao final do ano. E, em 2019, “avançar com uma coisa em larga escala”.
Para o sucesso dos planos, no entanto, falta um pormenor decisivo: que se feche definitivamente o hiato legislativo. O regulamento aprovado pela União Europeia em 2015 introduziu os insectos na lista de “novos alimentos” autorizados para consumo humano, abrindo caminho à comercialização de produtos à base deste ingrediente no mercado comunitário. Com a entrada em vigor da nova directiva, a 1 de Janeiro deste ano, arrancou o processo de avaliação e autorização de cada espécie por parte da Autoridade de Segurança Alimentar Europeia (EFSA). Até então, apenas seis países (Reino Unido, Holanda, Dinamarca, Finlândia, Bélgica e Áustria) faziam uma leitura mais permissiva da legislação europeia anterior que, ao proibir especificamente a utilização de “partes de insectos”, abria espaço a produtos feitos com o animal inteiro (desidratado e condimentado ao estilo asiático ou reduzido a farinha e aplicado em produtos transformados). Noutros países, a lei era omissa, não permitindo nem proibindo (caso de Portugal). Este ano é, por isso, considerado um período transitório: quem já estava no mercado pode continuar fazê-lo até ao final do ano.
A partir daí, é necessário provar para cada espécie de insecto que os métodos de produção e de transformação, assim como os produtos finais, são seguros para o consumo humano. As candidaturas entregues pelas empresas têm de pormenorizar técnicas e apresentar diversas análises, como exames toxicológicos ou alergénicos. Cada dossier custa “acima dos muitos mil euros”, um valor incomportável para a start-up portuguesa. “É mau porque não podemos colocar o nosso produto no mercado, mas assim certificarmo-nos de que aquilo que é comercializado na Europa não vai fazer mal a ninguém.” Na Portugal Bugs, o objectivo é serem “os segundos primeiros”. Em teoria, a partir do momento em que uma candidatura for aprovada, todas as empresas que se rejam por um processo semelhante ficam igualmente autorizadas a comercializar. Mas é aqui que começam as incógnitas. Os procedimentos têm de ser exactamente os mesmos? Como será feito o posterior licenciamento das unidades de produção, entregue às autoridades de cada país? Quanto tempo vai demorar todo o processo?
“Isto não é apenas novo para o consumidor, é novo para toda a gente”, admite Guilherme. Numa perspectiva optimista, o empresário espera colocar os primeiros produtos no mercado no início do próximo ano. O ângulo mais realista empurra-o para um horizonte que não arrisca nomear. “Só vamos ter uma ideia mais concreta quando algum dossier for aprovado. E há previsões que apontam para que isso só aconteça no final de 2019.” É neste campo que a associação Portugal Insect tem concentrado esforços, procurando criar uma ligação estreita com as entidades governamentais que regulam estes sectores. No final de Setembro, vai ser publicado um Manual de Boas Práticas na Produção, Transformação e Utilização de Insectos na Alimentação Animal, desenvolvido pela Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), em parceria com a associação. Há planos para criar um documento semelhante para a alimentação humana em breve, assim como uma lista de “perguntas frequentes” para ajudar quem quer entrar no sector.
Da garagem à fábrica
Chamam-lhe “vale da morte”. Quase todas as pequenas empresas atravessam-no, desde o desenvolvimento da ideia ao equilíbrio da balança financeira. Mas adicionou-se um sector inovador, ainda com poucas provas de retorno financeiro capazes de atrair grandes investidores e que enfrenta a resistência do consumidor, e a travessia pode tornar-se penosa. Muitas não sobrevivem. O irmão de Daniel Murta, por exemplo, acabou por perder o interesse, mas o professor de Medicina Veterinária resiste. Desde que foi fundada, em 2014, a Entogreen já conheceu várias vidas. Começou por produzir tenébrios para alimentação humana, foi depois abrindo espaço à alimentação animal até se focar exclusivamente nesta, trocando os tenébrios pela mosca soldado-negro, já em parceria com Rui Nunes, que integrou, entretanto, a empresa.
O novo ciclo permite criar três produtos distintos. “Recebemos os subprodutos vegetais, as larvas consomem-nos em cerca de 15 dias e vão produzir um substrato orgânico que pode ser utilizado como fertilizante para os solos”, conta Daniel Murta. “As larvas são depois processadas e é separada a parte proteica e o óleo.” Enquanto o primeiro tem como destino as produções agrícolas, os derivados de insecto podem ser integrados nas rações para animais (actualmente apenas peixes em aquacultura ou animais de companhia, cuja alimentação com insectos ou derivados sempre foi permitida). No entanto, a Entogreen ainda não colocou um único produto à venda. Para conseguir entrar num mundo de gigantes como é a formulação de rações para a aquacultura — actualmente feitas essencialmente à base de farinhas de peixe e de soja —, é necessário exponenciar a capacidade produtiva.
“O próximo passo é passar de uma tonelada de larva viva por mês para 500 toneladas”, aponta Daniel Murta. “Há um ano que estamos activamente à procura de financiamento para construir uma fábrica que valha a pena.” Na produção para alimentação animal, diz, a escala tem de subir ao nível dos “milhares de toneladas por ano”. Ao passo que, neste momento, na produção para consumo humano, “duas toneladas já não seria mau”. Daniel está confiante que surjam investidores até ao final do ano e que a fábrica comece a ser construída em Janeiro de 2019. O plano: erguer um edifício com cerca de quatro mil metros quadrados em Santarém (onde já têm parcerias com outras entidades), capacidade para empregar entre 60 e 70 trabalhadores e produzir, por mês, 700 toneladas de fertilizante, 214 toneladas de concentrado proteico e 42 toneladas de óleo de insecto. “Esperamos entrar no mercado no primeiro trimestre de 2020.”
Até lá, e desde a sua fundação, a Entogreen vive da “boa vontade dos sócios”. É maioritariamente suportada pelas economias pessoais e familiares dos dois empresários, apoiada por projectos de investigação e prémios ganhos no sector da inovação. A colónia é mantida em valores mínimos e só aumentam a produção quando existem ensaios a decorrer no âmbito das várias parcerias estabelecidas na área de Investigação e Desenvolvimento (com o IPMA, a Universidade de Aveiro, o Instituto Politécnico de Leiria ou o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, onde estão sediados, no pólo de Santarém). “Eu mantenho o vencimento como professor universitário na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona, enquanto o Rui está nisto a 100%.” A situação é semelhante na Portugal Bugs: Guilherme concilia o trabalho com as aulas de karaté que dá diariamente; Sara continua empregada numa empresa ligada à indústria alimentar.
Apenas “muito pó”?
Desde a criação da Portugal Insect, a associação “conseguiu congregar cerca de nove potenciais associados, alguns ainda apenas projectos empresariais”, revela Daniel Murta. José Gonçalves, presidente da Nutrix, empresa de Leiria produtora de framboesas biológicas, é um dos fundadores e membros da direcção da associação. Terá em curso a produção de farinhas de larvas de grilo para alimentação humana em fase experimental. Mas declinou o pedido de entrevista do P2 por considerar “ainda prematuro” falar sobre o seu negócio.
Segundo Guilherme Pereira, há alguns anos que existem em Portugal vários produtores de insectos para a alimentação de animais exóticos e de estimação (algumas aves e répteis, por exemplo). O mais conhecido é a Aki à Bixo que tem como clientes o Jardim Zoológico e o Oceanário de Lisboa, entre outros. Depois, diz, há quem tenha mostrado interesse em arrancar com outros projectos, quem tenha feito testes e experiências ou esteja a produzir nas garagens. Mas empresas que tenham “200 ou 300 tabuleiros” de insectos, que “trabalhem diariamente para aumentar as produções” e com vontade de “industrializar”, ainda “não temos muitas” em Portugal.
“Tenho um bocado de receio de que possamos criar uma indústria como a europeia, que é muito pó, muito pó”, critica o empresário. Tanto Guilherme Pereira como Daniel Murta acusam algumas empresas internacionais de tentarem “ofuscar um bocadinho tudo o resto que acontece” ao anunciarem “terem isto, aquilo e o outro” e “muitas vezes não ser real ou completamente verdade”. “É muito triste porque é um sector novo e começa a tornar-se opaco”, critica Daniel.
Foi na última conferência da International Platform of Insects for Food and Feed (IPIFF), uma organização não governamental que representa o sector a nível europeu, que Daniel Murta, Rui Nunes, Guilherme Pereira e José Gonçalves se conheceram e decidiram criar a associação portuguesa. E foi de lá que vieram com a seguinte sensação: “Se calhar, era capaz de haver aqui um mercado fantasma e, por causa dele, muita informação retida.” “Tínhamos a ideia de que Portugal estava muito atrás daquilo que era a indústria internacional, mas na conferência fomos analisando o que se passava, falando com algumas pessoas e a conclusão a que chegámos é que estamos quase todos no mesmo barco: ainda a ver como é que isto se produz de forma automatizada e da melhor maneira”, conta Guilherme.
No último ano e meio, foram anunciados alguns dos maiores investimentos no sector, não só na Europa, como nos Estados Unidos, no Canadá e na África do Sul. A maioria está ligada à produção de insectos para a alimentação animal. O objectivo é produzir em grande escala e entrar no mercado das rações para aquacultura, onde existe uma grande procura por fontes proteicas alternativas à farinha de peixe.
A sul-africana AgriProtein, por exemplo, angariou 17,5 milhões de dólares (15 milhões de euros) numa ronda de investimento no final de 2016. Terá inaugurado uma unidade fabril de grande escala um ano depois. Já a holandesa Protix terá recebido um investimento de 45 mil euros da Buhler, gigante suíça especializada na construção de unidades fabris para moagem e processamento de farinhas e alimentos, para erguerem uma nova fábrica em conjunto. No mesmo ano, a Protix tinha adquirido a Fair Insects, um pequeno consórcio de produtores de insectos desidratados, piscando o olho ao mercado do consumo humano. Também a francesa Ynsect e a espanhola MealFood Europe garantem ter unidades de produção industrial a funcionar. A empresa de Salamanca está, no entanto, fechada a curiosos. “É uma questão de segredo industrial”, disse ao El Mundo no final do ano passado Adriana Casillas, directora da empresa e vice-presidente da IPIFF.
Actualmente, esta organização europeia conta com 42 membros, provenientes de 14 países, entre empresas dedicadas aos diferentes sectores de produção e transformação de insectos e alguns centros de investigação. Apesar do acelerado crescimento verificado nos últimos anos, o sector é ainda pequeno no mercado ocidental e a comercialização de produtos incipiente. No entanto, Guilherme Pereira acredita que o consumo de insectos é algo a que “não vamos conseguir escapar por muito tempo”.