Assombrados pelo sexo
A assombração do sexo e o seu recalcamento continuam a suscitar manifestações de hipocrisia e negação no seio do poder político e religioso.
Eis um tema tão velho como o mundo e que regressa regularmente ao primeiro plano das notícias, envolvendo agora os protagonistas mais desencontrados, como o Papa Francisco e Donald Trump. Mas há coincidências sintomáticas. Na sua visita à Irlanda – país conhecido pelo seu catolicismo atávico que, nos últimos anos, conheceu uma verdadeira revolução em matéria de costumes, ao referendar o direito ao aborto depois de reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo e tendo actualmente como primeiro-ministro um homossexual assumido – o Papa foi de novo confrontado com o fantasma que mais o tem perseguido nos últimos tempos e está já na origem do maior abalo sofrido pelo seu pontificado: o da pedofilia na Igreja. Ora, à Irlanda, para além dos casos internos, chegam sobretudo, pelo seu número e afinidades de raiz nacional, os ecos transatlânticos dos numerosos (e longamente recalcados) escândalos pedófilos pondo em causa a hierarquia católica da Pensilvânia, na sequência do que acontecera recentemente no Chile. Por duas vezes, Francisco vê-se empurrado contra a parede.
O velho puritanismo católico irlandês cruza-se culturalmente com o puritanismo protestante americano nos casos que agora ameaçam inesperadamente a presidência Trump – para além da ingerência russa na campanha eleitoral – como outrora o caso de Monica Lewinsky abalara a presidência Clinton. Aqui não se trata, é claro, de casos de pedofilia mas de mero tráfico sexual que envolvem antigos colaboradores de Trump, acusados de terem pago a duas mulheres para silenciarem as suas antigas relações com o Presidente. Colaboradores esses dispostos a depor perante a Justiça em troca de um aligeiramento das suas penas noutros negócios escuros, o que tem provocado um nervosismo crescente de Trump face à hipótese – embora ainda remota – de um impeachment.
A assombração do sexo e o seu recalcamento continuam a suscitar manifestações de hipocrisia e negação no seio do poder político e religioso. O que não espanta no caso de Trump – conhecida que é a baixa dimensão moral da personagem – mas se mostra chocante no caso de Francisco – protagonista de um esforço verdadeiramente notável de humanização da Igreja Católica. De facto, o Papa levou anos a admitir aquilo que era já conhecido há décadas, começando mesmo por negar as evidências clamorosas do que acontecera no Chile (provocando assim uma revolta entre a comunidade católica chilena e, posteriormente, a demissão em massa dos bispos que haviam persistido em ocultar o escândalo). Só que não chega de todo penitenciar-se, tendo em conta a insuportável gravidade dos crimes pedófilos cometidos por clérigos em flagrante abuso do seu poder sobre vítimas inocentes e indefesas. E não chega, sobretudo se pensarmos que esses actos nauseabundos beneficiaram mesmo da cumplicidade directa ou indirecta de membros do governo da Igreja, essa nefasta Cúria Romana que Francisco não soube e/ou não pôde renovar de alto a baixo. Nunca como hoje o divórcio entre os crentes e o poder eclesiástico foi tão profundo, a ponto de assistirmos, apesar do esforço redentor de Francisco, à iminência de um sismo nas profundezas da Igreja.
Já não é possível mascarar por mais tempo a evidência de que a pedofilia constitui a expressão mais perversa da longa relação doentia da Igreja Católica com o sexo – e que, como tem sido lembrado por tantas vozes, o celibato dos padres constitui um dos factores decisivos dessa doença. Daí que a revitalização e a própria sobrevivência da Igreja dependam tão fortemente da sua libertação desse fantasma. Tal como a transparência e o carácter igualitário dos relacionamentos sexuais – sem tráficos, submissões ou quaisquer comércios sórdidos – são também fundamentais para a saúde das sociedades e o exercício do poder político.