Papa falou dos "crimes repugnantes" dos abusos e Varadkar pediu-lhe que passe da "palavra à acção"
No primeiro dia da visita à Irlanda, Francisco reconheceu “falhanço das autoridades eclesiásticas” relativamente aos casos de pedofilia neste país. Varadkar falou nos aspectos "negros" do catolicismo.
O Papa Francisco chegou à Irlanda carregando o peso do escândalo de abusos sexuais que tem abalado a Igreja Católica neste país e no mundo. No primeiro dia da visita voltou a afirmar que se sente “envergonhado” e recebeu avisos do primeiro-ministro irlandês, Leo Varakdar, que lhe pediu para passar das “palavras à acção”.
Apesar de ter reconhecido o “falhanço das autoridades eclesiásticas”, muitos esperavam que Francisco fosse mais longe na abordagem aos casos de pedofilia.
“O falhanço das autoridades eclesiásticas — bispos, superiores religiosos, sacerdotes e outros — em lidar adequadamente com estes crimes repugnantes causou indignação justa e continua a ser uma fonte de dor e vergonha para a comunidade católica. Eu próprio partilho esses sentimentos”, disse Francisco na conferência de imprensa que se seguiu à reunião com Varadkar. “Não posso deixar de reconhecer o grave escândalo causado na Irlanda pelos abusos de jovens por membros da Igreja encarregues da sua protecção e educação”, acrescentou.
O líder da Igreja Católica abordou assim o tema que inevitavelmente marca a sua viagem de dois a terras irlandesas, a primeira de um Papa em 39 anos. Para além das investigações relativas a casos de abusos sexuais na Igreja irlandesa, e de um esquema de encobrimento destes crimes, há quatro anos foi também encontrada uma vala comum com restos mortais de centenas de bebés em Tuam em terrenos de uma instituição católica para mães solteiras (no domingo, Francisco celebrará uma missa nesta cidade).
Estes casos, para além de uma investigação ao trabalho escravo de mulheres nas Lavandarias de Maria Madalena, contribuiu para o acentuado declínio da Igreja Católica na Irlanda, país onde o catolicismo sempre desempenhou um influente papel em todas as esferas políticas e sociais.
Depois de elogiar o papel da Igreja na história irlandesa, Leo Varadkar abordou aquilo que considerou serem os “aspectos negros da história do catolicismo”. “As Lavandarias de Maria Madalena, casa de mães e bebés, escolas industriais, adopções ilegais, abusos de crianças por clérigos, são manchas no nosso Estado, na nossa sociedade e também na Igreja Católica”, disse, apelando a acções concretas.
“As feridas ainda estão abertas e há muito a fazer para trazer justiça, verdade e cura para as vítimas e sobreviventes. Santo Padre, peço que use o seu ministério e influência para garantir que isso seja feito aqui na Irlanda e em todo o mundo. Devemos assegurar-nos de que se passa das palavras à acção”, afirmou o primeiro-ministro irlandês.
Varadkar, que é o primeiro chefe de Governo assumidamente homossexual na Irlanda, abordou ainda as alterações da legislação nos últimos anos que tiraram o país do domínio da influência católica nas instituições, nomeadamente o divórcio, o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo: “Votámos no nosso Parlamento e em referendo para modernizar as nossas leis — perceber que o casamento nem sempre resulta, que as mulheres devem tomar as suas próprias decisões, e que as famílias chegam de várias formas, incluindo aquelas chefiadas por um avô, pai solteiro ou pais do mesmo sexo que são divorciados e recasados”.
O governante lançou um aviso ao Papa: “Só pode haver tolerância zero para aqueles que abusam de crianças e para quem facilita esse abuso”.
O discurso do Papa não deixou todos satisfeitos. Colm O’Goman, por exemplo, que foi vítima de abusos sexuais por parte de clérigos, disse aos jornalistas que a declaração “foi uma oportunidade incrivelmente perdida”, acrescentando que Francisco não mostrou nada de concreto para fazer frente ao encobrimento dos casos de pedofilia na Igreja.
No El País, o jornalista e escritor Juan Arias, que foi correspondente do jornal espanhol no Vaticano, diz que “Francisco esgotou todos os substantivos para denunciar estes delitos da Igreja contra os menores, porque sente, diz, ‘vergonha e arrependimento’”. Mas “bastará isso?”, questiona. Martin Bashir, especialista em assuntos religiosos da BBC, diz que o “Papa expressou palavras de arrependimento e remorso — como fez em múltiplas ocasiões no passado — mas não ofereceu soluções específicas”. “E isso continua a ser o desafio”.
Tem sido notória a perda de influência da Igreja Católica na Irlanda. Isso fez-se sentir neste sábado. Depois de deixar a Pro-Catedral de Santa Maria em Dublin, onde rezou pelas vítimas de abusos e abençoou recém-casados, Francisco realizou um trajecto pela capital irlandesa no papamóvel onde foi recebido por centenas de milhares de pessoas. Apesar de ainda não serem conhecidos números concretos, a multidão que recebeu o Sumo Pontífice foi consideravelmente menor do que os quase três milhões que saudaram João Paulo II em 1979.
O percurso foi pautado por alguns protestos pelo encobrimento dos crimes dos clérigos. Numa das manifestações foram dispostos sapatos de crianças no chão, simbolizando vítimas, e havia cartazes pedindo acção ou dizendo “Tenha vergonha”.
Durante a tarde, Francisco encontrou-se com oito vítimas de abusos sexuais por clérigos durante uma hora e meia. Estas entregaram ao Papa uma carta em inglês e espanhol, informando que pelo menos 100 mil mães foram separadas dos seus filhos de forma forçada na Irlanda, pedindo que o Vaticano ajude a reunir estas famílias.
Francisco deu por terminado o dia ao deslocar-se ao Croke Park, onde se realizou o festival das famílias que contou com a presença de cerca de 80 mil pessoas.