O desejo de mudança e de revolução em Seun Kuti
Filho mais novo de Fela, Seun Kuti é herdeiro do afrobeat mais contestatário e em que o calor da música apela à união popular contra a corrupção e a manipulação pelas elites. Traz esta sexta-feira a Braga (e em Setembro a Lisboa), Black Times, o seu último álbum.
Numa das suas frequentes media chats em que respondia a perguntas de jornalistas por si seleccionados e que se prolongaram durante a campanha presidencial em que tentava a sua reeleição, em Fevereiro de 2015, o Presidente nigeriano Goodluck Jonathan abordou o tema sensível da corrupção no governo munindo-se de uma estranha parábola. Segundo então relatava Abimbola Ojenike no site Sahara Reporters, não valia a pena esmifrar a memória e queimar as pestanas à procura de semelhante ensinamento nas páginas da Bíblia. A imagem transmitida por Jonathan de que a relação entre um governante e a corrupção não era diferente daquela estabelecida entre uma cabra e o inhame vincava a ideia de que era simplesmente inevitável deitar a mão a dinheiro indevido. Permanecer incorrupto seria, assim, uma mera questão de tempo, uma temporária condição acidental de quem ainda não tinha sido confrontado com a ocasião certa.
Para alguém que lutava por ser reeleito, não seria fácil encontrar forma mais eficaz e certeira de esfaquear a confiança que antes lhe fora depositada para gerir os destinos do país e dos fundos públicos. “Surpreendeu-me que o Presidente comparasse os políticos e a si mesmo a cabras”, ri-se o músico Seun Kuti – a derrota de Goodluck para Muhammadu Buhari, com uma firme campanha anti-corrupção, talvez não tenha sido tão surpreendente. “Mas foi mesmo assim.” E foi a deixa perfeita para o filho mais novo do criador do afrobeat, Fela Kuti, baptizar o tema final do seu novo álbum, Black Times. Theory of goat and yam “refere-se não apenas ao Presidente, mas a toda a classe política nigeriana”, diz o músico, e é um vigoroso exercício de afrobeat, como se imagina, que encerra um disco intensamente empenhado num discurso político e denunciador de um sistema que Seun entende controlar a humanidade e, em particular, aqueles que são provenientes da terra-mãe – ou seja, África.
Black Times, disco que o nigeriano apresenta a 24 de Agosto no Theatro Circo, em Braga (integrado no programa Máquina de Gelados), e a 14 de Setembro no Festival Nova Batida, em Lisboa, não é um caso isolado na discografia de Seun Kuti. Pelas suas contas, não há um só álbum a que tenha emprestado o nome que não carregasse essa clara marca política, contestatária e revolucionária que cresceu a percepcionar como indissociável da figura do seu pai. A história anti-corrupção, anti-imperialismo e pró-pan-africanismo de Fela é conhecida e Seun recebeu-a por inteiro. Em Black Times, no entanto, o músico alarga o seu discurso, pensa essa terra-mãe como um território que abarca cada canto do planeta onde vivam homens e mulheres explorados, oprimidos e escravizados. “Percebo os sacrifícios que continuam a limitar as nossas existências e as nossas formas de expressão”, diz, “e tenho presente a necessidade de não trairmos os nossos antepassados e os seus ensinamentos, aquilo que sacrificaram antes de nós e a procura por levar o nosso povo a progredir. Mas agora estou a pensar não apenas nos negros, mas nas classes trabalhadoras e nos pobres de todo o mundo.”
A música não é apenas o meio usado por Seun Kuti para servir de arma de arremesso contra aquelas que identifica como as zonas gangrenadas das sociedades actuais. A música, para ser mais correcto, não fica a olhar de fora e a partir de um posto altivo para todas as outras áreas corrompidas e colocadas ao serviço do capital. E é por isso que este tipo de discussão que defende através da arte, na sua opinião, não está a ser falhado pela música, mas sim pelos músicos. “Na generalidade, as pessoas querem ser validadas pelo sistema”, afirma em jeito de diagnóstico. “Há uma narrativa elitista do que significa o sucesso e muitos querem fazer parte dessa narrativa. É mais uma das vertentes controladas pelas elites. Se queremos ter o que eles têm, somos forçados a adoptar a ideologia deles.”
Por isso, defende, “a indústria musical está sob ataque do poder, das grandes corporações que controlam este mundo”. E a sua teoria é a de que a tecnologia que esvaziou as receitas provenientes das vendas de discos foi uma manobra cuidadosamente orquestrada para roubar uma fonte de independência fundamental para os músicos. “Agora, muitos artistas precisam de patrocínios das grandes marcas para substituir a venda de álbuns”, algo que, não é preciso um doutoramento em matemática avançada para concluir, condiciona o discurso a adoptar. A partir do momento em que um artista fica refém de patrocinadores tem de manter a boca longe de polémicas ou posições públicas que afectem a imagem de quem lhe cuida das transferências bancárias. “Só que a música é demasiado poderosa para ser parada por questões materiais”, contrapõe Seun Kuti.
Nada de novo
A mensagem incendiária transportada pelo afrobeat sempre foi de enorme importância para os músicos da banda Egypt ‘80 – a segunda formação histórica a acompanhar Fela Kuti, depois dos Africa ‘70. Seun começou a subir para palco com Fela aos oito anos e, aos poucos, passou a caber-lhe preparar o terreno para a entrada em cena da grande estrela da música nigeriana. “Eu sabia as letras e cantava um ou dois temas antes de o meu pai aparecer”, recorda. Aos 14 anos – Seun tem hoje 35 –, com a morte de Fela, passou a liderar os Egypt ‘80, com quem continua a tocar, comandando todos aqueles que ficaram não apenas pela devoção ao seu pai, mas também pela crença profunda no lastro político deixado pelas composições, pelos discos e pelos espectáculos assinados pelos Kuti.
Last Revolutionary, tema com que arranca Black Times, segue esse mesmo modelo de apelo à consciência e à revolta colectiva, e cita líderes políticos que haviam já inspirado Fela, como Thomas Sankara e Patrice Lumumba, com Seun a acrescentar o seu pai a essa nomeação de heróis que se aplicaram na defesa da justiça e da união africana. Questionado se sente ou não haver uma escassez de líderes políticos actuais com o mesmo perfil inspirador, Seun não hesita em mencionar o sul-africano Julius Malema, dos Economic Freedom Fighters, como um dos políticos promissores a poder deixar uma marca nos destinos dos países do continente.
“O problema que temos em África”, aponta o músico, “é que durante 30 anos houve uma agressão continuada por parte da Europa e da América contra os nossos políticos, os nossos potenciais líderes a sério – que foram assassinados, exilados, humilhados. Ao mesmo tempo, Europa e América apoiavam regimes militares no continente e esses regimes, como sabemos, excluem as pessoas da política.” A consequência, acredita, é que os cidadãos não tiveram uma real possibilidade de se politizarem, situação que só agora entende estar a ser corrigida e permite surgir uma nova geração de líderes nos quais Seun detecta uma real vontade de “parar os imperalismos eurocêntricos e arábicos que invadiram os políticos africanos de hoje”. O futuro, assegura, está a caminho e chamar-se-á “pan-africanismo”.
Ainda assim, Seun Kuti recusa-se a falar de quaisquer sinais prometedores de mudança colectiva. E justifica-se com uma argumentação simples: “Não acredito em esperança, acredito em desejo e vontade.” Quer isto dizer que não anda à procura de se convencer nem de convencer ninguém. E que não quer ficar sentado a observar com binóculos os milagres anunciados ou sugeridos pelo horizonte. A sua resposta é a da acção e a de cada um cumprir o seu dever. “Queremos fazer aquilo que nos cabe ou queremos correr de um lado para o outro como crianças pequenas para o resto das nossas vidas?” A não procura implica que só percorrendo o seu caminho, fazendo a sua parte, descubra aliados pelo caminho. E é quando encontra essas pessoas, com vontade de mudança também, e que estão no seu trilho que Seun vê o seu alento fortalecido.
Em termos estritamente musicais, Seun Kuti concebe as suas composições como resultantes de uma grande aliança. “É música da terra-mãe”, diz, recusando qualquer tentação de se lhe atribuir uma maior pendor de linguagens como o hip-hop na sua versão particular do afrobeat. “Se ouvires o Authority stealing, na segunda estrofe o meu pai já está a fazer rap numa canção”, exemplifica. Mas a sua linha de pensamento vai muito mais fundo do que isso. A sua argumentação passa por defender que não há invenção alguma, nem nada de novo a ser trazido para afrobeat, hip-hop, soul, r&b, blues ou jazz. “Isso é tudo uma só música”, resume. “E é a música dos povos separados, deslocados e oprimidos. Quando são oprimidos em África fazem afrobeat, quanto estão isolados na Jamaica fazem reggae, se estão na América do Sul fazem samba ou salsa.”
Ninguém traz nada de novo nem é dono de nada. E acusa, uma vez mais, a elite capitalista de criar mentiras – como a novidade, obsessão social contemporânea – e alimentar uma cultura de egos, de self made men e de uma lógica aspiracional (de querer ser igual a esses que alcançaram o topo). E lembra a discussão que teve com um amigo chinês a propósito do banimento do filme de animação Winnie the Pooh na China, justificado pela recusa de admitir “influência americana junto do povo chinês” (mas motivado pelos frequentes memes que comparam Winnie e o primeiro-ministro Xi Jinping). Só que estas medidas, advoga Seun, dirigem-se sempre apenas aos pobres. “Os chineses ricos viajam para a Europa e para a América e vêem aquilo que quiserem. Da mesma maneira que não se pode fumar nos aviões, mas os ricos fumam nos seus jactos privados”.
Pode, às tantas, parecer que não estamos a falar de música. Mas nunca deixamos de estar. Porque o afrobeat, tal como Seun o herdou de Fela, é atravessado em permanência por este grito contínuo de revolta. Por muito que o corpo se renda ao polirritmo fogoso que Tony Allen juntou ao saxofone impetuoso de Fela, esta é música que baloiça mas fica a ecoar como uma inquietação pouco silenciosa.