Metade dos Bauhaus e uma Chrissie Hynde intacta num EDP Vilar de Mouros maduro, mas não geriátrico
O arranque do Woodstock português foi reservado para bandas nascidas nos finais de 1970. Além de Peter Murphy e dos Pretenders, houve os PiL num concerto sóbrio, mas pouco entusiasmante: Johnny “Rotten” Lydon tornou-se simpático (e trocou o punk pelo Trump).
“Isto é rock’n’roll, não interessa se a guitarra está afinada ou não”, ironiza Chrissie Hynde, líder dos Pretenders, antes de tocar Back on the chain gang, single de 1982, enquanto luta para esticar as cordas até ao ponto certo para que, soltas, soem às notas da afinação natural que usa. É neste espírito que volta à corrente que uniu um alinhamento sólido e tocado com o à-vontade de quem acumula décadas de experiência, mas continua a não facilitar em cima de um palco. São precisamente 40 os anos que passaram desde que os seus Pretenders iniciaram actividade. Mais sete tem o festival onde tudo isto aconteceu. Foi no primeiro dia de mais uma edição do EDP Vilar de Mouros, a terceira consecutiva deste último regresso após uma longa pausa, um regresso que confirma a necessidade de um espaço para um público mais maduro.
Apesar da atitude aparentemente despreocupada de Hynde, a guitarra não soou desafinada, nem se ouviram acordes desleixados. Pelo contrário, os Pretenders assinaram a actuação mais enérgica e empolgante de uma noite em que se revisitou o legado dos Bauhaus, bem explorado por Peter Murphy e David J, e se recordou, com os PiL, que Johnny Lydon tem muito mais trabalho feito além dos Sex Pistols – já não tem é a mesma vitalidade nem a mesma irreverência.
Curiosamente, estas três bandas iniciaram funções na mesma altura, em 1978, um ano depois do nascimento do punk. Todas vão lá buscar as suas fundações. E é seguro dizer que grande parte do público presente no primeiro dia do festival já era nascido nessa altura. Alguns espectadores terão mesmo acompanhado o início de carreira de pelo menos uma das três.
Pintado este cenário, percebe-se que Vilar de Mouros é diferente de todos os outros festivais de Verão, e não só por ser pioneiro: a diferença está na média de idades dos festivaleiros, provavelmente a mais elevada do circuito. Entre quem lá vai há quem não goste que se diga que é um festival maduro – “fica a ideia de que é um festival para velhos”, dizem-nos durante a tarde. É de facto um festival para um público mais maduro, com um cartaz revivalista, mas, como esta quinta-feira se provou, está longe de ser geriátrico.
E, de resto, isso tem várias vantagens. Não há lugar no recinto para congestionamentos. Chegar à linha da frente da plateia é tarefa pouco complicada: esqueçam-se as corridas para o palco mal as portas abrem. Quem não quer ver quem toca dificilmente se aproxima: os menos interessados têm espaço suficiente dentro do recinto para não fazerem nem monte nem ruído, atrapalhando quem tem as atenções focadas nos artistas.
Longe vai o tempo em que a vila ficava apinhada de gente. Na praia fluvial junto à azenha, à primeira vista, não se percebe se os que mergulham vieram para o festival ou são apenas veraneantes. No lado oposto, no centro de Vilar de Mouros, não se espera mais do que cinco minutos para se ser atendido no supermercado ou no café central. Tomar o movimento ali registado durante a tarde como barómetro pode levar-nos a pensar que no recinto não vai estar muita gente. Mas, por outro lado, haverá alguém que troque esta calma por filas e apertos?
O simpático Johnny Rotten
A verdade é que por volta das 21h30, quando os PiL de Johnny Lydon entraram em palco, depois das actuações dos portugueses Cavaliers of Fun e Plastic People, já o recinto estava bem composto, embora longe de cheio. A organização espera este ano receber 30 mil pessoas por dia. No arranque, não terão estado sequer dez mil no pico da noite, a ver Pretenders e Peter Murphy, mas arriscamos dizer que em comparação com o ano passado havia mais gente.
Quem ali estava àquela hora preparava-se para o inesperado. Nunca se sabe muito bem o que esperar de Johnny “Rotten” Lydon, a lenda viva que, com os Sex Pistols, ajudou a criar o punk em 1977. Quem aguardava uma actuação acutilante e imprevisível saiu desiludido. Lydon, pouco Rotten, está (ou esteve) mais contido. Ficou preso a uma actuação sóbria e por vezes pouco entusiasmante. Não é que precise de provar alguma coisa: o seu nome já está inscrito na história da música e dificilmente uma actuação menos conseguida terá força para abalar a lenda. Em certos momentos percebe-se que a sua voz teatral atirada para cima já não está no sítio certo, incapaz de ir além de um tom mais grave e mais gasto.
Os PiL foram eficazes, mas não passaram disso. Contra todo o esforço de uma vida, houve momentos em que Lydon chegou mesmo a ser simpático – como quando, em The body, do álbum Happy? (1987) agradeceu a gentileza do público. Passaram por (This is not a) Love song, Public image, Rise e terminaram, já no encore, por Open up, que gravou com os Leftfield, e Shoom, do último What the World Needs Now... (2005). Despedem-se com um “fuck the system” dito por este ex-punk que hoje apoia Donald Trump e o "Brexit".
Depois do synth-pop dos Human League, compositores do single orelhudo Don’t you want me (1981), que não podiam deixar de fora do alinhamento, entraram os Pretenders. Ainda Chrissie Hynde, em versão loira, não tinha falado e já estava a passar mensagem: “Don’t pet me, I’m working”, dava a ler na t-shirt. E o trabalho que apresentou em palco com a sua banda merece nota acima da média. A vocalista/guitarrista dos Pretenders é conhecida por ser uma figura discreta no seu dia-a-dia. Em palco, sem ser exuberante, não passa despercebida. Lidera a banda e o público sem autoridade e sem laivos de rock star. Irrepreensíveis na execução, foram a todos os temas icónicos: Private life, que Hynde diz ter escrito para Grace Jones, Hymn to her, que dedicou a Johnny Rotten, a balada punk Night in my veins, a abluesada Thumbelina, e claro está, os hits, I’ll stand by you e Don’t get me wrong.
Os anglo-americanos passam a pente fino a discografia, mas não vivem apenas dos sucessos do passado. Não estão acomodados nem conformados. Apesar da longevidade, são joviais e frescos em palco. Têm argumentos para não se perderem no conforto de uma carreira longa. Prova disso são Alone, Gotta wait e a sedutora Let's get lost, extraída do último trabalho, produzido em 2016 por Dan Auerbach, dos Black Keys.
Terminaram, já no encore, com Mystery achievement, do álbum homónimo de estreia.
Metade dos Bauhaus
A uma hora já avançada, 1h50, entrava Peter Murphy com a sua banda e com David J – ou devemos antes dizer metade dos Bauhaus? O vocalista e o baixista estão em tournée de celebração dos 40 anos da mítica formação pós-punk que abriu caminho ao rock gótico. Não é a primeira vez que Murphy está em Vilar de Mouros, muito menos em Portugal. Mas desde 2006, quando passaram por Paredes de Coura, é a primeira vez que regressa para tocar Bauhaus (David J disse aliás recentemente à revista Mojo que já não via Murphy desde essa altura).
Como seria de esperar de um concerto comemorativo, o alinhamento foi inteiramente orientado para a discografia dos britânicos. Com o vocalista e o baixista em palco, estão reunidos 50% da banda. Para todos os efeitos, estavam ali os Bauhaus a regressar ao passado. Desenterraram malhas como Kick in the eye, Silent hedges, God in an alcove e os hinos góticos She's in parties e Bela Lugosi's dead, este último numa versão mais solta, com Peter Murphy, qual Drácula, a esconder-se de um feixe de luz numa das laterais do palco. O segmento serviu para reforçar o estatuto dos Bauhaus como um dos pilares do gótico.
Na mesma toada foram a Passion of lovers, mais depressiva, e a Dark entries, mais rápida, com refrão em coro tipicamente punk. Despediram-se de uma actuação bem conseguida e envolvente com uma versão: Severence, dos australianos Dead Can Dance.
Até ao final de mais uma edição ainda passarão pelo Woodstock português Incubus, Editors, David Fonseca e GNR (sexta-feira), e e John Cale, James ou dEUS (sábado).