A força incandescente e serena do desenho
No Centro Internacional das Artes José de Guimarães uma exposição propõe um olhar retrospectivo sobre a obra de Pedro A.H. Paixão, trazendo à luz um desenho que se faz com a mão e o corpo.
Organizar e fazer uma exposição antológica de um artista implica um movimento de recuo, um distanciamento para dar sentido ao conjunto de obras realizadas. Só então serão reunidas para se darem ao público, num percurso solitário, próprio, autónomo ou numa “conversa” possível com outros objectos. Foi esta última modalidade aquela que o curador e director do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Nuno Faria, e o artista Pedro A.H. Paixão (Lobito, Angola, 1971) exploraram em Mundo Flutuante — Trabalhos: 1996-2018. Há obras e artes de tempos distintos e distantes nesta exposição, que se assombram e iluminam mutuamente. Máscaras e desenhos, esculturas e filmes, objectos e sons.
Desde o início da sua carreira que Pedro A.H. Paixão estuda e se dedica ao desenho (prática distinguida em Junho passado com Prémio Navigator Arte em Papel); reformule-se, a um desenho meticuloso, intenso, fisicamente exigente, feito pela e à mão, a grafite, lápis de cor e a caneta. As cores são fundamentais em Mundo Flutuante — Trabalhos: 1996-2018. A escarlate, encontram-se desenhos que Pedro A.H. Paixão já expôs noutras ocasiões. É uma cor densa, incandescente que, pela sua força, alastra a toda a superfície do papel, fazendo com que o desenho, sem deixar de ser desenho, se torne também pintura, possa aparecer como pintura. De dimensões reduzidas, realizadas manualmente pelo artista no seu atelier, estes desenhos, vermelhos, quentes, abrem fundos dos quais emergem máscaras, personagens, figuras, rostos. Ecos de passado, fantasmas que chegam para contar histórias que a História não soube escutar. Histórias do que poderia ter sido, histórias (ou mundos), como acontece nos desenhos mais recentes, dessa relação cavada no silêncio e na dor que foi a da Europa com a África.
São figuras que existem no plano dos fantasmas, mais do que no das imagens, e fitam-nos frontalmente como focos opacos de luz, monocromos sensíveis. Na exposição, os desenhos dialogam com as máscaras e com as esculturas de pedra e madeira da Colecção José de Guimarães, dançam com os seus sons e os ritmos. Aparecem, desequilibrando a visita. A montagem é delicada e atenta às vibrações desiguais das coisas, assegurando aos desenhos e aos objectos, não um valor, mas uma dignidade comum. Veja-se, numa das salas, aquela em que o desenho de uma Nina Simone coroada, está no espaço, ao lado de uma figura feminina em terracota chinesa e de uma uma pietá em pedra da autoria de Quintino Vilas Boas Neto. É um dos momentos mais luminosos, como aqueloutro em que as esculturas de arte pré-colombiana partilham a mesma dimensão — sensível — com os desenhos circulares do artista. Uns e outros são dirigidos ao corpo, à realidade da vida.
Noutra sala, sopram os desenhos turquesa, com uma transparência maior que a dos escarlates. Os rostos que vemos devolvem-nos o olhar de soslaio, de um modo oblíquo, mais sereno, não frontal. Como se nos aguardassem. São desenhos mais abertos à luz, mais leves, tocados por algo semelhante a uma brisa, um manto intangível. Iluminam e, depois de deles nos abeirarmos, expandem-se à volta da sala. Aludem tanto à infância do artista no Lobito, Angola, no início dos anos 70 do século XX, como à história do Congo Belga. Aludem pela força iluminadora no desenho, não dizem, não prescrevem, não julgam. É com uma imperturbabilidade séria que confrontam aquele que olha e vê, libertando, representando acontecimentos de um passado prenhe de histórias, que ficaram por conhecer, imaginar, lembrar; com o passado como ele poderia ter sido, como pode vir a ser, como foi. É um desenho que restitui ficções (Mufumbiro Mountains at the National Museum), vibrações (The Lighthouse), encontros (The Big Wave Rider) e histórias (9.40pm-9.43pm), ameaçando, por vezes, dissolver-se numa pura atmosfera ou ficando à espera, incompleto, como feito por si mesmo, num gesto guiado pela memória (o desenho do brinquedo).
O gesto da mão, o fazer da mão determina tanto estes desenhos como aqueles a escarlate. Permanece em Pedro A.H. Paixão um gosto pela manualidade do desenho, por uma escala modesta, por uma condensação quase miniatural. No lugar de uma monumentalidade, de uma escala que cobre ou tapa, sente-se uma atenção sensível àquilo que está à mão, entre os dedos, como indica o fazer dos pequenos diapositivos que se desvela na sala das projecções de slides. E no entanto, nos desenhos a turquesa já se vislumbra a possibilidade de uma outra relação física com o espectador, como se o desenhos subissem, apontassem para o exterior, o que se torna mais evidente nos desenhos a grafite. São desenhos de transição, como também aqueles em que o escarlate ainda resiste ao turquesa: Wonders on summer night, ‘Awe’ of the art world before its wonders, habitados por personagens tomadas pelo espanto, por vezes aterrorizadas, diante do mundo como diante da arte. O que vêm, o que viram elas? O mesmo que o espectador? O espectador?
Noutra sala, está um conjunto de trabalhos desenvolvido à volta de Voadora gentil (montagem na montagem de Bresson), obra de 2003, também ela um desenho, mas desenho enquanto montagem cinematográfica de imagens. Pedro A.H. Paixão remontou várias sequências e planos de Une Femme Douce (1969), do cineasta francês, e desse exercício resultaram os gestos e as acções de uma personagem que pode interpretada como uma metáfora do ou de um ser artista. No vídeo, Elle, a protagonista feminista (interpretada por Dominique Sanda) ensaia voos, fugas das convenções, do vazio em que se vê enclausurada e abandonada; mas o voo que Pedro AH Paixão “desenha” ou compõe não é para a morte e sim para a prática artística do artista como outro. Daí a mesa com os livros que a mulher terá lido, os desenhos que teria feito, os seus diários. É como se ao contrário de Elle, que se suicida, o artista encontrasse na arte um espaço-entre que lhe permite, por meio do desenho ou apenas pelo gesto que o potencia, comunicar com o mundo. Numa relação física, sensível, que se escuta, que se celebra, que se respira, noutros filmes. Em Farwell Redline, de 2017 e, sobretudo em Second Draft for a film on Memory and Recollection, onde as festas dos caretos de Podence, a dança e a música dos índios da América do Norte e o punk- rock dos Bad Brains (essa tão improvável e primordial música; não é a música punk afinal, entre outros géneros, uma música de ritmos sensíveis, biológicos, música da vida para o mundo, do corpo para a relação com os outros?), fossem animadas pela mesma corrente. Aquela que agita, guia, suspende, desenha o desenho de Pedro A.H. Paixão.