Manuel Antunes: "Casei-me há 30 anos com o SNS e nunca cometi um pecadinho"
Manuel Antunes acaba de se reformar e de deixar o Serviço Nacional de Saúde por ter completado 70 anos. Mas não quer deixar de ver e operar doentes, a partir de agora no sector privado e colaborando em missões humanitárias, durante mais uns anos. Quantos, não sabe.
Três décadas depois de ter chegado a Coimbra com a fama de ser um grande transplantador cardíaco, o médico e professor universitário Manuel Antunes deixa o centro de cirurgia cardiotorácica do Centro Hospitalar Universitário da cidade com a sua marca. “Manuel Antunes só há um com este ADN, mas pode haver um Joaquim outra coisa qualquer que venha a ser muito melhor”, afirma. Recorda a sua passagem por África, onde se especializou e conheceu Christiaan Barnard, o primeiro médico a fazer um transplante de coração. “A técnica não é complexa, trata-se de juntar duas artérias e três veias, só. O que é complexo é pôr, depois, aquele coração a trabalhar”, descreve. Criou o centro de referência de Coimbra onde, até 20 de Julho, liderou uma equipa que fez 45 mil cirurgias cardíacas e pulmonares. Admite que é mandão e que se habituou a convencer os doentes fumadores ou obesos a deixar o tabaco ou a perder peso antes das intervenções cirúrgicas. E lamenta que a competição entre o privado e o SNS seja actualmente “muito desigual”.
Deixa o Serviço Nacional de Saúde (SNS) por ter atingido o limite de idade, 70 anos. Afirmou que não concorda com esta retirada forçada dos profissionais da função pública. Porquê?
A lei que, pela primeira vez, instituiu o princípio dos 70 anos é de 1929 e tem um preâmbulo que atira os velhos para abaixo de cão. Esta lei já foi revogada, mas as seguintes nunca abandonaram este princípio. Ora em 1929 só cerca de 5% das pessoas atingiam a idade de 70 anos, enquanto hoje só 5%, estou a falar de cor, apenas 5% é que não chegam aos 70 anos. A demografia alterou-se profundamente entretanto. Portanto, há mais do que razões para modificar esta lei. Está-se a desperdiçar muito saber. Bem sei que, em sentido contrário, se defende que os mais velhos devem sair para dar lugar aos mais novos. Mas tem que haver um equilíbrio, aliás, como disse o Presidente da República. Podia ser criada uma excepção para quem se voluntariasse.
Para uma pessoa que diz que o trabalho é a sua grande paixão, deixar de trabalhar, de operar, será muito complicado certamente?
Eu quero continuar a trabalhar enquanto tiver condições físicas e psicológicas, quero ver e operar doentes, porque sou um cirurgião. Mas esta possibilidade só me fica aberta agora na clínica privada ou em missões humanitárias. Esse será naturalmente o caminho a seguir.
Mas é conhecido por ser um homem do SNS...
Eu casei-me há 30 anos com uma mulher, que por acaso é um homem, que é o Serviço Nacional de Saúde, e nunca cometi um pecadinho. Nunca me viram entrar numa clínica privada, excepto por duas vezes, em situações de saúde em que escolhi ser tratado num hospital particular. Agora, não acho que pareça mal [passar a trabalhar no privado] porque também sempre considerei este sector como complementar e continuador do SNS. O SNS não tem condições para abarcar toda a actividade de prestação de saúde. Actualmente, 25% a 30% dos cuidados de saúde estão a ser prestados por privados. A procura está a aumentar e, se já temos um problema grave, imagine que o problema que teríamos com mais esses 30%. Seria um desastre.
No passado, criticou várias vezes o que designou como “concubinagem” entre público e privado.
Claro. Eu sempre defendi a separação dos dois sectores, apesar de admitir pontes. Os seguros, que são o grande suporte da actividade privada, só cobrem até determinado ponto e não estão muito dispostos a assumir riscos. O doente mais complexo raramente é tratado na clínica privada. Quando os doentes que eram simples se tornam complexos, arranja-se uma forma de os transferir. São estas passagens que têm que ser bem reguladas, sem escolha de doentes, os melhores ficam cá, os outros vão para lá...
Isso acontece com frequência?
Então tem dúvidas sobre isso? A classe médica, como qualquer outra, também tem as suas ovelhas negras. Mas isto não é um anátema para a classe médica. A grande maioria cumpre rigorosamente a lei. O problema é que a própria lei é permissiva, portanto deve ser alterada, dando ênfase, favorecendo e premiando a exclusividade. E tem que haver uma maneira de melhorar o pagamento aos profissionais que aceitem estar em exclusividade.
A exclusividade não é suficientemente compensadora do ponto de vista financeiro?
Eu estou no topo da carreira, sou professor universitário, o meu salário são 5200 ou 5300 euros, e, depois de impostos, recebo 3500 euros. Com uma ou duas operações por mês [no privado] poderia ultrapassar este valor. Com as horas extraordinárias, já teriam que ser quatro cirurgias lá fora.
As pessoas estão convencidas de que os médicos ganham muito dinheiro...
Não é verdade. O meu salário, que duplicava com as horas extraordinárias, deixa-me muito acima da média em Portugal. Mas sete ou oito mil euros por mês não tornam nenhuma pessoa rica.
Tem dito que o seu centro faz mais com menos pessoas. Como consegue essa façanha?
Primeiro, porque todos os profissionais estão em exclusividade. A mudança de turnos representa uma perda de eficiência. Noutros serviços, por exemplo nas salas de operações, há uma equipa que faz cirurgias de manhã e outra à tarde. Nós resolvemos esse problema com o pagamento de horas extraordinárias. Tudo o que é feito – e é o dobro das 35 horas, porque fazemos 70 a 75 horas por semana – é pago como horas extraordinárias. A qualidade é sempre muito difícil de medir, mas aqui não há listas de espera. Este é um padrão de qualidade que é um pouco único no país.
Os seus críticos dizem que consegue bons indicadores porque selecciona doentes. É verdade que escolhe os doentes mais “saudáveis”?
Isso não é verdade. Se tratamos mais doentes do que os outros [centros], como é que se pode dizer que os seleccionamos? O que fazemos é aproveitar aquele momento que é um pouco traumático, mas é uma oportunidade [antes das cirurgias]. Digo ao doente: “Só o opero quando conseguir perder 15 quilos.” Mas ainda na semana passada operámos um doente com 125 quilos. Além disso, os doentes vêm de todos os centros do país. Acreditam que os cardiologistas aceitariam que seleccionássemos os doentes? Eles não mandam a carninha tenra para nós e os ossos para os outros. Isso foi uma confabulação que se criou.
Não diz aos doentes que fumam que não os opera enquanto não deixarem o tabaco?
O que digo é: “Tem que parar de fumar.” É naquele momento que é preciso insistir na modificação dos hábitos de vida, o que é particularmente importante nesta área. A percentagem de êxito, em termos de cessação de hábitos tabágicos e diminuição do peso nestas pessoas, é de mais de 80, 90%. Nós operamos mais de 45 mil doentes nestes anos e neste período deve ter havido meia dúzia de doentes que se recusaram a deixar de fumar. A doença cardíaca tem vários factores de risco: além da história familiar, o sedentarismo, a obesidade e o tabagismo. Temos o direito ético de não tratar uma pessoa que diz: “Eu tomo comprimidos, mas não deixo de fumar.” Mas também operamos muitos doentes que foram recusados noutros serviços e vêm para aqui. Há uns sete ou oito anos, houve uma auditoria feita aos serviços de cirurgia cardiotorácica que classificou, em todos os parâmetros, este centro como sendo o melhor e os peritos foram à procura dessas coisas. Depois de uma primeira fase de crítica, os meus colegas foram também progressivamente aplicando essas metodologias. Por que é que as pessoas que se portam bem hão-de ter de pagar pelas pessoas que se portam mal?
O que aconteceu aos doentes que não aceitaram estas condições?
Encontraram outros sítios. Mas esses não estão a fazer nenhum favor aos doentes porque, se eles continuarem com os mesmos hábitos, a cirurgia traz-lhes pouco alívio.
Quem é que lhe vai suceder?
Já há um colega que foi nomeado interinamente e agora vai ser lançado um concurso.
Só haverá um Manuel Antunes?
Manuel Antunes só há um com este ADN, mas pode haver um Manuel outra coisa qualquer ou um Joaquim outra coisa qualquer que venha a ser muito melhor. Pode não ser o próximo. É como nos clubes de futebol: há épocas e depois há downs e depois volta-se a subir. É assim que progredimos. Agora, a tendência para exclusividade, o carinho a tratar os doentes, tudo isso são princípios que se tornaram brasão deste serviço e que gostaria que continuassem.
Sempre disse que foi moldado pela sua experiência em África, para onde foi em criança e onde começou a trabalhar...
Sim, fui muito moldado pela minha experiência em Moçambique, para onde fui aos cinco anos, e na África do Sul. Fiz praticamente todo o meu percurso escolar em Moçambique, com excepção da 4.ª classe, porque tivemos que voltar a Portugal, por razões de saúde do meu pai. O início do meu treino em cirurgia geral aconteceu em Moçambique, mas a carreira profissional foi feita na África do Sul. A África do Sul era um misto de colónia inglesa com muita influência americana e eu pude aproveitar o melhor dos dois sistemas. Fui verdadeiramente moldado por essa experiência. Lá, era absolutamente incompatível trabalhar no público e no privado.
Como conheceu Christiaan Barnard, o médico sul-africano que fez o primeiro transplante de coração?
Tive um contacto muito fugaz com ele quando estava na faculdade. Em 1967, quis fazer um ensaio sobre os aspectos éticos e legais da transplantação do coração e não havia nada escrito. Andei com um gravador a entrevistar várias pessoas, um bispo anglicano, o secretário da Justiça, e decidi escrever uma carta ao professor Barnard. Os meus colegas riram-se de mim. “Tu julgas que ele, que se transformou numa vedeta instantaneamente (apareceu cinco vezes na capa da revista Time), te vai responder?”, brincaram. Passadas umas semanas, recebi uma carta manuscrita em que ele respondia integralmente às quatro perguntas. Mais tarde encontrei-o na África do Sul, ajudei-o a organizar um congresso, e ele disse-me que se lembrava perfeitamente da minha carta, porque, apesar de estar escrita num inglês duvidoso, tinha perguntas – segundo afirmou, e desculpem-me a imodéstia – que eram muito inteligentes. Iniciámos então uma amizade que durou até à sua morte.
Recorda-se da sua primeira operação?
Sim, era uma rapariga de 12 ou 13 anos, foi uma apendicite. O pai dela era pescador e trouxe-me um peixe enorme como presente, parecia um tubarão.
Recebeu muitos presentes?
Na nossa especialidade, há aquele aspecto sentimental ligado ao coração, que é o motor da vida. Todos os doentes pensam que lhe salvamos a vida, o que não é verdade – se o doente não fosse operado naquele dia, não significava que morreria no dia seguinte. Mas penso que a maior parte das pessoas, quando chegam à enfermaria cardiotorácica e já passaram por outras, verificam que a maneira como são tratadas ali é diferente. Também é o cuidado que se põe na relação humana, no tratamento, que faz com que muitas pessoas achem que esta é uma equipa excepcional.
Qual foi o presente mais valioso que recebeu?
Quando iniciámos a transplantação, os carros do hospital não me ofereciam muita confiança. Houve uma pessoa muito rica a quem tínhamos operado uma pessoa chegada que nos ofereceu uma carrinha de 40 mil euros que usámos no transporte de pessoas e da equipa.
Hoje há vários centros de referência em Portugal. O país evoluiu muito neste domínio?
Na cirurgia cardiotorácica existem seis unidades públicas no país: três em Lisboa, duas no Porto, uma em Coimbra, e têm todas uma qualidade superior à média. A auditoria do Tribunal de Contas dizia, aliás, claramente que, de uma maneira geral, os centros de cirurgia cardiotorácica são centros de grande eficiência e qualidade.
Mas o seu foi o primeiro. O actual ministro da Saúde até disse que gostaria de “Manuel-antunizar” o SNS…
Essa é uma expressão que não é da minha autoria, mas sim do actual ministro da Saúde, ainda antes de ser ministro. Ele disse que gostava de seguir essa via, mas isso não significa criar clones do Manuel Antunes. É um estilo de abordagem para a actividade clínica, cirúrgica, científica que ele acha que é um modelo a seguir, com as adaptações necessárias a cada caso.
Na sua última aula, o ministro da Saúde também disse que tem capacidade de liderar e uma pontinha de mau feitio. É mesmo assim?
Estive quase para saltar da cadeira [quando ele disse isso] e perguntar-lhe: “Dê lá um exemplo!...” Mas não renego essa característica. Há pessoas que vão para a frente para descobrir e ultrapassar o cabo das Tormentas, enquanto outros dizem: “Deixa-me ficar pelo Bojador…” É isto que transforma algumas pessoas em pioneiros. Tenho 42 anos de actividade na área da cirurgia cardíaca. São dois terços da vida da cirurgia cardíaca, portanto participei em dois terços da evolução histórica da cirurgia cardíaca.
Também tem sido dito que é mandão. Reconhece-se nesta crítica?
Conhece algum líder que possa fazer sem mandar? Prezo-me de ter tido durante estes 30 anos o controle de toda a actividade do serviço e de assumir a responsabilidade por tudo. Não conhece nenhum general que não seja mandão. Eu estou presente e intervenho em dez a 12 cirurgias por semana, duas por dia. Estamos a falar em 35 cirurgias em média por semana, que dá quase duas mil intervenções por ano.
As doenças cardíacas mudaram muito ao longo dos anos?
Não. Não há doenças do coração que não existiam há 42 anos, quando comecei. O que mudou foi a intensidade e a incidência. Por exemplo, a doença coronária, das artérias do coração, foi durante muito tempo a principal patologia tratada em cirurgia cardíaca. Depois vieram os stents, os tratamentos que são feitos nos laboratórios de hemodinâmica e a actividade cirúrgica nesta área decresceu em um terço. Entretanto, com o envelhecimento da população, surgiu a nova epidemia: o envelhecimento do coração nos doentes idosos. Todas as semanas operamos doentes com mais de 80 anos.
Não há limite de idade para operar um doente?
Nunca operamos um nonagenário, mas temos doentes com mais de 80 anos. Tal como se dá o enrugamento da pele, acontece o mesmo com as estruturas cardíacas. Portanto, a actividade continua a ser a mesma. Agora, as técnicas cirúrgicas evoluíram. Na última aula, até disse que os avanços não resultam das pessoas com mais cérebro, mas dos preguiçosos que querem tornar as coisas mais fáceis de fazer. O que há agora é a tecnologia dos aparelhos electrónicos que nos ajudaram muitíssimo. Os ventiladores, por exemplo, são hoje muito mais sofisticados, permitem-nos ajustar todos os parâmetros.
A taxa de mortalidade do centro é muito baixa. Como é que isto é possível?
É muitíssimo baixa por causa da metodologia e do apuro das técnicas. Ao longo destes anos, fizemos 35 mil cirurgias cardíacas e 10 a 11 mil cirurgias torácicas. Para a cirurgia cardíaca a mortalidade global é de 1%. Costumo dizer que o doente que entra vivo no hospital, em princípio, deveria sair vivo. Quando não sai, é porque falhamos em alguma coisa.
E se um doente entrar no hospital num estado muito grave?
É difícil estabelecer a linha do operável ou não-operável. Alguns doentes pensam que ser operado é como se fosse tratar uma apendicite, outros vão com muito medo. Eu tenho muito medo das pessoas que vão com muito medo para a sala de operações.
Porquê? Isso influencia o resultado?
Sim, porque a nossa psique também influencia o tratamento. Por isso é que é tão importante tratar com o máximo de capacidade técnica e cirúrgica como do ponto de vista pessoal e humano. Porque isso tem influência.
Disse que um SNS forte é capaz de competir com o privado...
Falei da competição no bom sentido. Antes, das equipas grandes do futebol nacional esperava-se que dessem às outras pelo menos seis golos a zero, mas isso hoje não existe. Agora, o campeão nacional perde com uma equipa que ficou quase em último lugar. Tudo melhorou, foi o nivelamento por cima. Desta competição só pode resultar a melhoria de qualidade. Mas essa competição é hoje muito desigual, primeiro porque os privados têm utilizado a sua capacidade económica para atrair os melhores. E quando os melhores saem do SNS, a qualidade tem que diminuir. Em segundo lugar, há os equipamentos. Continuamos a ter neste hospital TAC de quatro e oito cortes (imagens por segundo) quando agora já se fazem TAC de 256. Estas coisas custam muitas centenas de milhares de euros.
O SNS necessita de mais financiamento, portanto?
O SNS precisa de mais dinheiro e estaria melhor se tivesse mais. O problema é saber onde se vai buscar esse dinheiro. Há quatro rubricas que são as grandes consumidoras do Orçamento: a lei e ordem, a educação, a saúde e a segurança social. Pergunto às pessoas que acham que deviam ter um novo hospital do outro lado da rua onde vivem: “O senhor autoriza que a gente feche a escola do seu filho?” Temos que ser realistas. Só há uma solução: para pôr mais dinheiro na saúde, é preciso que o país passe a produzir muito mais. Se calhar, não se justificaria a redução do horário semanal para 35 horas: 40 horas não me parece um exagero. Eu entro às 8h e saio às 20h e nunca me ouviram falar em burnout. A produtividade em Portugal é baixíssima. Se, como povo e como nação, não mudarmos de atitude, penso que o futuro não é risonho.
As pessoas mudam depois de receberem um coração novo?
Há por vezes alterações psicológicas após a cirurgia cardíaca, especialmente. É o poder que a mente tem sobre o corpo. Sobretudo na transplantação cardíaca, começam a formar-se macaquinhos na cabeça e as pessoas perguntam: “De onde vem este coração?” É a mente que fabrica coisas que não existem na realidade, mas que se transformam na realidade.
Quando chegou a Coimbra, há três décadas, organizaram uma grande festa e anunciaram que vinha aí um famoso transplantador de corações. Mas só tinha feito transplantes em chimpanzés na África do Sul...
Nessa altura fazia-se alguma cirurgia cardíaca em Coimbra, mas era pouca e, pode pôr entre aspas, “de má qualidade”. Havia 300 doentes em lista de espera. Quando cheguei, até havia histórias de doentes que na véspera da cirurgia fugiam do hospital. Portanto, houve que mudar as coisas completamente. Um jornal local anunciou em título: Vem aí um famoso transplantador de corações. Ora, eu nunca tinha feito transplantação em doentes. A universidade onde trabalhava na África do Sul tinha um bom laboratório de experimentação animal, fizemos seis transplantes e todos sobreviveram. A técnica não é complexa, trata-se de juntar duas artérias e três veias só. O que é complexo é pôr aquele coração a trabalhar, depois.
Fazem muitos transplantes no centro de Coimbra?
Não. Ainda hoje, a actividade de transplantação representa apenas 1 a 2% da nossa actividade – fazemos 25 transplantes e duas mil cirurgias por ano. Acresce que mais ou menos se aceitou que deve haver um centro de transplantação cardíaca para cada cinco milhões de habitantes. Já havia dois centros em Lisboa e um no Porto, a transplantação tinha sido iniciada dois anos antes em Portugal e eu achei que não era uma prioridade. Mas isso causou algum desânimo, porque pensavam que Coimbra ia embarcar na corrida das transplantações. Só iniciámos a transplantação cardíaca uns 14 anos depois, quando construímos este novo edifício e também porque nos últimos anos nenhum doente daqui da zona Centro tinha conseguido ser transplantado. A distribuição era desigual.
Há anos escreveu um livro intitulado A Doença da Saúde: Serviço Nacional de Saúde, Ineficiência e Desperdício”. Ainda está actual?
Actualíssimo. O último capítulo – e o livro foi escrito em 2001 – tinha medidas para melhorar o SNS. Na altura, entenderam aquilo como sendo uma proposta de Governo ou um programa ministerial de saúde. Interpretaram aquilo como sendo eu a querer candidatar-me a cargos, mas já disse que gosto de trabalhar no rés-do-chão, não nos lugares altos. Eu fui convidado para várias posições de relevo na política portuguesa, mas não aceitei.
Mesmo para ministro da Saúde?
Eu acho que o Ministério da Saúde destrói todos quantos por lá passam… Quero é continuar a operar doentes.
Qual é o valor do desperdício na saúde?
No livro, dizia que havia 25% de desperdício. Se se tiver em conta que custos com medicamentos andam à volta de 2 mil milhões por ano, são milhões de euros de desperdício. Há também muitas coisas que podem ser reutilizadas. Por exemplo, há uns pacemakers especiais, que são desfibrilhadores, que já chegaram a custar 25 mil euros, apesar de agora serem mais baratos. Mais de 50% dos doentes que vêm para transplantação trazem esse aparelho que nunca o organismo utilizou, com uma pilha que duraria dez anos e que deitamos ao lixo. Mas nunca se consegue eliminar completamente o desperdício. Se conseguíssemos ir ao extremo de poupar 25%, era como se subitamente agarrássemos em mais 2500 milhões de euros. Isso era suficiente para os próximos seis a dez anos, mas depois voltávamos ao mesmo. Os custos com a saúde nos últimos 20 anos aumentaram a uma média de 6% e crescimento do PIB foi em média de 1,5% ao ano. Isto não tem solução.
O que vai fazer agora?
Vou de férias durante 15 dias e depois disso vou fazer contactos. Tenho de começar de novo.
Admite a hipótese de ir trabalhar para o estrangeiro?
Não para emigrar, mas para fazer períodos de trabalho. O director de um dos maiores serviços de cirurgia cardíaca do Brasil disse-me há três meses: “Manuel, você não arranja uma semana por mês para vir aqui ajudar-nos, para dar aulas, para fazer demonstração, para ajudar nas cirurgias?” Eu disse: “Não, Fábio, uma semana cada mês não, mas três semanas cada três meses talvez.” É uma hipótese.
Até que idade acha que consegue operar?
Não há limites pré-estabelecidos. Cinco anos, seis, dez? Mas tem que ser limitado, não estou a ver ninguém a operar para além dos 80 anos.
Não vai aproveitar agora o tempo livre para os seus hobbies?
Não tive tempo para ter hobbies. Fala-se muito na jardinagem, mas isso são coisas pequenas. Faço podas, transplantações de árvores, planto árvores. Recentemente fiz sete enxertos de videiras e vingaram cinco. Não é mau para quem está a começar...