“Vergonha e arrependimento”: Papa Francisco escreve carta dura sobre abusos sexuais na Igreja Católica
O líder da Igreja Católica condena "fortemente estas atrocidades", falando em "cultura de morte". E postula: "as feridas nunca prescrevem".
O Papa Francisco, sob pressão na sequência de mais um caso de abusos sexuais cometidos no seio da Igreja Católica, escreveu esta segunda-feira uma carta aberta em que admite “vergonha e arrependimento” pela forma como a instituição lidou com estes crimes. E pede a ajuda de todos os católicos para eliminar "esta cultura de morte", reconhecendo "nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado".
Esta é, segundo um porta-voz do Vaticano, a primeira vez que a figura máxima da Igreja Católica se dirige aos fiéis e ao mundo para falar de abusos sexuais. No passado, recorda a Reuters, têm sido os bispos e outros altos representantes a falar publicamente destes casos. A missiva do Papa Francisco, datada desta segunda-feira, surge numa altura em que centenas de casos de abuso sexual no seio da Igreja Católica, e o seu papel no seu encobrimento, estão a ser notícia nos EUA, mas também de problemas similares na Irlanda (que irá visitar no final do mês), Chile e Austrália.
Os termos da missiva são directos e duros: "Com vergonha e arrependimento, reconhecemos como comunidade eclesiástica que não estivemos onde devíamos ter estado, que não agimos de forma atempada, percebendo a magnitude e a gravidade dos danos causados a tantas vidas". Evocando São Paulo, o sumo pontífice refere-se ao "sofrimento vivido por muitos menores por causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas" e refere-se à impossibilidade de reparar os danos retroactivamente. Mas quer fazer tudo para " gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas".
"Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso nas nossas comunidades, sem a participação activa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista", acrescenta.
Na semana passada, um relatório judicial revelou que mais de 300 padres abusaram sexualmente de mais de mil crianças na Pensilvânia nos últimos 70 anos. Um silêncio inicial do Vaticano sobre o tema foi rompido ao fim de 48 horas com uma condenação pelo porta-voz do Papa que já falava em "vergonha" e "crimes horríveis". Agora, é a vez de o líder espiritual de 1,2 mil milhões de católicos falar sobre o tema que desde 2002, quando o escândalo de pedofilia na Igreja Católica de Boston pôs em xeque o papel das autoridades religiosas no encobrimento desses casos. Francisco refere-se directamente ao relatório da Pensilvânia, mencionando que "a maioria dos casos corresponde ao passado" mas ressalvando que constata "que as feridas nunca desaparecem". E por isso "obrigam a condenar veementemente essas atrocidades, bem como unir esforços para erradicar essa cultura da morte; as feridas 'nunca prescrevem'".
Trata-se, diz logo à cabeça de um longo texto escrito originalmente no seu espanhol natal, de "um crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes. Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado".
Depois de uma semana particularmente espinhosa na comunicação sobre o tema para o Vaticano, o Papa diz: “A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar uma vez mais o nosso compromisso em garantir a protecção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade”. Ainda assim, as suas palavras são vistas por Anne Barrett Doyle, do site BishopAccountability.org, um site que agrega os vários casos de abusos sexuais na Igreja Católica, como "retórica reciclada". "Meras palavras que nesta altura aprofundam o insulto e a dor", ao invés de proporem "medidas concretas", cita o diário britânico The Guardian.