Prostituição é trabalho? “Não sei se vamos conseguir consensos, talvez tolerâncias”
Reduzir riscos e garantir o acesso a direitos. A Plataforma Lisboa — Trabalho Sexual, grupo de trabalho convocado pela autarquia, começou em Abril a coordenar respostas à população, mas foi posta em causa por iniciativa de várias associações de mulheres e de partidos da oposição. O que fica por fazer enquanto a cidade debate o tabu da prostituição?
Fim de tarde no Intendente, em Lisboa. Catalina, de 21 anos, é colombiana e está em Portugal há três meses. Trabalha num apartamento com outras pessoas. Conta-nos como é a vida no trabalho de prostituição. “Há coisas de que gostas, outras menos, trabalhar horas e horas... Mas precisava de trabalho.” Na Colômbia, estava a estudar Enfermagem e por cá também pensa voltar a estudar. Mas, para já, está “à procura de outros trabalhos”. “Se estivesse legal, era mais fácil.”
Encontramo-la no Espaço Intendente, um projecto do Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT). À entrada, três taças cheias de preservativos, vários cartazes informativos. Catalina vem fazer o rastreio de infecções sexualmente transmissíveis (IST), levar preservativos, tirar dúvidas. “É importante para a saúde, estamos mais vulneráveis”, reconhece. Júlio Esteves conversa com ela em espanhol. É técnico deste centro de rastreio dirigido a algumas das populações mais vulneráveis ao VIH e a outras IST, em particular trabalhadores do sexo, pessoas trans, migrantes e que dormem nas ruas. “Se tiveres algum problema, alguma dúvida, manda-me mensagem. Tens WhatsApp?”
Pelo trabalho comunitário que desempenha, o GAT foi uma das organizações convidadas para a Plataforma Lisboa — Trabalho Sexual, um grupo liderado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) que começou a reunir-se em Abril deste ano, tendo em vista conhecer as respostas existentes e aperfeiçoar o trabalho em rede para intervir nesta área. No final de Junho, contudo, depois de pressões de várias organizações de mulheres, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou uma recomendação no sentido de não ser usada a expressão “trabalho sexual”, pedindo ainda que a estratégia da CML seja focada no combate ao fenómeno da prostituição. Actualmente, há duas propostas ao executivo para abordagens alternativas ao problema, vindas dos vereadores do PCP e do CDS-PP.
Para os investigadores que defendem o enquadramento legal da actividade, a distinção entre prostituição e trabalho sexual é fulcral. Ajuda a separar a parte deste fenómeno que consideram, de facto, trabalho: exercido de forma consentida e informada entre pessoas adultas. O que exclui a prostituição de menores de idade, a prostituição forçada, o tráfico de pessoas, entre outras situações de abuso criminalizadas e que continuam a ser problemas a combater — algo em que todas as pessoas ouvidas pelo P2 estão de acordo.
“É uma distinção conceptual importante, a partir da qual podemos intervir de forma diferente”, explica a investigadora Mara Clemente, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) do ISCTE-IUL. “Há várias realidades do mercado sexual”, refere, “e reduzir à prostituição é uma forma de pensar sobre o assunto demasiado redutora”. “Não quero dizer que não existem traumas, não é um trabalho simples. E é pela dificuldade que é preciso considerar o trabalho sexual um trabalho”, sublinha a investigadora, que faz parte do Grupo Interdisciplinar de Investigadores sobre Trabalho Sexual (GIITS).
Conhecer e melhorar
A plataforma sobre trabalho sexual surgiu para “articular as respostas já existentes no terreno e identificar necessidades ou oportunidades de melhoria”, descreve uma nota enviada ao P2 pelo pelouro dos Direitos Sociais da CML.
Nela estão representadas, além da vereação agora liderada por Manuel Grilo, organizações com intervenção na área, “colectivos de trabalhadores do sexo” e investigadores: Acção Pela Identidade (API), Associação para o Planeamento da Família (APF), Associação Positivo, Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT), Grupo Interdisciplinar de Investigadores sobre Trabalho Sexual (GIITS), Labuta (Organização pelos direitos humanos e laborais dos trabalhadores do sexo), Obra Social das Irmãs Oblatas (OSIO), União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).
“Surgiu de uma necessidade de trabalhar em articulação, à semelhança do que se passa com outros públicos, como as pessoas em situação de sem-abrigo ou consumo de drogas”, conta Carla Fernandes, directora técnica da Obra das Irmãs Oblatas.
Laetitia, da coordenação do Espaço Intendente, explica que as organizações com intervenção directa junto de pessoas que fazem trabalho sexual em Lisboa já comunicavam entre si, com “respostas diferentes e valências complementares” — incluindo organizações como O Ninho, que foca o seu apoio nas mulheres que pedem ajuda para deixar a profissão, mas que não quis aderir à plataforma. A novidade deste novo grupo, para além da coordenação e diálogo mais estruturado, é a possibilidade de “articulação com o corpo técnico dos serviços municipais” para identificar lacunas e reflectir sobre potenciais melhorias, descreve.
Para a investigadora Mara Clemente, a primeira grande vitória da plataforma foi convocar diferentes actores e encarar o “desafio de conciliar agendas e expectativas”. “Neste momento, o que está a ser trabalhado é um diagnóstico das necessidades. Em termos legais, de saúde, em termos de cidadania num sentido amplo. Essa é uma das preocupações principais da câmara.”
A investigadora explica que este processo de articulação e de diálogo, incluindo com trabalhadores, é “uma experiência invulgar”, na qual reconhece “um grande potencial”. A aposta passa por afastar ideias preconcebidas, trazidas de modelos de outros países, para um olhar aprofundado sobre as especificidades da cidade. Ouvir o que as pessoas que estão neste trabalho dizem, ter em conta os estudos feitos até agora, aproveitar os recursos que já existem “poderia levar a uma estratégia de intervenção eficaz”, aponta. E encontrar um “modelo de Lisboa”? Talvez. “Não gostaria de confundir modelos normativos com o da plataforma… Mudar a lei não é uma prioridade aqui. A questão que se coloca é responder a necessidades.”
Literacia em cidadania
Depois de nos despedirmos de Catalina, que seguiu para a sua consulta de rastreio no Espaço Intendente, Júlio Esteves explica que é aquela a realidade que conhece: pessoas que têm dificuldade em trabalhar noutras áreas “e começam a fazer trabalho sexual como uma opção, como uma oportunidade, como a única coisa que conseguem fazer para pagar as suas contas”.
No caso das mulheres migrantes, o trabalho de proximidade é essencial. “Quando visito os apartamentos, vou numa questão de empoderamento, principalmente das mulheres. Muitas delas chegam cá mais vulneráveis porque não sabem que não estão ilegais mas sim irregulares, que é uma coisa muito diferente, ou que o trabalho que fazem não é ilegal.”
A brasileira Susana, de 55 anos, identifica-se como “empresária do seu próprio corpo”. Tem-lhe bastado passar recibos verdes como empregada de limpeza, que foi o trabalho que começou por fazer quando chegou a Portugal, há cerca de dez anos. “Eu trabalho com tudo no seguro, como deve ser. Se sou a minha empresa, tenho de ter tudo certo.”
Para além de imigrantes em situação irregular, como ainda era o caso de Catalina, há uma grande fatia de pessoas que, por exercerem uma actividade marginalizada, acabam por desconhecer os seus direitos. Nas diferentes associações, procuram apoio para processos que deveriam ser acessíveis a qualquer pessoa: saúde, segurança social, habitação, nalguns casos também formação e emprego.
“Muitas pessoas que exercem a actividade são pessoas com pouca... literacia em cidadania”, refere Laetitia. “Operam na informalidade absoluta. Não estão a fazer descontos para a segurança social e muitas nem sequer acreditam que isso é possível. Não estão a pagar impostos e acreditam que isso não é possível. Quando se diz que é possível e se faz as contas, a pessoa diz que isso não compensa... que é o que dizem todos os recibos verdes, não é?”
Abandonar a prostituição não é fácil, não apenas pela falta de alternativas economicamente viáveis, mas também pelo estigma que recai sobre as pessoas que procuram “sair da vida”. “Temos mulheres com percursos de décadas, isso já faz parte delas. Não vão procurar estilos de vida alternativos”, explica Carla Fernandes, das Irmãs Oblatas.
De olhos claros e cabelo loiro, Beatriz, de 65 anos, conta que começou a trabalhar em boîtes aos 23 anos, passando a trabalhar na rua quando regressou de um período em Espanha. Define-se como “comercial do corpo” e fala sem pudor das condições precárias do trabalho, que exerceu de forma intermitente ao longo da vida. Mas em casa este é um tema tabu. Neste momento, prestes a chegar à idade da reforma e com as pernas inchadas de uma operação recente, conta que ainda tem de ir “para a rua” para complementar o Rendimento Social de Inserção: menos de 200 euros que sustentam a si e ao filho mais velho, consumidor de drogas. “A Segurança Social havia de ter mais respeito por quem fez esta vida. O Estado havia de legalizar a prostituição para não andarem aí na rua desgraçadas.”
“Não lhe atribuímos o papel de vítima”
Para as Irmãs Oblatas, em Portugal há mais de 30 anos, o primeiro passo da intervenção é olhar para as mulheres que apoiam sem alimentar estigmas, diz a directora técnica, Carla Fernandes. E conta a história de como estas freiras deixaram de usar o hábito: se o fizessem, as pessoas saberiam que as mulheres que caminhavam ao seu lado eram prostitutas. Sem serem identificadas como irmãs Oblatas, passariam a ser apenas duas mulheres comuns a andar lado a lado. “Não lhe atribuímos o papel de vítima, tentamos dar ferramentas à mulher para pensar por ela.” E aceitar quando prefere não abandonar a prostituição.
O apoio dado pelas Irmãs Oblatas tem diferentes formatos: uma equipa de rua, que procura as mulheres para as informar sobre os serviços disponíveis, e o centro de acolhimento e orientação, onde prestam apoio psicossocial e também fazem o encaminhamento para serviços de saúde ou outros, conforme as necessidades das pessoas que o procuram.
Marisa, de 59 anos, trabalhou nas ruas durante o período em que a filha (que desconhece que trabalhou como prostituta) estava na universidade. “Não estou arrependida, valeu a pena. Cada uma com o seu caso, cada uma com o seu porquê.” Depois de alguns anos a trabalhar como cuidadora de um homem idoso, que faleceu no ano passado, Marisa viu-se doente, e sem condições de trabalhar. Encontrou na Obra Social das Irmãs Oblatas o apoio que precisava para sair de casa da filha, ajuda para procurar um quarto, entrevistas de emprego. No dia em que conversava com o P2, tinha finalmente começado a receber o Rendimento Social de Reinserção. “O pior é recomeçar. Pelo menos as coisas piores já passaram.”
Na origem da entrada na prostituição estão, por norma, situações de vulnerabilidade, de desigualdade social e económica. No caso de Marisa foi dar melhores condições para a filha, mas outros factores como a discriminação por género, etnia, questões LGBTI ou situação migratória podem deixar muitas destas pessoas em situações precárias que limitam o seu acesso a outros trabalhos e as empurram para o negócio do sexo.
E ainda existe muita dificuldade em ultrapassar o estigma, mesmo para quem abandona a actividade. “Conheço mulheres com capacidades e não conseguem arranjar trabalho porque há essa mentalidade de discriminação, continuam a ouvir ‘bocas’ e isso é muito foleiro”, relata Marisa. Mas, para as que decidem manter-se na prostituição, é preciso alterar as condições a que muitas estão sujeitas e melhorar a intervenção da polícia nos casos de violência. “Porque é que essas mulheres não podem ser defendidas? É quase como uma piada quando fazem queixa.”
O apoio psicológico é particularmente importante para ajudar as mulheres a lidarem com a discriminação que sofrem, conta a técnica Carla Fernandes: “Há uma série de situações em que o estigma é bem visível. Contactamos com mulheres de rua, em que há uma grande exposição.” Mas o que lhe custa mais ver, diz, é “a autoestigmatização, quando as mulheres não aceitam aquilo que fazem, porque sabem o que é que a sociedade lhes chama. São anos a integrar uma coisa menos boa”.
A “empresária” Susana, zelosa dos cuidados que deve ter, reforça a importância de garantir apoio psicológico a quem trabalha na prostituição. Não apenas para lidar com o estigma que recai sobre as mulheres, mas também para sustentar uma atitude firme ao lidar com clientes, não aceitando situações de risco. “Há pessoas que entraram há pouco tempo e não têm outra opção. Mas também precisam de estar preparadas para dizer não. Por isso é que eu insisto que o trabalho psicológico é importante”, aponta.
“Não estou aqui para discutir política, estou aqui para trabalhar”
A Obra das Irmãs Oblatas foi notícia em 2012, por causa do projecto safe house na Mouraria: o reaproveitamento de um espaço da CML para oferecer serviços de apoio e que também pudesse servir como uma cooperativa de prostitutas. Contudo, o projecto de um local onde as mulheres pudessem encontrar também “apoio médico e reencaminhamento profissional” acabou por não se concretizar.
“Foi um grande mal-entendido empolado pelos media. Era um projecto que ia ajudar muita gente, são direitos das pessoas que acabam adiados. Era uma pena que isso acontecesse com a Plataforma”, desabafa Júlio Esteves, do GAT, entidade parceira das Oblatas na proposta para a Mouraria.
Júlio, que actua como mediador com pessoas que fazem trabalho sexual em apartamentos, aponta a importância de conhecer os recursos que as outras organizações têm disponíveis. Se lhe ligam da zona do Marquês, por exemplo, há situações em que sugere que vá à APF buscar materiais. “Não temos concorrência, às vezes temos até dificuldade em saber onde estão as necessidades. E esta plataforma ajuda realmente.”
O técnico queixa-se do “atrito” criado por causa das recomendações da Assembleia Municipal, ao “converter uma coisa que não é um problema num problema”. “Quem está no terreno, como é o meu caso, sente que é uma perda de tempo. Há ideias muito boas a serem propostas, esta plataforma poderia ser uma maneira de melhorar a capacitação, para as pessoas decidirem se querem continuar ou não no trabalho sexual.”
Na última reunião da plataforma, já depois de aprovadas as recomendações da AML, reforçou essa convicção: “Eu não estou aqui para discutir política, estou aqui para trabalhar.”
Profissão ou opressão?
Trabalho sexual ou prostituição? O debate desencadeado na Assembleia Municipal de Lisboa deve agora estender-se às reuniões do executivo da capital. “O trabalho de coordenação dos diferentes contributos sobre esta matéria tendente à definição de uma estratégia municipal está a ser ainda desenvolvido e oportunamente será divulgado”, respondia o departamento de comunicação da Câmara de Lisboa por email, no final de Julho.
Falta consenso quanto ao enquadramento que é preciso dar ao tema. De um lado, os vereadores do PCP e do CDS-PP que defendem estratégias locais de intervenção na área da prostituição, apoiados por vozes como a associação O Ninho, o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM). Para os comunistas, que propuseram as recomendações aprovadas na AML, trata-se da utilização de definições “que não são questões de semântica”.
Carlos Moura, vereador do PCP, explica que a proposta de estratégia do partido para a área da prostituição pretende regressar “ao quadro de promoção da igualdade entre géneros e da luta contra todas as formas de violência”, sublinhando, contudo, que “a seriedade do problema” obriga a que se procurem “pontos comuns”.
Já a proposta do pelouro dos Direitos Sociais é apoiada pela maioria das estruturas no terreno que dão suporte a estas pessoas na cidade. O ex-vereador Ricardo Robles, a que coube o pontapé de saída para a criação da Plataforma Lisboa — Trabalho Sexual, referiu no início de Julho, quando ainda ocupava o cargo, que preferia não fazer declarações até novas reuniões de câmara.
O enquadramento da prostituição como trabalho sexual é mais comum na área da saúde, desde as recomendações propostas pela Organização Mundial da Saúde à abordagem do Serviço Nacional de Saúde em programas como o Autoestima (da Administração Regional de Saúde do Norte) e a adesão dos municípios de Cascais, Lisboa e Porto à rede internacional “Cidades na via rápida para acabar com a epidemia VIH”, da ONUSIDA. O relatório que levou à adesão à rede referia “homens e mulheres que praticam sexo remunerado” como populações mais vulneráveis, para as quais é preciso “melhorar e agilizar os procedimentos de acesso aos cuidados de saúde”. Também as organizações de defesa dos direitos humanos como a Amnistia Internacional, o Human Rights Watch e, desde Junho, a ILGA Europe, defendem o uso da expressão “trabalho sexual” e insistem na descriminalização da actividade.
Mas para O Ninho, o MDM e a PpDM — assim como para várias organizações internacionais e feministas célebres como Gloria Steinem —, a expressão carrega uma ideia de normalização da prostituição como um trabalho e sugere a sua legalização ou regulamentação. Para elas, a prostituição voluntária — aceite na noção de “trabalho sexual” — não existe. Estas organizações recusaram participar numa plataforma com esse nome e depois de se reunirem com a vereação lançaram a petição pública “Pela defesa da dignidade das mulheres – prostituição não é trabalho”.
“Essa colaboração poderia ter sido resolvida se tivesse aceitado a sugestão de denominar ao dito plano o nome de plano local de intervenção na área da prostituição”, afirmava Lily Nóbrega, do MDM, numa exposição à Assembleia Municipal de Lisboa logo a 10 de Abril, um dia depois da primeira reunião da Plataforma. “Foi isso que dissemos ao vereador [Ricardo Robles]: se a câmara alterar esta denominação, com certeza fazemos parte desta plataforma”, conta Dália Rodrigues, directora técnica da associação O Ninho. “Como é que nós, conhecendo as mulheres, podemos aceitar que exista uma plataforma com este nome?”
“Que tipo de opção é que se tem?”
O Ninho trabalha há 50 anos em Portugal na reinserção social das mulheres prostituídas. É a única organização dedicada à intervenção na área da prostituição em Lisboa com uma perspectiva política abolicionista. A associação vê a prostituição como um mal a ser erradicado e uma forma de violência contra as mulheres. “Para nós, normalizar uma violência é uma regressão em termos civilizacionais”, sublinha a directora técnica.
Dália Rodrigues conta que as mulheres que chegam ao Ninho relatam que a actividade foi uma opção que tiveram de tomar numa determinada fase da vida, que esperam ou esperavam ser temporária. “E também aqui opção é uma coisa muito relativa. Como é que se tem opção se não há mais opções? Que tipo de opção é que se tem?”
É por isso que a acção d’O Ninho implica acompanhar as mulheres de forma a que possam abandonar a actividade e combater os constrangimentos estruturais que as levam à prática de sexo remunerado. Em Lisboa, têm um lar de acolhimento, com capacidade para 12 pessoas (mulheres e, muitas vezes, os filhos), e um centro de atendimento, onde funcionam também oficinas de artesanato e apoio psicossocial. Desde 2001, têm um protocolo com a câmara que permite empregar mulheres nos serviços da CML, trabalho pelo qual “fazem descontos para a Segurança Social, muitas vezes pela primeira vez”.
Dália Rodrigues rejeita a referência à prostituição como trabalho sexual. “O trabalho é algo que nos dignifica de alguma forma, que nos inclui na sociedade. Por muito simples que seja esse trabalho, por muito mal remunerado que seja, é algo que nos dá acesso a direitos plenos como cidadãos.” Aliás, O Ninho, MDM e PpDM defendem que o uso do termo vai contra convenções da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e para a Supressão do Tráfico de Pessoas e Exploração da Prostituição de Outrem.
Mas esta visão não é unânime. A começar porque estes documentos referem, por norma, o combate à “exploração da prostituição” — que muitas associações feministas associam a qualquer forma de prostituição, ao contrário do que indicam os estudos realizados em Portugal. Os investigadores sublinham que é importante separar a prática livre do que é exploração e tráfico de pessoas. “Existem situações de exploração, mas a maioria das pessoas escolhe este trabalho”, recorda a investigadora Mara Clemente.
E a propósito do alerta das associações de que não se pode separar o fenómeno da prostituição do tráfico de pessoas, a investigadora do ISCTE responde: “Há uma tendência para puxar o discurso para o tráfico, mas quem está no campo sabe que são situações distintas.” Mara Clemente não fala de cor. Nos últimos anos, tem estudado a forma como as vítimas de tráfico são recebidas pelo sistema de acolhimento português. Sublinha que o tráfico de pessoas é caracterizado por abusos e opressão, e que deve ser combatido. “Não significa que mulheres no mercado do sexo não tenham vivido momentos difíceis”, ressalva, mas são situações diferentes que devem ter respostas políticas diferenciadas.
No ano passado, publicou uma análise aos dados do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH) entre 2008 e 2014, onde se conclui que a principal forma de exploração identificada é a laboral (43%), seguida pela sexual (39%), entre os 1064 casos identificados em Portugal. Mara Clemente reconhece que existem potenciais problemas de sinalização de pessoas que possam estar a ser traficadas, mas defende que chegar a pessoas nessa situação “requereria um trabalho de proximidade e não autoridades”.
E será possível vir a conciliar visões tão distintas sobre a mesma realidade em prol dos direitos das pessoas que fazem da prostituição o seu trabalho? “Talvez seja pessimista, mas não sei se vamos conseguir consensos. Se calhar, vamos conseguir tolerâncias”, arrisca Carla Fernandes. “Se nos conseguirmos desprender das nossas convicções — principalmente das nossas — e estarmos mais abertos aos outros, talvez encontremos aqui pontos comuns, temos que nos focar nisto.”
Beatriz, Catalina e Marisa são nomes fictícios