O irmão português de Marine Le Pen
É aí que Bloco, PCP e Frente Nacional se revelam filhos da mesma mãe – todos acomodam práticas populistas e iliberais em nome do seu “bem”, seja o “pobre” ou o “francês”.
No PÚBLICO de sexta-feira, o bloquista João Teixeira Lopes acusou-me de ser “o amigo português de Marine Le Pen” e aconselhou-me a ir escrever para o Observador. Como quem diz: este gajo está a mais por aqui. Parece haver cada vez mais gente a querer transformar o PÚBLICO no Observador das esquerdas, pago pelos capitalistas que tanto dizem desprezar. Quando Belmiro de Azevedo morreu, o PCP opôs-se a um voto de pesar na Assembleia da República e o Bloco de Esquerda absteve-se. Mas para fazer do PÚBLICO uma versão premium do Esquerda.net o dinheiro do Continente já parece magnífico.
Contradições que não espantam em quem não percebeu nada do meu texto. Caro João Teixeira Lopes: o amigo de Le Pen não sou eu; o amigo de Le Pen é você, enquanto militante do Bloco de Esquerda, ex-compincha de Hugo Chávez e defensor da tese “Lula da Silva é um preso político”. Dispenso explicar que a Frente Nacional cresceu em cima do antigo eleitorado do Partido Comunista Francês e que a transferência directa de votos da extrema-esquerda para a extrema-direita está bem documentada. Quando chamei “irmãos desavindos” a Marine Le Pen e a Boaventura Sousa Santos, expliquei porquê: “Ambos admitem o uso de políticas autoritárias e cerceadoras das liberdades individuais como forma de alcançar objectivos ideológicos, e a tolerância para com essa mecânica autocrática é muito mais importante do que qualquer diferença nos objectivos que pretendam alcançar.”
Para o caso de alguém não ter percebido, eu explico melhor. A extrema-esquerda tem muito melhor imprensa do que a extrema-direita, e sobreviveu com mais facilidade às barbaridades que cometeu ao longo do século XX, por uma só razão: as suas intenções podem ser (e continuam a ser) vendidas como excelentes. A extrema-direita quer que os imigrantes se lixem – é pouco sexy. A extrema-esquerda quer que os pobres deixem de ser lixados – é muito sexy. O problema, como bem demonstraram os últimos 100 anos, é que de boas intenções está o Inferno cheio. Aquilo que assegura a decência de um regime não são as boas ou más intenções dos seus políticos, mas um certo número de regras fundamentais, que constituem a coluna vertebral das democracias liberais: voto universal, separação de poderes, sistema de pesos e contrapesos, liberdade de associação e de expressão, respeito pela propriedade privada e pelo mercado livre, alternância pacífica de governos.
Esta estrutura, para um verdadeiro liberal, precede as discussões ideológicas conjunturais. A partir dela podemos discutir se somos mais de esquerda ou de direita, mas sempre no quadro do demoliberalismo. O problema dos partidos dos extremos, tanto à esquerda como à direita, é que põem em causa esses fundamentos, em função daquilo que são os seus objectivos políticos. O PCP é a melhor prova disso mesmo, com o seu patético apoio aos regimes mais abjectos, desde que vagamente comunistas. Mas também o Bloco de Esquerda sujou as mãos com a Venezuela de Chávez, com a ETA não-terrorista ou com o “prisioneiro Lula”. Desde que praticadas em nome dos mais fracos e dos bons princípios socialistas, as derivas autoritárias, a corrupção ou a estatização descabelada passam a ser subitamente aceites, quando não aplaudidas. É aí que Bloco, PCP e Frente Nacional se revelam filhos da mesma mãe – todos acomodam práticas populistas e iliberais em nome do seu “bem”, seja o “pobre” ou o “francês”. Já eu não aceito essas práticas – nunca, em nome de nada. Fiz-me entender?