O pastor das cabras-gestoras
Elas, sozinhas, comiam o mundo, por isso é que está lá Hugo Novo. Assim, as cabras comem as giestas, a urze, o tojo, as silvas e com isso gerem a biodiversidade da montanha e limpam-na de combustível para prevenir incêndios. Oficialmente, não são “cabras-sapadoras”; na prática, são-no – desde muito antes do projecto de lei.
O clima até pode estar “torcido”, mas “para o pastoreio é óptimo”. “A serra está carregada de florzinhas e húmida”, aponta Hugo Novo. Porém, no terreno diante de nós, que se estende em socalcos até empinar coberto de arvoredo, o que sobressai são os fetos, altos, verdes, carnudos. No meio deles, as cabras, aparentemente ensimesmadas.
“Meninas! Anda, anda, anda, anda! Vamos, vamos, vamos, vamos!”
Começam a descer, filas indianas que surgem de vários lados. É hora da foto de grupo e são um pouco mais de 50 as que Hugo quer reunir à sua volta — as mais pequenas, 18, já recolheram ao estábulo. O seu rebanho tem 70 cabras mais um macho — já foram 130 —, Hugo sabe o nome de todas. “Fomos [ele e a mulher, Laura] professores. Estamos habituados a memorizar centenas de nomes em duas semanas.” Os nomes são, sobretudo, úteis quando estão a fazer asneiras, nota, como entrar em campo proibido ou a comer fetos — e também, veremos, quando se empoleiram num muro para chegar às videiras alinhadas em latadas.
Aqui, neste terreno do baldio de Sistelo, nas traseiras da antiga casa do guarda-florestal, agora abandonada, parecem entreter-se mais a mastigar o que encontram entre os fetos. “Comem poucos fetos, que até têm alguma toxicidade, e apenas no pico do Verão”, explica Hugo Novo. Menos mal, porque não são os fetos que elas devem comer. Giesta, tojo e urze constituem a dieta definida para elas — afinal, são parte da biomassa que “adora fogo” nesta serra de Arcos de Valdevez, paredes meias com o Parque Nacional da Peneda-Gerês.
E os incêndios foram um dos motivos pelos quais Hugo Novo e a mulher decidiram criar um rebanho de cabras em Sistelo — muito antes do projecto-piloto de “cabras sapadoras” ser apresentado como uma das medidas de gestão de combustível florestal na rede primária. Hugo e Laura Moura, professores (ele com uma aproximação invulgar: guitarra na mão para uma Geologia encantada com letras dos alunos em ritmo reggae, rap, blues...) de formação, formadores por complemento, activistas ambientais por convicção (do tempo com a Associação Almargem resultou a obra Palavras de Pedra – Histórias das Rochas do Algarve) e agricultores por paixão, de Viana do Castelo, instalaram-se em Sistelo quase por acaso. Numa altura em que queriam “regressar ao campo”, no sentido de retomar a actividade na agricultura biológica que já tinham tido em Viana do Castelo (na horticultura, fruticultura e na produção de cogumelos em palha), foram colocados numa escola em Tangil.
Haviam passado seis anos no Algarve e há dois anos que não tinham colocação — iam deixar o ensino: “Andámos sempre oscilantes entre o ensino e a agricultura.” Passaram a cruzar todos os dias Sistelo. “Já conhecia bem a Peneda, mas este vale do Vez não.” “Pensámos que seria um sítio giro para ter uma casa”, recorda Hugo, sobretudo porque tudo apontava que as suas carreiras de professores iriam continuar pela zona, “entre Arcos e Monção”. Na Internet fizeram as suas pesquisas e encontraram aquela que é agora a casa deles à venda, pronta a habitar. “Apesar de termos horta, nunca daria para viver da agricultura”, nota, “mas da serra sim. Pensámos: o que é que não há aqui?”. Já praticamente não havia cabras e isso, aliado às queimadas no Inverno, indicaram-lhes o caminho: a caprinicultura e, com ela, a gestão, que é também preservação, do ecossistema. Um ecossistema com um predador natural, o lobo: se quando chegaram era comum perderem seis, sete cabras, este ano, depois de dois anos sem ataques, perderam uma, a Nina, em Fevereiro. “Já dizíamos que seria a próxima, sofria de bullying nas cortes.”
Algumas mudanças foram feitas, incluindo uma quebra de tradição. “As nossas cabras não usam chocalho”, nota. Por vários motivos: os animais nos estábulos com os chocalhos eram “insuportáveis; são um chamariz para o lobo — se os chocalhos são uma espécie de GPS para os pastores, também o são para os lobos (“imaginava-os lá em cima a afiar os dentes sempre que saíamos”); e retiram a personalidade ao rebanho, “vira cardume” — “cada vez que retirávamos um parecia que as cabras olhavam o mundo pela primeira vez”.
Porém, do que elas mais gostam não é de olhar o mundo, é de comê-lo. E é (também) para isso que elas cá estão, comer a urze, que predomina nas encostas a norte, o tojo e a giesta, que crescem a sul — e nada mais. “O problema é que elas não comam tudo”, explica Hugo Novo, neste tipo de pastoreio que não é confinado por vedações e se destina a “gerir matagais”. Por isso, é necessário geri-las segundo um calendário específico que respeite os ciclos naturais. “Levo-as quando as plantas são mais apetitosas para elas.” Por exemplo, a urze tem de ser quando não tem flor; na giesta e no tojo já adoram a flor. Se vão para um terreno sem estas “condições”, comem o que se pretende proteger. E comem um quilo de matéria seca por dia.
Hugo Novo é um dos compartes do baldio de Sistelo — dos 2500 hectares disponíveis, 15 foram-lhe atribuídos. “Na prática, a área de acção chega até aos 50 hectares”, reflecte. Diz que a chegada das cabras ao terreno onde estamos hoje o tornou transitável, “as silvas diminuíram drasticamente”, nota (elas adoram silva, todo o ano). O seu rebanho mistura cabras das raças bravia e serrana (ecótipo transmontano), mas “a bravia é melhor para aqui”. “São melhores gestoras e estão mais adaptadas ao território e aos recursos alimentares disponíveis”, sublinha.
Todas têm é personalidade forte. A Linda (“da família das “Giras”) é a que tem “mais tendência a infringir as regras”, por isso, normalmente, é a que leva o aparelho GPS, a Maravilha é “viciada em festas”, até nos cornos, mas não podemos agarrá-la, “já é mãe”... E são imprevisíveis q.b.. Descemos para a corte e elas vão pela estrada, atravessam as encostas. A Mar (olhos azuis), a Fumaça, a Raiada, a Andorinha...
“Ó Preta! És sempre a primeira.”