Da Bélgica nasceu uma casa algarvia, com certeza

Trocaram a Bélgica por uma nova vida no barrocal algarvio, onde renovaram uma quinta centenária com cinco espaçosos quartos e uma piscina sobre a serra. No Farmhouse of the Palms o sotaque é belga — mas a alma é algarvia.

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Era Fevereiro. Caía um pranto sobre a serra algarvia. E a esperança começava a esmorecer.

Há três anos que Frank e Veronique tinham decidido trocar a Bélgica por Portugal. E há três anos que regressavam, pelo menos durante uma semana por ano, só para ver propriedades. Vinham com tudo previamente agendado e eram dias a percorrer a região, “às vezes das 9h às 17h”. Por aquela altura, já tinham visitado “umas 150 casas” e nenhuma lhes tinha enchido as medidas do sonho. “Estávamos quase a desistir”, confessam.

Até que naquele dia de Fevereiro, com um céu carregado a lembrar mais a terra natal do que o destino que tinham idealizado, pegaram no carro alugado e subiram pela estradinha que vai de São Brás de Alportel ao topo do Cerro do Botelho. “Foi amor à primeira vista”, conta Frank Persyn, de calções, chinelos de enfiar no dedo e um sorriso acolhedor. O edifício, resume, tinha “uma alma inexplicável”. “Ficámos apaixonados.”

Ainda hoje, corridos cinco anos desde essa primeira visita, não lhes peçam para enumerar o que fez desta a casa perfeita. Afinal, o amor não se explica e a alma é um daqueles conceitos difíceis de definir. “É como uma velha senhora”, sorri Frank, a mão dócil sobre a parede caiada. A senhora, algarvia com certeza, terá cerca de 200 anos. Pelo menos a ala principal, que os anexos foram nascendo à medida das necessidades, visíveis pelos desníveis dos telhados e pelas diversas chaminés tradicionais que os povoam.

Era neste edifício que moravam os donos da quinta, outrora produtora de vinho, azeitonas e mel. E é aqui que ficam agora os cinco quartos da unidade hoteleira, assim como as diferentes salas de estar, que se sucedem em cascata (há biblioteca, honesty bar, um telescópio e uma mesa repleta de sugestões para descobrir na região, entre sofás e mesas). Mais a sala do pequeno-almoço — “o único sítio onde não vai querer estar”, atira Frank ao passarmos por ela. Significa que a meteorologia não está de feição. Porque, caso contrário, a primeira refeição do dia é servida lá fora. É dali que Frank faz contas ao Verão atípico: “No ano passado, abrimos de Abril a Novembro e servimos o pequeno-almoço lá dentro sete vezes. Este ano, só num mês e pouco, já foram mais de 20.”

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Teremos sorte. O fim-de-semana está de sol radioso e o pequeno-almoço há-de chegar-nos à mesa, numa sucessão generosa, à sombra da grande alfarrobeira do jardim. Primeiro um smoothie caseiro, depois tostas de abacate e de ovos mexidos com tomate e pimenta. Sumo de laranja natural, café, fruta, um cesto de pães e croissants, mais um prato de queijos e outro de fiambres. E, sobre a mesa do fundo, ainda há cereais, iogurtes, papas de aveia, doces, mel, frutas e bolo caseiro à discrição.

Três amores

Não deixa de ser curioso que Frank e Veronique tenham chegado a Portugal por mero acaso. Tinham visitado Lisboa há muitos anos, mas Espanha foi o primeiro amor. “Gostávamos muito, íamos todos os anos”, recordam. “Numa dessas viagens fomos à Estremadura. Estávamos a passear de carro e, já não sabemos porquê, decidimos passar a fronteira e fazer a estrada até Évora”, conta Frank. “As flores!”, reage Veronique. “Como era Primavera, os campos estavam cobertos de flores, de cores diferentes. Lindo, lindo, lindo.” “Nunca mais largámos Portugal”, sorri Frank. O país vizinho acabava trocado por um segundo amor: o Alentejo.

Entretanto, a instituição bancária onde ambos trabalhavam, em Antuérpia, declarou falência. Acabou por ser resgatada, mas a situação foi “um abre olhos”, descreve Frank, num português notável. Perceberam como podiam “perder tudo de um dia para o outro”, presos a um trabalho que “não era real” e num país que, apesar de ser o deles, “não lhes fazia falta”. Com receio de que as temperaturas extremas do Alentejo pusessem em causa o investimento no novo projecto turístico — e a total mudança de vida — trocaram-no pelo que é hoje o terceiro amor. O Algarve serrano, tranquilo, mais tradicional. Com vista para o verde seco da ruralidade, o branco da vila de São Brás de Alportel e, com alguma dose de imaginação, para uma língua de mar lá ao fundo.

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“Não queríamos que fosse na costa. Mesmo Tavira e Loulé já estão cheias de estrangeiros. Mas São Brás de Alportel ainda é genuína. Pode não ser a mais bonita, mas ainda é autêntica”, resume Frank. No restaurante onde jantamos, confidencia, só há cerca de dois meses o menu ganhou uma versão em inglês. Um ano depois de comprarem a propriedade, mudaram-se para Portugal, já com o pequeno Jules. No dia seguinte, contam, puseram mãos ao trabalho na reconstrução.

Na tela branca, brilha o Algarve tradicional

Contamos tudo isto porque o que se vê em volta é consequência directa da dedicação pessoal do casal e do carinho pela região. Nenhum pormenor foi deixado ao acaso. Algumas divisões foram eliminadas para criar espaços mais amplos, plenos de luz. Mas a estrutura principal foi integralmente recuperada. Cada ala cobre-se de branco, decorada de forma moderna, elegante, extremamente minimalista; como se a tela se despisse para fazer sobressair apenas os apontamentos mais tradicionais. Como as paredes grossas, as molduras de pedra das janelas e portas, o antigo forno do pão ou a velha lareira da cozinha — “esteve cá o senhor José, o membro mais velho ainda vivo da família que era dona da casa, e ele ainda se lembra de cozinharem aqui”, conta Frank.

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As pedras da calçada exterior, por exemplo, vieram da pedreira que ainda opera na povoação vizinha. Alguns móveis foram desenhados pelo casal e feitos numa carpintaria local. Enquanto as telhas e os ladrilhos “tinham de ser” os rústicos Santa Catarina, produzidos numa empresa artesanal do município. “As riscas mais claras são feitas pelos trabalhadores, que passam os dedos por cada peça. Assim não há duas iguais”, indica Frank. Em cada recanto, um detalhe regional: cestos de verga, tapetes de trapos ou de empreita, barros, pequenos bancos de madeira, sardinhas e atuns da costa, searas do campo e fotos do Algarve antigo, feito de pescadores e burros carregados de alforges pesados.

Frank, Veronique e Jules, de cinco anos, vivem no segundo edifício da propriedade, mesmo ao lado da casa principal, construído em 1888 para albergar os trabalhadores da quinta. São eles que diariamente recebem os clientes e garantem que nada lhes falta. Mas a presença dos proprietários — ou mesmo dos outros hóspedes — dificilmente se torna intrusiva. Além da piscina comum, com vista para a serra, cada quarto tem um espaço exterior privado, com camas de rede e espreguiçadeiras (um deles tem inclusive uma cama lá fora, no topo do edifício, para sonhos sob as estrelas). E o jardim vai semeando recantos entre os canteiros, com bancos, camas de dossel ou uma “sala de estar” à sombra dos antigos estábulos. Se a casa tinha uma alma, Frank e Veronique voltaram a dar-lhe vida.

A Fugas esteve alojada a convite da Farmhouse of the Palms

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