Vou ser clara — estou amplamente comprometida com o Boom Festival e com a prevenção, informação e apoio nos usos de drogas e outras necessidades a quem nele participa. Sou parte orgulhosa de um conjunto que pode ver de perto como lá acontece algo que pode muito bem ser comparado a uma utopia. Conhecendo o que é o Boom há muitos anos, também eu me revolto com a forma degradante com que é sistematicamente visto. Fui ao Boom pela primeira vez em 2002 com uma motivação igual à do senso comum — tinha um interesse na investigação sobre drogas e queria perceber em primeira mão como os seus usos estavam a mudar. Voltei em 2004, em 2008 e, desde esse ano, tenho ido a todas as edições.
No Inverno de 2007 apercebi-me de um recrutamento internacional para um projecto no Boom chamado Kosmicare, um serviço para pessoas desafiadas pelas experiências com substâncias. Eu nunca tinha ouvido falar em nada do género e candidatei-me. Era já psicóloga e investigadora na área das drogas mas não tinha qualquer outro dos perfis necessários — não era uma utilizadora experiente, nunca tinha tido uma bad trip, nunca tinha apoiado ninguém nessa situação. Contra a expectativa fui recrutada e integrei a equipa pela primeira vez em 2008.
Essa oportunidade mudou a minha vida ao permitir-me entrar numa comunidade de seres humanos que investiam o seu tempo e recursos para estar ali de dois em dois anos, motivados mais pela vontade de estar presentes para qualquer desconhecido/a que estivesse a viver um episódio de crise psicadélica do que para desfrutar do festival. Faziam-no com o apoio da organização que emparelhava apenas com outro evento nos EUA o investimento num serviço do género. O Boom começou o Kosmicare em 2004, mas essa tradição não foi inaugurada ali — desde Woodstock que existem áreas reservadas para apoiar quem é apanhado de surpresa ao levar demasiado longe o desejo de viver intensamente a experiência de um festival. À época, porém, esta iniciativa em Portugal era verdadeiramente única, um cenário que em 14 anos não se alterou.
Com o tempo vim a testemunhar como esta era apenas uma peça no minucioso puzzle de cuidados únicos que o Boom oferecia aos seus visitantes. Em 2002, um ano após a entrada em vigor da lei que descriminalizou o consumo de todas as substâncias ilícitas e que regulou a actividade da redução de riscos e minimização de danos (RRMD), o Boom ofereceu pela primeira vez informação sobre substâncias e riscos associados aos seus usos. Em 2006 acolheu um serviço de análise química de substâncias que manteve em todas as edições até ao presente, sempre ao abrigo de um alvará cedido pelo Estado português por intermédio do actual SICAD, autorizando a que durante aquela semana o festival albergue um ponto de contacto e informação destinado à oferta desses serviços.
A análise química de substâncias que se faz no Boom tem vindo a evoluir e é, no presente, dos serviços mais sofisticados de informação e RRMD que podem ser prestados em ambientes recreativos. O que se faz não é uma simples aplicação de reagente que identifica a presença de uma substância. Também se identifica a presença de quaisquer adulterantes contidos numa amostra. E este ano foi possível quantificar nessa amostra a percentagem de cada componente — uma inovação fundamental numa altura em que circulam nos mercados de drogas europeus substâncias com pouca adulteração mas alta dosagem, que envolvem risco para a saúde e para a vida de quem as usa. Estas estratégias configuram uma oferta única de serviços integrados oferecidos pela recentemente criada associação Kosmicare — uma associação sem fins lucrativos que nasceu da vontade de intervir, investigar e advogar por práticas promotoras de saúde e segurança em ambientes de lazer nocturno. Desta forma as boas práticas de intervenção promovidas pelo festival passam a poder transferir-se para outros ambientes e espaços-tempo de lazer nocturno.
De uma vez por todas, o que o Estado português investe em tudo isto é quase nulo. Promulga um alvará a cada dois anos e está presente numa parceria iniciada em 2010 que envolve financiamento zero a todos estes esforços, suportados quase integralmente pelo Boom. Ora a RRMD é, há duas décadas, reconhecida no nosso país como uma área de missão tão importante como a prevenção ou o tratamento. Isto significa que a organização do Boom não deveria estar sozinha num investimento que representa, em cada edição, 100 mil euros de custos para cobrir cerca de 40 mil participantes nacionais e internacionais, 400 episódios de problemas de saúde mental motivados ou não por consumos, 20 mil pessoas informadas sobre riscos inerentes ao consumo e 700 contactos para análise química de substâncias. Estes números não dizem nada sobre uma multitude de outras estratégias de prevenção ambiental, como a contratação de cuidados médicos especializados em eventos de massa, a disponibilização de água potável num recinto de 150 hectares, o plano de segurança único para prevenção de incêndios, entre outras medidas de promoção da segurança e bem-estar.
Este investimento também não diz que este é um “festival da droga". Diz, antes, que esta é uma atitude diferente da dos outros promotores de eventos que optam por ignorar que o uso de drogas está normalizado e é socialmente transversal, assumindo responsabilidade por cuidar das pessoas. O Boom não precisaria de nada disto para vender as entradas que se esgotam em 30 minutos e antes do anúncio de qualquer programação. No entanto, o que promove não é só um cuidado excepcional às pessoas — é um investimento consistente com a promoção da saúde e RRMD que permite ficar a saber mais sobre como se deve trabalhar no apoio nesta área em Portugal, na Europa e em todos os sítios onde existem pessoas que escolhem usar drogas.
Portugal tem hoje 274 festivais de música por ano. Cidades como Porto e Lisboa pulsam de actividade económica trazida pelo turismo. Nenhum desse investimento está a ser devolvido às pessoas com a criação de condições para que possam divertir-se protegidas de riscos para os quais temos hoje, graças ao Boom, experiência e conhecimento suficientes para gerir. Se perceberem isto estarão em condições de perceber por que razão no início usei a expressão “utopia" para me referir a este festival.