O desencantamento de Matt Groening
Depois de Os Simpsons e Futurama, o animador norte-americano tem a sua terceira série animada. Disenchantment, uma comédia de fantasia épica medieval sobre uma princesa rebelde, chegou esta sexta-feira ao Netflix.
A comida favorita de Bean é cerveja. Adora sair à noite, jogar, beber e meter-se em encrencas, divertindo-se o mais que pode para se distrair do destino que lhe foi traçado à nascença. É que Bean, ou Tiabeanie, é filha do rei de Dreamland, Zøg, que só conhece duas profissões para mulheres: princesa ou freira. Bean não quer, nem consegue, desempenhar nenhuma dessas tarefas. Vive uma existência bastante solitária, até que, por uma série de peripécias, ganha dois amigos que passam a acompanhá-la nas suas desventuras: o seu próprio demónio pessoal, Luci, que é parecido com um pequeno gato preto e cuja missão é desencaminhá-la, e Elfo, um elfo fugido de um reino de elfos que é feito de doces, conformidade e felicidade.
É esta a premissa de Disenchantment, a nova série animada de Matt Groening. Há quase 20 anos, desde o início de Futurama, que o responsável por Os Simpsons não criava um novo universo. E, pela primeira vez na carreira de Groening, esta história de fantasia épica medieval está centrada numa personagem feminina. É uma pessoa tão ou mais falhada do que os seus protagonistas homens, algo que infelizmente ainda hoje é raro, seja na comédia ou na ficção em geral. Os primeiros dez episódios – a primeira temporada foi dividida em duas partes – estão disponíveis no Netflix desde esta sexta-feira.
Co-criada por Matt Groening e Josh Weinstein, que trabalhou nas séries anteriores do animador, Disenchantment tem o tom que se esperaria de algo com tal pedigree. É mais próxima de Futurama, e tem muitas referências à cultura pop, subversão de estereótipos dos géneros que servem de inspiração e gags visuais que recompensam a atenção redobrada dos espectadores. O formato é influenciado pelo facto de ter sido feita para uma plataforma de streaming: há mais liberdade para variar a duração de episódios – que podem chegar a passar a marca dos 35 minutos – e uma vontade de contar uma história ao longo de vários capítulos.
Não é a melhor série de Matt Groening, mas tem potencial e alguma frescura. Mesmo que às vezes não tenha a melhor escrita e as melhores piadas, vê-se bem. Nada de alarmante, aliás: tirando os episódios com Albert Brooks e outras raras excepções, a primeira temporada de Os Simpsons também não era propriamente representativa daquilo que a série viria a ser em termos de qualidade. Foram precisos mais de dez episódios para chegar àquilo que acabaria por representar.
Já o elenco está recheado de vozes repetentes do universo de Groening nos papéis secundários: andam por lá John DiMaggio, o Bender de Futurama (e o Jake de Adventure Time), Tress MacNeille, Maurice LaMarche ou Billy West. Mas os papéis principais cabem a pessoas com menos andamento. Bean, a princesa que luta contra as restrições que lhe são impostas pela sociedade e contra o pai, é a hilariante Abbi Jacobson, co-criadora e co-protagonista de Broad City, a brilhante série cómica da Comedy Central que ainda hoje, inexplicavelmente, não pode ser vista na televisão portuguesa.
Já Luci, o demónio, é Eric André, a força da natureza que tem o seu próprio anti-talk show em The Eric Andre Show, alguém que praticamente nasceu para fazer uma personagem cujo propósito é lançar o caos e a traquinice; Elfo é Nat Faxon, que fez parte do elenco da péssima Friends from College, também do Netflix, e em 2011 ganhou um Óscar por ter co-escrito o guião de Os Descendentes, de Alexander Payne.
Além destas vozes, podem ouvir-se também alguns dos mais fiáveis nomes da comédia britânica dos últimos 20 anos, tal como Matt Berry, que tem um dos mais deliciosos sotaques do mundo e fez séries como Toast of London e Snuff Box – o norte-americano Rich Fulcher, que fez carreira no Reino Unido e dividiu essa série de sketches com Berry, é produtor e argumentista de Disenchantment –, Noel Fielding, da dupla The Mighty Boosh, ou Sharon Horgan, de Pulling e Catastrophe.
Os nomes sonantes envolvidos na série não se ficam só pelas vozes: a música está a cargo de Mark Mothersbaugh, o homem dos Devo que até há uns anos fazia as bandas sonoras dos filmes de Wes Anderson.