Carlos Caldas: “Vamos transformar muitos cancros numa doença crónica”
Investigador português que se tornou uma referência na investigação sobre cancro da mama não vislumbra uma possível cura para esta doença, mas acredita que vamos curar mais e, sobretudo, tratar melhor os tumores.
É impossível fazer uma pesquisa sobre as descobertas na área do cancro da mama sem encontrar o nome de Carlos Caldas. As notícias mais recentes sobre o seu trabalho falam sobre a identificação de uma espécie de “código de barras” no ADN dos tumores. Encontrámos o investigador português que lidera uma equipa de cientistas no Instituto de Cambridge para a Investigação do Cancro, no Reino Unido, numa conferência em Darmstadt, na Alemanha, a propósito dos 350 anos da Merck, e não quisemos perder a oportunidade para falar sobre os mais recente avanços na compreensão do cancro da mama que todos os anos soma cerca de seis mil novos casos em Portugal. Carlos Caldas, convidado pela revista Nature nesta conferência, revela-se um optimista cauteloso. Diz que o cancro da mama pode ser visto como uma floresta onde existem 11 tipos de árvores diferentes. Ele quer ajudar a destruir – ou, pelo menos, diminuir – esta maldita sombra.
Publicou um artigo recentemente sobre um “código de barras” no ADN do tumor que pode garantir um tratamento personalizado para o cancro da mama.
A ideia é fazer a sequenciação completa dos cancros. Os doentes fazem uma biópsia ou uma operação e assinam um consentimento informado para fazermos a sequenciação completa do ADN e ARN. Estamos a oferecer isso na clínica reportando os resultados de volta para o doente, validados e já com uma recomendação de um painel de especialistas na área da oncologia e genética. Fazemos uma recomendação clínica sobre qual será a influência de saber a sequência completa do genoma do cancro, ou seja, sobre como deve ser feita a gestão clínica daquele doente.
Isto já foi feito para quantos doentes?
Abrimos este estudo há mais ou menos 20 meses. Completámos um projecto-piloto e, segundo os dados mais recentes que tenho neste momento, temos 320 doentes. E temos agora os fundos para fazer os próximos dois mil que queremos recrutar nos próximos quatro anos com o foco nos doentes que estão a participar nos ensaios clínicos.
Que tipo de dados se pode obter com este trabalho e que resultem numa aplicação clínica?
Podemos encontrar, por exemplo, mutações nos genes BRCA1 e BRCA2, [genes que podem ter mutações que já foram associadas a um risco aumentado de desenvolver cancro da mama] e aí a grande surpresa é que quase metade dos doentes que tem mutações nas linhas germinativas do BRCA1 e BRCA2 não tem história familiar. Ou, pelo menos, uma história familiar que os levasse a fazer testes, de acordo com as orientações do serviço de saúde britânico (NHS). Outro tipo de coisas que podemos descobrir aqui são, por exemplo, genes que afectam o metabolismo de fármacos. Mas é claro que a razão que nos leva a fazer este trabalho para sequenciar o genoma do tumor é porque isso nos pode dar o painel completo de todas as mutações que aquele tumor acumulou durante a sua história. Isso pode levar a terapêuticas direccionadas. Por outro lado, além de nos dar as mutações em genes, dá-nos o padrão geral de mutações no tumor, o que chamamos assinaturas mutacionais.
E conhecendo as mutações podemos adaptar as terapias?
Conhecendo todas as mutações num tumor e todos os rearranjos dos cromossomas, podemos fazer um catálogo de todos os genes que têm cópias aumentadas, portanto, os oncogenes – no cancro da mama o mais famoso é o ErbB2 [também conhecido como HER2] – que tratamos com fármacos que são os anticorpos monoclonais. Depois, há outras zonas do genoma que têm aumento de cópias e isso pode levar a outras terapêuticas. E finalmente há ainda zonas do genoma onde podem existir perdas de cópias, o que indica que podem haver genes supressores de tumores [genes que reduzem a probabilidade de uma célula num organismo multicelular se tornar um tumor] em determinadas localizações e que, mais uma vez, são situações que podem ajudar a tomar decisões terapêuticas. Finalmente, como estamos a fazer a sequenciação do genoma completo, estamos a sequenciar os 3500 milhões de pares de bases do genoma das células do tumor e, comparando com o ADN normal do mesmo doente, podemos identificar rearranjos estruturais dos cromossomas, tais como translocações, deleções ou inversões.
E isso serve para?
É aqui que estão os códigos de barras. Porque só células tumorais é que produzem estes rearranjos dos cromossomas. E, portanto, é possível – depois de sequenciar o genoma todo – conceber testes que detectam estes rearranjos.
Mas é possível detectar um rearranjo desses antes da formação do tumor?
Não. Isso só acontece no tumor. Isto será útil para fazer monitorização através de biópsias líquidas. Imagine que uma mulher teve um diagnóstico do tumor, fez cirurgia, fez terapia adjuvante e os exames de imagem são todos negativos, a mulher está bem. Mas se seis meses depois fizer uma análise do sangue e for encontrado ADN do tumor a circular através de um rearranjo desses, já sabemos que aquele rearranjo dos cromossomas só pode vir de um sítio: de uma célula tumoral que esteja escondida algures. Isso poderia levar-nos a fazer uma terapia adjuvante à medida daquele doente. Sabemos que o tumor está algures escondido, aquilo que se chama doença micrometastática, e tentar erradicá-la.
Não pode então servir para um diagnóstico precoce de um tumor?
Isso é o que todas as pessoas gostam de ouvir. Mas o que é que vamos sequenciar? Para isso era preciso sequenciar genomas do cancro diluídos no ADN normal que existe em circulação. Todos nós temos aquilo que se chama ADN livre [não ligado a células e que existe no plasma], temos uma quantia que varia, mas é de normalmente menos de cinco nanogramas por mililitro. Todos temos. Se uma pessoa correr uma maratona, em vez de cinco tem 500. Se levar uma cacetada numa perna e fizer uma pequena lesão, liberta ADN em circulação. Quando uma mulher está grávida, tem ADN seu e do feto a circular na mãe. É isso que hoje permite detectar, por exemplo, a trissomia 21 sem fazer uma amniocentese. As células tumorais também libertam ADN e esse ADN tem as mutações que só estão presentes nas células tumorais. É o tal código de barras. É como ir ao supermercado e ter um saco com um código de barras que nos diz que ali temos maçãs ou laranjas. Neste caso, o código de barras diz que aquele ADN livre de células que está ser encontrado em circulação só pode vir de células tumorais.
Mas então serve para um diagnóstico precoce…
Não. Porque temos de saber antes quais são as mutações que vamos procurar. Além disso, se o cancro é muito pequeno vai libertar pouca quantidade de ADN.
O que é que já percebeu com as sequenciações de tumores que fez até agora?
O que lhe posso dizer é que 60% dos doentes em que fizemos isto, a gestão clínica do doente foi alterada. Para ser mais preciso, em 65% dos casos encontrmos algo que podia alterar o tratamento clínico do doente. Estas doentes estão a ser tratadas com intenção curativa, não podemos estar a fazer experiências. Elas recebem a terapêutica convencional ou a terapêutica adaptada baseada naquilo que descobrimos. Vemos os resultados da sequenciação, validamos os resultados e depois temos um grupo de especialistas em oncogenética em que se sentam oncologistas, geneticistas, radioterapeutas, etc. e temos uma reunião em que, por consenso, fazemos uma recomendação.
Mas quando me diz que em 60% ou 65% dos casos descobriram algo que podia alterar a terapêutica quer dizer que estavam a receber um tratamento errado?
Não. Quer dizer que nos outros 35%, baseado no que sabemos hoje, não descobrimos nada sequenciando os tumores que levasse a alterar o tratamento daquela doente, ou a abordagem cirúrgica, genética.
Quando é que este rastreio por “código de barras” do tumor pode chegar à prática clínica?
Fazer sequenciação completa do genoma não só custa muito dinheiro – cerca de mil, dois ou três mil dólares, portanto não é uma coisa que para já se possa ser facilmente feita num sistema de saúde normal –, como também cria um problema de computação e de armazenamento e análise de dados. Estamos a pensar agora começar uma colaboração com companhias de cloud computing e ver se conseguimos acelerar o processo de análise.
Uma mulher com cancro da mama, e infelizmente há muitas, que esteja a ler esta entrevista, poderá estar a pensar: “Eu quero fazer isto e saber se o tratamento que estou a fazer é o mais adequado para mim.”
Acho que temos de ser muito cuidadosos com o que dizemos aos doentes. Estamos a fazer isto num contexto de investigação clínica, com consentimento informado, num centro integrado numa equipa multidisciplinar que trabalha assim há 20 anos. Isto não é uma coisa que se faça amanhã em qualquer sítio. É preciso infra-estruturas, experiência, especialistas…
E dinheiro…
E, claro, o financiamento. Mas acho que, no futuro, testes genéticos nos tumores – e isso já acontece no presente para doença metastática – vão ser aplicados universalmente quando o preço descer para um valor comportável pelos sistemas de saúde e quando houver educação médica para perceber e interpretar os resultados. Isto é uma parte de uma curva de aprendizagem. Estamos constantemente a actualizar a nossa lista de genes. Aprendendo e caminhando. Isto é feito num sistema em que temos revisão por pares, é tudo feito com muito rigor.
Mas as pessoas que estão nessa situação agarram-se a qualquer esperança. Não sei se viu a notícia sobre uma mulher chamada Judy Pekins, com um cancro da mama agressivo, que ficou curada depois de um tratamento com imunoterapia…
Sim, sim… Para já, não usaria a palavra “curada”. Mas, só para ter uma ideia, a infra-estrutura que está atrás desse tratamento feito pelo Steven Rosenberg, que tem uma equipa enorme e trabalha no Johns Hopkins custou, ao longo de vários anos, dezenas de milhões de dólares. E se a resposta para tratar os tumores todos vai ser a imunoterapia ou não… eu tenho um cepticismo muito alto.
Acha que vai ser uma junção de tudo?
Vai ser uma junção de tudo. Uma das coisas de que vim falar nesta conferência é sobre o conceito que eu propus primeiro há já uns anos o que chamo “medicina integrada para o cancro” e que passa por integrar a radiologia, patologia, inteligência artificial… Estou neste momento a candidatar-me para criar um centro de excelência em patologia digital, radiologia digital e inteligência artificial precisamente para trazer isto para a clínica.
Uma das suas ideias-chave é também o facto de o cancro da mama não ser uma doença mas dez doenças diferentes. Mantém essa ideia?
Nós neste momento dizemos 11 porque das dez que publicámos na Nature em 2012 chamamos-lhe clusters integrativos e num deles decidimos dividir o positivo e o negativo e, portanto, temos 11 agora. Mas se são 11, 12 ou 13 não sei. É a versão mais aproximada da verdade que temos. São de facto entidades moleculares completamente diferentes que começam de maneira diferente, desenvolvem-se de maneira diferente, respondem à terapêutica de maneira diferente, têm propensões diferentes para recidivar, metastizam de maneira diferente, são associadas com a sobrevivência de maneira diferente.
A única coisa que as une é aparecerem na mama?
Sim. Podemos pensar que isto são florestas de árvores semelhantes. Umas são oliveiras, outras pinheiros, outras azinheiras… Quando olhamos para estas árvores conseguimos distingui-las. Mas mesmo entre oliveiras, por exemplo, vemos que não são todas iguais. Depende do terreno onde estão, se estão no Alentejo ou no Douro, se receberam chuva. Ou seja, depois têm uns ramos diferentes. A árvore são os nossos 11 subtipos.
E já conhecemos as diferenças nos ramos do mesmo tipo de árvore?
Estamos a caracterizá-los agora. Temos uma ideia de que as oliveiras não se transformam em pinheiros e vice-versa. Mas sabemos que há oliveiras diferentes umas das outras e os ramos são as mutações. Os tumores começam com um ou dois eventos. Todas as células do tumor têm um património genético comum mas depois vão adquirindo mutações diferentes.
Entre as notícias que li sobre o seu trabalho, é referido realizou também algumas experiências com ratinhos avatares, ratinhos que recebem um transplante de células de um tumor humano…
Nós não os usamos directamente como avatares. Tenho sempre muito cuidado porque quando falamos com as mulheres para obter um consentimento informado não fazemos promessas que não seriam éticas. O que lhes dizemos é: “Se nos der um pedaço do seu tecido para levarmos para o laboratório e crescer no ratinho e fazer um modelo do seu tumor, o que isso nos vai permitir é estudar coisas in vitro que não poderíamos fazer em si. Que isso a possa vir a ajudar a si é possível mas pouco provável. Que possa vir a ajudar outros doentes no futuro, com certeza. E é uma melhor plataforma para testar novas drogas.” Por isso, o meu grupo está a investir tanto nesta área. Temos cerca de 200 modelos hoje em dia. Modelos a crescer em ratinho no laboratório de 200 corajosas mulheres dadoras, que doaram o seu tecido.
Falámos em mutações e outros “erros” genéticos. Qual o papel que a edição genética pode ter no cancro?
Primeiro que tudo, tenho de dizer que não tenho problema ético absolutamente nenhum. Fazemos manipulação genética em plantas há muito tempo e no ser humano há muito tempo também. Esta discussão toda é um hype. Fazemos recombinação genética há muito tempo. Há muito tempo que descobrimos, por exemplo, que não é bom casar entre irmãos ou primos direitos. Agora, o que está a perguntar-me é sobre a CRISPR [tecnologia de edição genética]. Não tenho objecção nenhuma a fazer manipulação a doenças monogenéticas para tentar corrigir defeitos. Se eu soubesse que tinha uma doença metabólica na minha família, hemofilia, por exemplo, se eu pudesse agarrar num ovo [a doença transmite-se pelo cromossoma X] e corrigir o gene, quem é que diria que isso é errado?
Mas ainda não sabemos tudo sobre os efeitos colaterais que uma correcção dessas pode ter…
Por isso, temos de fazer mais investigação. E quando se decidir que se vai fazer pela primeira vez num humano terá de ser com todos os cuidados possíveis. Não é fácil. Os problemas de riscos para a sociedade de que alguns falam quando falam da edição genética são para ser resolvidas pela sociedade, pelos políticos e por nós que votamos.
E no cancro?
Não acho…Toda a gente sabe que uma célula para ser transformada tem de acumular no mínimo seis a nove mutações. Era preciso fazer seis a nove dessas intervenções e era preciso saber quais são as seis a nove que são de facto as que desencadeiam o tumor. E nós não as conhecemos todas. Conhecemos muitas, mas não todas.
De onde virá (se é que virá algum dia) a cura para cancro?
Não acho que haja uma cura para o cancro. Há múltiplas combinações de tratamentos. O que sabemos é que não conseguimos curar os cancros metastáticos, com a excepção dos tumores do testículo. Com a imuno-oncologia começa-se a falar em curar alguns melanomas, mas vamos esperar. As pessoas estão a usar a palavra cura… sim, as pessoas sobreviveram seis, sete anos, mas vamos esperar. Não vai haver uma cura universal para o cancro. Vamos ter mais cancros precoces curáveis, porque são diagnosticados numa fase precoce. Vamos tentar, e nós estamos a trabalhar nisso, rastrear mais cedo, através de uma biópsia líquida, os cancros que metastizam.
Não vamos conseguir encontrar uma cura, mas vamos curar mais?
Vamos curar mais doentes. E tratar melhor, de forma muito mais precisa. E vamo-nos tornar muito melhores a manusear a doença metastática. Vamos conseguir medir melhor o que estamos a ver. Vamos transformar muitos cancros numa doença crónica. Mas, pense, a diabetes, a doença cardiovascular, o enfarte do miocárdio também não são curáveis.
O PÚBLICO viajou a convite da Merck