SNS: da espuma dos dias para uma agenda estratégica
A reforma em curso é séria e corajosa e isso não se faz com a discussão de “casos e casinhos” na praça pública.
Desde o início da presente legislatura, a agenda mediática do Serviço Nacional de Saúde (SNS) sofreu um violentíssimo ataque de algumas individualidades e corporações (chamemos-lhes provedores da saúde) que nada tem a ver com a real necessidade de acesso dos portugueses aos cuidados de saúde, mas sim com pequenos interesses e agendas políticas de cada um, que o futuro se encarregará de desvendar. A grande maioria das vezes ou inverdades, suportadas pela calúnia, ou meias verdades, ancoradas pela má fé. São também os efeitos da silly season, que levam a que tenhamos lido recentemente notícias num jornal de referência como o Expresso com os seguintes títulos. “Orçamento do SNS é o mais baixo dos últimos 15 anos” (o que é consabidamente falso) e “Adalberto faz propaganda no WhatsApp” (a notícia é manifestamente irrelevante). Contudo, estes repetidos excessos estivais – que, no caso da saúde e do SNS, apenas amplificam e diversificam um comportamento observável ao longo de outros períodos do ano por diversos protagonistas do sector, incluindo os atores políticos, de mera discussão e exploração da espuma dos dias – não nos devem distrair do essencial.
Deixemos, por um instante, a espuma dos dias e falemos de estratégia. Não sem antes fazer um ponto prévio: enquanto instrumento essencial de promoção do bem-estar e de igualdade entre todos os cidadãos e fator de coesão social, a política de saúde tem constituído historicamente para o Partido Socialista uma aposta permanente efetiva e diferenciadora em que avulta como marco maior a criação do SNS, reconhecidamente a obra política e socialmente mais relevante da nossa democracia.
Os períodos de governação do Partido Socialista têm-se afirmado como momentos de avanço, reforço e progresso do SNS, pela promoção da equidade entre pessoas e territórios, alcançada pelo serviço aos cidadãos com mais qualidade, com mais prontidão, com maior proximidade e com menores custos diretos de utilização, conseguindo melhorias assinaláveis nos resultados em saúde para os portugueses. Tudo isto permitiu a Portugal alcançar indicadores de saúde muito favoráveis, igualando-se em muitas variáveis aos países com melhores resultados.
Apesar da herança deixada pelo anterior governo entre 2011-2015, em que se criaram situações muito problemáticas, com a existência de múltiplos casos de crise operacional, com a drástica diminuição das condições de acessibilidade aos cuidados de saúde, devido a fatores vários como o forte agravamento das taxas moderadoras e restrições no pagamento de transportes aos utentes do SNS, este Governo tem dado passos significativos para inverter esse panorama.
Destaco o reforço em 700 milhões das verbas orçamentais dedicadas à saúde e em particular ao SNS, a aceleração dos processos de autorização de inovação terapêutica, a admissão de mais 8000 novos profissionais (4000 médicos, 3000 enfermeiros e 1000 técnicos de saúde), a reposição dos horários de trabalho e das remunerações, o descongelamento das carreiras, o aumento da cobertura de cidadãos com médico de família, a ativação do plano de investimentos em quatro novos hospitais e 113 centros de saúde, a redução em 24% das taxas moderadoras e a revisão dos sistemas de pagamento no transportes de doentes.
Com 85% do programa do Governo cumprido, terminámos esta sessão legislativa e partimos para uma nova sessão, reafirmando os nossos valores e assumindo os nossos compromissos na defesa do desenvolvimento de um SNS moderno e humanizado, ao serviço de todos os portugueses de acordo com as suas necessidades.
Existe um forte compromisso de, até ao termo da presente legislatura, atribuir médico de família a todos os cidadãos como pressuposto da promoção da acessibilidade aos cuidados de saúde, rever o modelo de organização e funcionamento das urgências hospitalares, em articulação com os restantes níveis de prestação de cuidados, de modo a reduzir a inadequação do atendimento e estabelecendo metodologias integradas de resposta alternativa com qualidade e tempestividade destinadas a doentes sem perfil de urgência, designadamente pessoas idosas com doenças crónicas ou multimorbilidades. Pretendemos diminuir tempos de espera e continuar a promover políticas para a prevenção da doença e promoção da saúde pública.
Os portugueses conhecem a nossa agenda. Mas temos a responsabilidade de ir mais além no âmbito da revisão da Lei de Bases da Saúde, cuja discussão pública terminou recentemente e que reafirma a Constituição na sua plenitude. A nova lei deverá ter como principais desafios a articulação coerente e necessária entre o setor público, social e privado.
A regulação deve ter um espaço importante nesta nova lei de bases, com a implementação de um modelo de base multiprofissional, devendo a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) intervir no setor público e no setor privado. Por outro lado, o modelo de financiamento tem de ser sustentável e capaz de proteger o SNS de ciclos orçamentais depressivos, prevendo a minimização e, se possível, a eliminação de taxas moderadoras, moderando o acesso na procura, na articulação a montante entre os diferentes níveis de prestação de cuidados.
No que toca aos profissionais, devem ter a liberdade de poder optar entre o público ou o privado e, em caso de acumulação de funções, deve existir um reforço de restrição nomeadamente em tempo máximo de acumulação de horário, a fim de evitar situações de conflitos de interesses e de “burn out” profissional. É importante “separar águas “entre público e privado com base na complementaridade. A dedicação plena deveria ser acompanhada de um pacote de incentivos ao nível da formação, ao nível remuneratório e de progressão na carreira.
Uma última ideia para o reforço da equidade territorial, evitando a obesidade dos grandes centros e promovendo a justa distribuição e descentralização de recursos e tecnologia de forma a melhorar a fixação de populações noutras regiões do país, principalmente em situações em que não se justifique por razões económicas ou clínicas a referida centralização.
É uma reforma séria e corajosa que os portugueses exigem de quem nos governa e isso não se faz com a discussão de “casos e casinhos” na praça pública, mas com a promoção de uma agenda que deve unir todos os partidos para lá das diferenças ideológicas, em prol de um bem que deve ser universal e que é determinante para o nosso futuro coletivo.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico