Relatos curtos de uma realidade vasta
É uma viagem pela literatura hispânica dos séculos XIX e XX. Relatos curtos que mostram um rico panorama narrativo numa realidade geocultural muito vasta.
Em 2014 o Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa começou a realizar um curso livre – duas edições por ano – cuja ideia central era a de leitura de contos “em comparação”, histórias escritas em língua espanhola e originárias de Espanha e dos países da América Latina. Cada um dos docentes do curso propõe, para cada sessão, a leitura de três contos tendo por base uma temática unificadora – o curso intitula-se “contos de três em três”. Sempre que não havia no mercado editorial uma tradução disponível em português europeu, esses contos foram sendo traduzidos. Chegados ao ano de 2017, e à celebração de Lisboa como Capital Ibero-Americana da Cultura, pareceu oportuno aos organizadores do curso reunir em livro essas histórias que entretanto foram sendo traduzidas. A sua publicação, com vários apoios institucionais, surgiu agora pela editora Cavalo de Ferro, com o título As Pequenas Histórias.
São 17 contos – organizados cronologicamente pela data de nascimento dos autores, desde a autora espanhola Emilia Pardo Bazán (1851-1921) até ao nosso contemporâneo, também espanhol, Luis Recuenco (n. 1962) – que servem, pela sua variedade temática e discursiva, como uma montra do extenso e rico panorama da narrativa breve hispânica.
Miguel Filipe Mochila, um dos organizadores desta antologia, disse ao Ípsilon que o objectivo foi “tornar acessível ao público português uma constelação de textos interessantes, abrindo também caminho para o conhecimento de autores relevantes do mundo hispânico, dando conta do prestígio e da qualidade narrativa breve no seio das suas literaturas.” E acrescentou que se procurara evitar “uma leitura demasiado directiva”, por um lado, e, por outro, “respeitar a dimensão transatlântica”. A divulgação das literaturas hispânicas é um dos propósitos do projecto de investigação DIIA – Diálogos Ibéricos e Ibero-americanos – que há cerca de dez anos é desenvolvido no Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
A antologia inclui apenas um conto de cada autor “por uma questão de equilíbrio e abrangência”, diz Miguel Filipe Mochila, pois perante um conjunto de contos bastante heterogéneo foram procuradas “linhas temáticas”. Assim, o volume começa e termina com histórias de amor (apesar dos universos muito diferentes dos dois escritores referidos acima). Mas pelo meio há outras histórias de amor, diferentes entre si e evocando laços familiares ou de amizade, como por exemplo nos contos do argentino Adolfo Bioy Casares (um dos mais reconhecidos contistas sul-americanos do século XX, e o seu característico jogo entre a realidade e a aparência), do mexicano Enrique Serna, ou do uruguaio Horacio Quiroga – este último é o autor de um dos contos mais pungentes desta antologia, a história de um pai viúvo e de dois filhos pequenos a viverem algures na floresta, à mercê dos perigos de uma natureza traiçoeira e inclemente; diga-se, aliás, que este é o universo das histórias dos três livros do autor por cá traduzidos há já alguns anos. Também sobre a natureza, agora de como viver em comunhão com ela, é o conto Grito no Mar, do espanhol Pío Baroja – figura destacada da primeira metade do século XX e cuja obra se integra no movimento da chamada Geração de 98. As histórias de autores como o cubano Alejo Carpentier, o chileno Baldomero Lillo, ou o peruano Julio Ramón Ribeyro, evocam questões de ordem social como a corrupção política ou o trabalho infantil. O escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna, o chileno Jose Donoso, ou o argentino Roberto Arlt, colocam as suas personagens em situações absurdas, irónicas ou cheias de humor. As alegorias de fundo histórico têm lugar na narrativa do argentino Leopoldo Lugones (um dos autores por quem Borges nutria uma enorme admiração). Sem entrarem no campo da metaliteratura, mas reflectindo sobre a natureza da escrita, o acto de contar, a escrita e a ficção, estão os contos dos espanhóis Miguel de Unamuno e Ana María Moix, do paraguaio Augusto Roa Bastos (autor da obra-prima Yo el Supremo, monumental romance que espera ainda edição em Portugal), e do nicaraguense Rubén Darío.
A língua espanhola
Sendo a língua espanhola comum a todas as narrativas da antologia, faz sentido que nos interroguemos se em termos literários existirá uma diferença entre a literatura de Espanha e a produzida pelos colonizados. Ou se essa diferença, a existir, será a mesma que diferencia um autor chileno de um mexicano. Responde Miguel Filipe Mochila: “Numa realidade geocultural tão vasta, naturalmente que as especificidades são várias, facto que é reforçado quando se tem em conta a abrangência cronológica desta antologia. É certo que cada autor responde a um contexto particular, mas parece-nos redutor pautar a leitura pelo crivo das literaturas nacionais. Regra geral, os textos acompanham um espectro crítico que vai desde a decomposição do império espanhol, em finais de XIX, à marginalidade peninsular no contexto global que a integração europeia sublinha, já mais perto de nós, espectro esse que implica um questionamento a várias vozes do papel da narrativa e dos autores em novos paradigmas e novos quadros de relações. A resposta, digamos assim, a esse espectro crítico, permite uma visão conjunta destes textos, sustentada pela existência de uma comunicação efectiva entre os dois lados do e oceano entre as literaturas ibero-americanas, por um lado, não ignorando, por outro, a relação da tradição hispânica com outras influências, nomeadamente francófonas e anglófonas. Ao longo destes contos é possível discernir algumas afinidades que possibilitam uma leitura conjunta, seja na temática de incidência social ou histórica, seja na propensão para narrativas que problematizam os seus próprios limites, que promovem releituras de episódios e cenários míticos, seja na inclinação para a desconstrução das convenções associadas à ficção breve. São traços que dão conta de um questionamento do papel da narrativa e dos autores na relação com uma realidade circundante entendida criticamente.”
Os contos que constituem As Pequenas Histórias estavam inéditos em Portugal, para a sua publicação era necessário a aquisição dos direitos de autor “desentranhados” das obras em que foram originalmente publicados. Contam os organizadores que, da lista inicial de contos traduzidos para o curso livre, alguns havia que os direitos de autor seriam de difícil aquisição. “Uma vez iniciado o processo de edição, verificámos que não havia forma de conseguir os direitos de publicação de alguns contos da lista inicial. Pareceu-nos oportuno escolher outros contos, alguns que conhecíamos e de que gostávamos, outros que fomos descobrindo durante o trabalho de pesquisa e reflexão a propósito deste livro, de modo a completarmos um panorama abrangente.”
Os contos de diferentes épocas dão ao leitor uma perspectiva histórica que deixa perceber, na sua amplitude cronológica, a importância da narrativa curta nas literaturas hispânicas desde o século XIX, fenómeno este que, e segundo os coordenadores da antologia, está associado à profissionalização do escritor, bem como “à difusão da imprensa e ao questionamento da supremacia do romance como género maior, procurando alternativas que respondessem a uma aceleração global da vida, a partir do que se construiu uma tradição que manteve um acentuado prestígio e legitimidade entre autores, críticos e leitores desses contextos.”
As Pequenas Histórias
Antologia
(organização de Miguel Filipa Mochila, Cristina Almeida Ribeiro, Ângela Fernandes)
Cavalo de Ferro
4 estrelas