Uma “Casa de brincar” para uso sério de um bairro que se quer abrir ao exterior
Chama-se Casa de brincar e não só e nasceu na Guarda, bairro de Perafita, Matosinhos, oferecida pela Casa de Arquitectura, que construiu a estrutura no âmbito do projecto Um Lugar de Partilha com a colaboração de 15 jovens arquitectos em regime de voluntariado, que trabalharam com a comunidade para que esta possa ter um novo ponto de encontro multifuncional.
Quando pela primeira vez ouviu dizer que existia um plano para a construção de uma nova estrutura para usufruto de todos os moradores do bairro da Guarda em Perafita, onde mora há 35 anos, Lurdes Costa desconfiou. “Há muito que se promete muita coisa, mas até hoje nada se fez”, diz-nos. Cedo, a desconfiança passou a curiosidade. Pouco tempo depois já participava com dicas para o projecto e planeava a melhor forma de garantir uma festa à medida da ocasião no dia da inauguração.
E foi esta sexta-feira que a Casa de brincar e não só, após duas semanas de trabalhos de construção, se mostrou pela primeira vez inteira e acabada a quem ali vive e a toda a gente de fora que a quis conhecer. É um projecto concebido para aquele conjunto habitacional com perto de quarenta anos, onde vivem cerca de duas mil pessoas, mas também para todos os que queiram colaborar, sejam dali ou de outras paragens.
Passamos por lá um dia antes da inauguração desta que é segunda obra levada a cabo pela Casa da Arquitectura no âmbito do programa Lugar de Partilha, que no ano passado escolheu o bairro das Campinas como laboratório de “auto-construção”. Em 2017 construiu-se naquele bairro do Porto um parque de jogos composto por três elementos: um banco corrido, um pequeno teatro e uma parte central para ser usada para as tradicionais fogueiras de São João.
Em Perafita nasce um edifício à medida das necessidades que os moradores foram dando a conhecer que existiam a quem ali estava para os ouvir. Com quase 50 metros quadrados, com três áreas abertas e uma fechada, em madeira, servirá para várias funções.
É um projecto colaborativo, no qual quatro arquitectos coordenadores e outros 15 voluntários trabalharam em conjunto com aqueles que vão beneficiar directamente com a obra. Era preciso um espaço de encontro entre os mais novos e os mais velhos habitantes da Guarda, multifuncional e que pudesse ser usado por todos. Nasce por isso “uma casa de brincar”, que desde o período em que ainda estava em fase de desenho até à conclusão da obra foi levada muito a sério por todos os intervenientes.
Eram cerca de uma dezena os que lutavam contra o relógio para garantirem que no dia seguinte, na inauguração, tudo estaria concluído. De vários pontos do globo chegaram as mãos que ali trabalham na construção do edifício. Pedem-se pregos aos colegas em inglês com pronuncia australiana ou num espanhol do México, corta-se madeira à moda de Itália e tiram-se medidas entre Brasil e Portugal sem ser a olho.
São todos jovens arquitectos e para os ajudar contam com alguns técnicos habituados ao cenário de uma obra. Trabalham todos em regime de voluntariado. Os materiais de construção também foram cedidos por algumas marcas.
Aplicar um projecto à prática
Miguel Fernandes, administrador e coordenador de obras, foi um dos que se associou à causa. Está lá para ensinar como se trabalha a madeira. “Era para aqui estar uma ou duas horas por dia, mas acabei por ir ficando quase sempre durante todo o período em que estavam a trabalhar”, diz. Quando ali chegou no primeiro dia conheceu quem nunca tivesse apertado um parafuso: “Hoje estão a trabalhar com máquinas de grande responsabilidade”.
Considera que para todos os arquitectos que ali estão esta será “uma vantagem” para o percurso da profissão que escolheram. “Quando estes jovens acabam os cursos são atirados aos tubarões. Muitos fazem um desenho, mas não sabem se vai funcionar em obra ou não. Estes vão ganhar outras ferramentas”, afirma.
Para o director-executivo da Casa da Arquitectura, Nuno Sampaio, é também para isso que este “laboratório” serve. “Aqui os arquitectos têm a possibilidade de pensarem um projecto e de verem a obra realizada, que por sua vez foi feita com as próprias mãos”, sublinha.
A lógica colaborativa associada ao projecto vai ao encontro daquilo que entende ser a forma de trabalhar da “nova produção arquitectónica”. “Cada vez os colectivos de arquitectos são mais habituais. É também cada vez mais habitual que trabalhem em conjunto com profissionais fora da área como artistas plásticos ou sociólogos”, salienta.
Curador do projecto, o arquitecto italiano Roberto Cremascoli, um dos quatro tutores além de Edison Okumura, Ivo Poças Martins e Dulcineia dos Santos, diz não terem existido contratempos durante o processo criativo. Apesar de o projecto ter sido concebido em conjunto pelos tutores, jovens arquitectos e também a partir das opiniões dos moradores, foi fácil de se chegar a um consenso. “Nada como desenhar e depois construir. É algo que dá muito gozo e além disso dá outras ferramentas. Foi pensado por todos, num processo democrático de trabalho”, explica.
Encerra-se uma etapa e surgem novas ideias
Encerrada esta etapa há novas ideias para aquele bairro escolhido com a ajuda da empresa municipal MatosinhosHabit. “Num trabalho que foi feito porta a porta detectamos outras necessidades para aqui que pensamos poder colmatar no futuro com a ajuda da equipa de arquitectos que aqui esteve no terreno”, adianta.
A coordenadora de Actividades e Conteúdos da Casa da Arquitectura e coordenadora de produção de O Lugar de Partilha, Carla Barros, sublinha a importância do trabalho que foi realizado em conjunto com os moradores. “A nossa ideia era que isto fosse um convite aos moradores para poderem desenvolver acções do âmbito educativo ou artísticas. Para isso vai ser criada uma ligação também com associações locais para que possam usar o espaço depois de construído”, explica e sublinha a importância da programação, nomeadamente artística, que o a casa pode vir a ter.
Carla Barros fez essa ponte criada com os moradores. Conta que durante a fase dedicada à recolha de opiniões existiram muitos “projectos sonhadores”. Mas, na maior parte dos casos pedia-se quase sempre um espaço que pudesse ser usado pelas crianças, que serão as responsáveis pela escolha do nome definitivo para a nova estrutura.
Trabalhar para a comunidade
Estrutura que como já foi referido não será só para os mais novos. Aos 64 anos, Lurdes Costa foi uma dos moradores que mais se empenhou na apresentação de ideias que podem funcionar ali. Diz que foi ela que pediu que uma das divisões do edifício fosse um espaço coberto e fechado. “Pode ser usado para festas, para fazer actividades com as crianças ou para os mais velhos jogarem à sueca”, sugere.
Acima de tudo, considera ser uma porta aberta para os que vêm de fora que também poderão usar o espaço. “É um incentivo para que entrem no bairro”, diz. Tem pena que haja quem não se tivesse envolvido de igual forma. Por outro lado, compreende. “Há quem se tenha cansado de esperar por promessas e por isso se tenha tornado céptico”, desabafa.
Com a obra terminada, cada um dos moradores ficará responsável por zelar pelo espaço. O grupo de 15 jovens arquitectos já lá não está desde sexta-feira.
Um dos que lá esteve é Pedro Lopes, do México, que aos 27 anos fez uma pausa nas férias para poder participar em todo o processo. É arquitecto desde 2012 e tem um motivo para ali estar: “Já elaborei alguns projectos, mas nunca participei num como este. A minha principal motivação foi ajudar a comunidade”.