A mulher de Contagem (e o revoltado de Telavive)
Num Locarno que continua a tratar bem Portugal, e que premiou Tiago Hespanha e Pedro Marques com bolsas de pós-produção, um belo retrato de mulher do Brasil (Temporada) e dois títulos sobre comunidades em (re)construção: M e Yara.
Há sempre qualquer coisa de especial em ouvir falar português no estrangeiro, e em Locarno, durante o festival, é quase impossível não andar cem metros sem ouvir alguém a pronunciar a língua de Camões – desde os empregados dos restaurantes aos turistas de viagem, passando pelo “café dos portugueses” numa esquina perto da marginal do Lago Maggiore que tem o televisor sintonizado na CMTV e serve bicas e cerveja Sagres. O festival, ainda por cima, tem sempre sido muito acolhedor para o cinema português e 2018 não tem sido excepção: a sessão competitiva de curtas que incluía 3 Anos Depois, de Marco Amaral, e a longa de Dídio Pestana Sobre Tudo sobre Nada viram projecções extras acrescentadas ao programa devido à procura de bilhetes.
E foi mesmo à esquina do café da CMTV que se anunciaram os vencedores das bolsas de pós-produção atribuídas a works in progress – filmes ainda em finalização – pelo programa paralelo First Look. Foram dois documentários a levar os prémios: Campo, de Tiago Hespanha (produção Terratreme Filmes, já com a montagem de imagem praticamente concluída), recebeu 65 mil euros em serviços de pós-produção; Viveiro, de Pedro Filipe Marques (O Som e a Fúria, com a montagem ainda inacabada), recebeu um total de 10.600 euros em publicidade e design de materiais.
Enquanto isso, ouve-se falar português também nos ecrãs: com a deliciosa curta de Eugène Green Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (a concurso na paralela Signs of Life), fita onde o cineasta franco-americano recupera a verve de humor seco dos seus primeiros trabalhos, ao ficcionar a criação do célebre slogan da Coca-Cola por Fernando Pessoa. É Carloto “Diamantino” Cotta que interpreta Pessoa (e o seu alter ego Álvaro de Campos), mas é Manuel Mozos, o realizador de Xavier e Ramiro, que confirma o seu jeito para a representação no papel do patrão que encomenda o slogan.
E ouve-se falar português, do Brasil, com a excelente segunda longa do brasileiro André Novais Oliveira, Temporada (Cineasti del Presente), que dá um grande passo em frente depois de Ela Volta na Quinta. Ainda e sempre ambientado na Contagem natal do realizador mineiro, é a história de Juliana, uma mulher casada sem filhos, que acaba de se mudar para Contagem para começar a trabalhar no programa municipal de combate ao dengue. Desta situação aparentemente trivial, Novais Oliveira tira, com uma segurança impressionante, um grande retrato de mulher que remete inevitavelmente para o cinema americano dos anos 1970 (Alice Já Não Mora Aqui, de Scorsese; O Diário Íntimo de Uma Mulher, de Frank Perry; todo o cinema de John Cassavetes), mas também para Kelly Reichardt (cujo Certain Women é uma referência assumida pelo cineasta).
Juliana é uma interpretação imponente de Grace Passô, mas o seu retrato de mulher não seria nada sem a capacidade de integrar essa personagem numa comunidade viva, construída por camadas e episódios que criam um efeito de vida, bebendo do documentário para criar uma ficção que parece respirar realidade. É verdade que Temporada é um filme extremamente clássico na sua construção e encenação – e é irónico que seja precisamente esse classicismo modesto ao serviço da personagem, reivindicado como tal, que o distinga numa secção muitas vezes voltada para a novidade formal.
Dois mundos
Comunidade é também uma questão importante em duas entradas no Concurso Internacional, que, de modo peculiar, exploram mundos árabes e judeus, religiosos e seculares, urbanos e rurais. De um lado, Yara, primeira ficção do iraquiano exilado Abbas Fahdel, rodada nas montanhas do Líbano; do outro, M, documentário da francesa Yolande Zauberman, rodado entre Telavive e o subúrbio de Bnei Brak. De um lado, a história de uma adolescente de província que vive num paraíso rural; do outro, a história de um actor e cantor criado entre os haredim ultra-ortodoxos israelitas, que traz a lume os casos de abuso sexual de crianças pelos altos responsáveis da comunidade religiosa judaica. São olhares que escapam ao trivial e procuram revelar outras facetas do mundo que nos rodeia, com resultados bastante díspares.
Fahdel assinou um murro no estômago brutal e a quente com o seu diário documental do antes e do depois da queda do regime de Saddam Hussein, Homeland: Iraq Year Zero, mas tropeça francamente com Yara. É uma tentativa de pastoral encantatória numa comunidade montanhosa remota e quase paradisíaca, que parece aspirar a Kiarostami mas se fica por uma história frágil, quase inexistente, à volta do primeiro amor de Yara por um rapaz de uma aldeia vizinha que aguarda um visto para emigrar. A escolha é entre a resignação do ficar e a incerteza do partir, entre o ficar no paraíso e deixá-lo para trás; Yara não escolhe, fica-se por um singelo e sincero amadorismo cujos melhores momentos (e há-os) têm qualquer coisa de documento de um modo de vida em risco de se perder.
M é outra coisa: é um olhar para o interior de uma comunidade quase alienígena para nela descobrirmos, afinal, um espelho da nossa própria. Menahem Lang, senhor de uma voz espantosa, era um dos miúdos de ouro das yeshivas ortodoxas de Bnei Brak, até ao dia em que revelou que tinha sido violado por um dos seus mestres rabínicos. Abandonou a religião, construiu uma vida própria em Telavive, mas continua a ser trabalhado permanentemente pela ferida que a experiência do abuso criou nele, e sobretudo pela expulsão do éden que resultou dessa revelação.
Menahem – o M do título – quer apenas reencontrar o amor dos pais, a compaixão que sentiu que lhe foi negada, e nesse processo de reencontro e redescoberta com uma comunidade fechada sobre si própria descobre também razões para acreditar no futuro, à medida que compreende como o abuso de menores do mesmo sexo é um círculo vicioso que afecta as próprias raízes da comunidade e do qual os haredim (ou pelo menos parte deles) se estão a tentar libertar. É um documentário vibrante, provocante, desconfortável, vertiginoso, mas do qual saímos com uma verdadeira sensação de que as coisas podem mudar, e com a esperança de que, afinal, a comunidade se possa reconstruir.
O PÚBLICO está em Locarno a convite do Festival de Locarno