Ray, Liz, Sophia e esta coisa da alma
Ao meio-tempo, a edição 2018 do Festival de Locarno corre morna, demasiado morna. Mas Ray & Liz, de Richard Billingham, veio mostrar como é que se pode fazer grande cinema com alma.
Qualquer coisa vai mal em Locarno quando a Piazza Grande recebe fora de concurso o novo “Spike Lee joint”, BlacKKKlansman, estreado em Maio em Cannes, e apesar das quebras de ritmo e das guinadas de tom e do desequilíbrio permanente há mais garra e mais tomates e mais cinema e mais energia nas suas duas horas do que em praticamente toda uma competição internacional povoada por gente muito mais nova. (Há excepções e já lá vamos.)
É também isso que se ouve pelas ruas de Locarno, por estes dias a ferver num calor “tropical” (para a Suíça, isto é) de 35 graus centígrados com 65% de humidade e trovoadas e aguaceiros que caem geralmente à hora do jantar ou quando começam as soirées ao ar livre da Piazza Grande. As competições de Locarno 2018, ao meio-tempo do festival, têm estado mornas, morníssimas. Sobretudo para um festival que nunca teve problemas de espécie nenhuma em atirar pauzinhos para a engrenagem, a sensação de queda na formatação do cinema autoral ou do filme de tema em co-produção é preocupante – faltam filmes fracturantes (mas a vindima ainda não acabou, é certo).
Já falámos aqui dos casos de Ying Liang (A Family Tour) e Dominga Sotomayor (Tarde para Morir Joven); podemos juntar-lhes a argentina María Alché e o romeno Radu Muntean. Alché, que como actriz foi A Rapariga Santa de Lucrecia Martel, estreia-se como realizadora na longa-metragem com Familia Sumergida (Cineasti del Presente), atmosférico retrato de mulher que a morte da irmã atira para uma estufa onírica de questionamentos sobre a sua vida e a sua família. Mercedes Morán é excelente no papel principal, e o filme tem uma ideia de ambiente e construção extremamente conseguida, mas tudo acaba por se resumir a uma variação simpática, competente mas impessoal, sobre os micro-dramas de Martel que nunca descola do modelo.
A vantagem dos cineastas da “nova vaga romena” – e Radu Muntean, que conhecemos em Portugal mais por Terça, Depois do Natal, fez parte da “primeira leva”, ao lado de Cristi Puiu ou Corneliu Porumboiu – é que o seu nível médio é geralmente bastante bom, pelo que mesmo os filmes menores têm sempre qualquer coisa de interessante. Alice T. (Concurso Internacional) é exemplar disso. No papel, é uma história de gravidez adolescente que nada parece ter de especialmente diferente, partindo de uma miúda-problema permanentemente em guerra com o mundo. No ecrã, com a ajuda preciosa de Andra Guti (a filha) e Mihaela Sirbu (a mãe), o filme transforma-se noutra coisa: o retrato de uma miúda, filha adoptiva, que apenas quer sentir-se parte da família mas não sabe como o fazer, com a construção da trama a evitar habilmente todas as armadilhas em que uma história destas poderia cair.
Foi preciso passar por estes (e outros) filmes “de festival” para começarmos a trazer ao de cima as pérolas. E há uma que, como o sol vermelho a nascer que ilustra o seu cartaz, praticamente exige que lhe prestemos atenção – Sophia Antipolis (Cineasti del Presente), do francês Virgil Vernier, que começou pelo documentário e tem vindo a dirigir-se para a ficção. Com esta segunda longa, sobre vidas interligadas no parque tecnológico de Sophia Antipolis, tentativa de criar um Silicon Valley na Côte d’Azur, Vernier dilui totalmente as fronteiras ao colocar actores não-profissionais a interpretarem personagens que estão próximas das suas próprias vidas, como se encarnassem nos seus corpos a disfunção extrema do mundo contemporâneo, e a levantarem questões peculiarmente éticas sobre o que filma e como o filma.
É um olhar clínico, impiedoso como o sol do meio-dia, sobre uma França atomizada, contemporânea, distópica, dividida entre aqueles que não têm e se matam a trabalhar para ter, e aqueles que têm e não sabem o que fazer com o que têm. Há uma peculiar ligação entre Sophia Antipolis e o Coincoin et les z'inhumains de Bruno Dumont – ambos são filmes que olham para a França moderna (e, por extensão, para o mundo à sua volta) como uma sociedade à beira do apocalipse, uma panela de pressão que precisa de explodir. Dumont fá-lo através do humor, do burlesco radical; Vernier prefere deixar a pressão continuar a subir enquanto filma um colapso em câmara lenta, esperando por uma explosão que não sabe de onde virá, como quem avisa que ela pode acontecer a qualquer momento.
Mas se já tínhamos uma ideia do que esperar de Vernier, já a estreia na realização do britânico Richard Billingham era uma incógnita. Vai-se a ver, Ray & Liz (Concurso Internacional) é a primeira grande surpresa de Locarno 2018 e o melhor dos filmes já exibidos na competição principal, mesmo que não saibamos se marca o início de qualquer coisa ou se é apenas um caso pontual. Isto porque Ray & Liz é o prolongamento do trabalho de Billingham como fotógrafo, dos retratos e dos pequenos vídeos que fez ao longo dos anos à volta da sua família, pai alcoólico e mãe violenta que deixavam os filhos literalmente à solta. Obra assumida e abertamente autobiográfica, episódios de uma infância pobre na era de Margaret Thatcher, é muito evidentemente filme de fotógrafo, na sua aproximação à imagem, no seu enquadramento cuidado, no modo como a rodagem em 16mm constrói uma textura de vida vivida, de experiência real.
Mas Ray & Liz é também um filme, isto é, uma história que se conta com imagens, numa espantosa fuga formal às convenções do realismo britânico. Estamos mais próximos dos tableaux atmosféricos de Terence Davies, onde o que é preciso dizer é mostrado, mais do que dito, onde o diálogo é secundário e tudo passa pelo trabalho de imagem e montagem. Ray & Liz não tem nada de panfleto; é só um retrato de uma Grã-Bretanha que existiu e talvez ainda exista, feito por quem a viveu, mais interveniente e político do que muito filme de tema. É um filme singular, pessoal, com alma – precisamente aquilo que este ano Locarno pouco tem tido até agora.
O PÚBLICO está em Locarno a convite do Festival de Locarno