O mapa afectivo de Priscila começa em Lisboa e vai até aos Açores

Priscila Roque nasceu brasileira numa família portuguesa, mas foi a música a sua “primeira conexão afectiva real” com o Portugal contemporâneo. Foi a primeira peça de um puzzle – afinal, Portugal não “era uma coisa de velhos”: ela chegou com 31 anos.

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Priscila e Rafael Boro na Lagoa do Fogo DR

A história começa de forma familiar para tantos. Década de 1950, duas famílias, uma em Santana, na Madeira, outra na Gafanha da Nazaré, e o mesmo impulso de procurar uma vida melhor. Ambas tinham o oceano como paisagem, ambas empreenderam a mesma viagem transatlântica, com o Brasil por destino. Ambas levavam filhos pequenos, que cresceram no Brasil e anos depois se encontraram e casaram. Priscila Roque nasceu e cresceu brasileira, com pais brasileiros, diz – a mãe chegou bebé, o pai criança – numa casa portuguesa. Com certeza. E naturalmente. “Nunca me impuseram nada. Eram simplesmente portugueses”, reflecte. Recorda a música folclórica que o avô materno ouvia, o fado dos pais, a mesa da cozinha com os galos de Barcelos, o Casal Garcia como um dos vinhos oficiais. “O típico mercado da saudade”, ri. E ela cresceu a pensar que Portugal “era uma coisa de velhos”. “Não conseguia imaginar crianças e adolescentes em Portugal.”

Priscila fala-nos desde uma esplanada no Rossio. “É a minha vida agora.” É um lugar incontornável para quem faz de conduzir brasileiros por Lisboa umas das suas formas (imprevistas) de vida. E Lisboa é um sonho feito realidade. “Estou em casa, num lugar que me emociona.”

Chegou a Portugal, para ficar, em 2013. Não foi uma decisão impulsiva, antes o culminar de um longo namoro. A primeira vez em Portugal foi em 2007, depois, numa espécie de migração, regressou a cada dois anos, o tempo que demorava a reunir dinheiro para voltar. E tudo começou, não na casa “portuguesa” em São Paulo, mas num curso de rádio que fez depois de terminar a universidade, onde estudou jornalismo. Com um professor que havia sido locutor em Portugal descobriu o pop rock português: foi a sua “ponte contemporânea para Portugal”, foi a sua “primeira conexão afectiva real” com o país. Da música para as leituras foi um salto “intenso”. “Comecei a juntar peças do puzzle.” E a construí-lo desde esse Junho de há 11 anos, quando pela primeira vez aterrou em Portugal. Com a avó passou uma semana na Gafanha da Nazaré; em Lisboa (e arredores) passou três semanas sozinha. “Fiquei muito impressionada. Foi como se já conhecesse. Não as direcções, mas os sítios.” No elevador de Santa Justa, Lisboa abriu-se para Priscila. “Agora as pessoas dizem que é muito turístico, mas para mim foi mágico, extraordinário.” E se ainda hoje é importante para si, também o é o miradouro da Senhora do Monte: “Representa muito do que Lisboa é. É um cliché que continua impressionante ao pôr-do-sol."

Entre o trabalho como jornalista em São Paulo e os regressos a Portugal, Priscila começou um blogue, o Cultuga, que tinha como objectivo divulgar a cultura portuguesa no Brasil. Entretanto, conheceu o marido, Rafael Boro, entretanto, a sua casa foi assaltada. “Vamos embora”, disse Rafael, também jornalista. Ele já tinha a ideia de viver fora do Brasil; ela achava que não queria viver fora de São Paulo, meca do jornalismo. O assalto, onde perdeu tudo, baralhou os planos: se era para sair, só havia uma direcção. “Lisboa era o meu lugar no mundo, o meu canto, o meu espaço de tranquilidade.” Rafael já tinha vindo com ela e adorava a cidade, o país. “Preparámo-nos durante um ano e meio e aterrámos em 2013.”

Encontrou casa nas Avenidas Novas (“um bairro cativante”) e começou a receber emails de amigos, de amigos de amigos, a pedir dicas sobre Portugal. “Perdíamos muito tempo a responder, e gostávamos, porque era como se os recebêssemos em casa. Então, decidimos passar a escrevê-las no blogue.” Depois das dicas surgiram os roteiros personalizados: “Estudámos muito o país, coisas típicas de cada região e até mapas. Queríamos que as pessoas tivessem experiências genuínas”, explica Priscila. Um dia pediram-lhes para acompanhar uma visita por Lisboa. “Nunca tínhamos colocado essa hipótese, pensávamos que os brasileiros não precisavam, pela língua e pela abundância de walking tours”, confessa. Mas montaram um roteiro e fizeram-no. A pessoa gostou e repetiu; e Priscila e Rafael acrescentaram os passeios pela capital às experiências que oferecem. “No centro histórico”, sobretudo, com muita ligação à história. “Vivemos muito a cidade hoje” – a cidade é hoje o coração do projecto profissional. O Cultuga, que começou como um hobby, passou a “extra”, já é actividade a tempo inteiro, para ambos: escrevem no blogue, fotografam e contam histórias ao guiar. O público continua a ser o brasileiro, a cultura passou a ser histórica.

Se Lisboa é o seu lugar para viver, Priscila tem “um prazer inesgotável” em conhecer o país. “Agora emocionam-me as viagens por Portugal.” E resume o seu Portugal na sua própria história: Lisboa é a descoberta de uma casa, Gafanha da Nazaré e Santana são o encontro com as raízes, São Miguel (a paisagem natural mais bonita que já viu) é “a descoberta depois de ser portuguesa efectiva”.

“Pensava que poderia vir para Portugal, mas mais velha”, confessa. Chegou aos 31 anos – Portugal deixou de ser um país só para velhos.

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