Variações: como se fosse outra vez 1982
Finalmente, o projecto a que João Maia se dedicou durante mais de 15 anos torna-se realidade: o seu filme sobre António Variações, o cometa que iluminou a música portuguesa no início dos anos 1980, está em rodagens. Com Sérgio Praia a (re)encarnar o cantor.
O último acorde do piano ressoa pelo estúdio e, depois de terminar a sua interpretação de Povo que lavas no rio, o cantor volta-se para o homem da editora que o esteve a ouvir durante aqueles minutos. Sem se comprometer, em tom melífluo, o responsável diz “você tem qualquer coisa… você pode ser um grande cantor de folclore moderno. Temos é de trabalhar um bocadinho essa afinação.” A conversa continua, os minutos suficientes para percebermos que o homem da editora não sabe o que fazer com o talento em bruto (a “persona”, como a define) que está à sua frente. “O meu assistente depois vai enviar-lhe a minuta com o contrato. Obrigado. Felicidades.” Apertam as mãos, o cantor pega no casaco e dirige-se para a porta acompanhado pelo agente. “Corta!”
João Maia sai da cadeira improvisada por trás do monitor para ir conversar com os actores e a equipa e ajustar a velocidade, o ritmo, os diálogos, os movimentos da cena 37. Ao longo desta tarde de Julho, entre pausas para o cigarro e conversas com a directora de arte, a anotadora, o director de fotografia, os actores, a impressão que nos fica é que o cineasta tem o filme todo na cabeça, sabe exactamente o que quer, abre-se à descoberta espontânea de o transformar.
Não é por acaso: desde 2001 que transporta as ambições desse projecto. Em 2012, quando primeiro falámos com ele, João Maia esperava entrar em produção nesse ano e dizia que não conseguia sequer pensar noutra longa sem fazer primeiro esta. “Interessa-me fazer bem, não de qualquer maneira,” disse então o realizador, que tem em carteira a curta O Prego (1997), mas tem trabalhado mais em publicidade e televisão (foram seus a cause célèbre O Programa da Maria ou Manobras de Diversão).
Em 2018, finalmente, o seu projecto – a biografia do cantor que, entre 1982 e 1984, fez a ponte impossível entre Braga e Nova Iorque – é uma realidade. Variações está em rodagens.
Nesta tarde de Julho, o Namouche está repleto de equipamento de filmagem e de uma equipa em movimento – o estúdio de gravação da Estrada da Luz, inaugurado em 1973, está a “fazer as vezes” das lendárias instalações da Valentim de Carvalho, entretanto desactivadas.
Pouco passa das duas da tarde; André Szankowski, director de fotografia, instala a câmara na casa de banho dos homens para filmar uma breve cena na qual António Rodrigues Ribeiro – Variações apenas surgiria anos mais tarde – e o jornalista Luís Vitta, seu “agente” não oficial, esperam que os chamem para uma audição, folheando exemplares de época das revistas Música & Som e Plateia colocadas em mesas baixas ao lado dos cadeirões negros. É a primeira das cinco cenas previstas para este 21.º dia de filmagens, previsto para terminar já depois da meia-noite.
Já vamos a mais de meio da rodagem, 36 dias que terminarão na segunda semana de Agosto com cinco dias úteis na aldeia minhota de Fiscal, concelho de Amares, de onde Variações era natural (e com direito a apresentação à imprensa local no princípio de Agosto). Teresa Amaral, directora de produção com larga experiência de televisão, diz entre risos que um projecto como Variações são quase “umas férias” – “numa novela chego a ter nove meses de gravações gerindo três equipas!”. Na semana anterior à visita do Ípsilon ao plateau, filmara-se o célebre concerto do Trumps de 1981, que foi a primeira descoberta de Variações em palco, espalhada por dois dias de rodagem (um dos quais aberto à imprensa) – dias que, segundo Teresa, foram muito complicados porque “o espaço é muito pequeno, muito claustrofóbico, havia muita gente”.
Eis senão quando…
Um fantasma entra no Namouche. Calças largas de cintura alta, à pirata, de cabedal, metidas para dentro de botas de camurça; um longo casaco castanho, um brinco colorido na orelha esquerda, barba de dois tons. É António Variações que ali vemos e que aperta a mão da equipa e dos visitantes no início do dia de rodagem. Teresa Amaral dir-nos-á mais tarde que é muito curioso ver a reacção dos transeuntes em exteriores – “as pessoas param, ficam a ver, perguntam-se se têm alucinações”. A equipa já nem nota, mas quem vem de fora fica boquiaberto. A parecença é extraordinária.
No intervalo dos takes, os visitantes ao plateau pedem para tirar selfies com “este” Variações. Desde 2009 que Sérgio Praia, actor que se tem dividido entre o teatro (onde mais tem brilhado) e a televisão, mas que tem aqui o seu grande papel no cinema, é o Variações de João Maia – desde a primeira audição que nunca se pôs a hipótese de outro nome. Houve, claro, momentos de frustração: quando Praia entrou no projecto, a batalha judicial de três anos que opôs Maia ao produtor original estava finalmente em vias de resolução, mas mesmo assim só em 2016, e já com a produtora David & Golias de Fernando Vendrell por trás, é que o filme foi contemplado com financiamento do ICA. Foi em 2016 que Praia interpretou Variações em palco, num monólogo de Vicente Alves do Ó, como maneira de se libertar de alguma da tensão de estar ligado a um projecto que nunca mais arrancava.
O tempo que passou contribuiu, no entanto, para decantar o guião (que se concentra no período entre o regresso de António Rodrigues Ribeiro da liberal Holanda, em 1977, e a sua ascensão a vedeta musical em 1983) e a própria performance do actor. “O Sérgio está agora mais próximo da idade que o Variações tinha quando morreu,” diz João Maia – Praia tem hoje 41 anos; Variações morreu aos 39, em 1984. “Isso fez-me subir a idade das personagens, torná-lo um filme um pouco mais adulto, mais de homens.” Ainda assim, o argumento não mudou radicalmente desde o momento em que Maia terminou a primeira versão, em 2006, ao fim de dois anos de pesquisa e redacção – o realizador falou com muita gente que trabalhou com ou conheceu Variações, tem o apoio quer da família quer da editora. Foi sendo trabalhado, afinado, mas, no essencial, “é o mesmo guião”.
Voltamos à cena com que abrimos o texto: a audição que valeu a Variações o seu contrato com a editora Valentim de Carvalho. Enquanto a equipa de Szankowski prepara a câmara e Maia define marcações, Sérgio Praia ensaia Povo que lavas no rio com o pianista que o acompanha na cena, sob o olhar atento de Armando Teixeira (Balla), director musical do filme, e do barítono Rui Baeta, professor de voz do actor. Sempre que Variações canta no ecrã, será a voz de Praia que vamos ouvir, porque o importante, para Maia era fazer passar a alegria e a paixão que Variações tinha em cantar, algo que excluía à partida o playback de voz. É por isso que o realizador diz que os primeiros dias de rodagem foram os mais complicados – o calendário colocava muitas das cenas com voz ao vivo à cabeça, cantar é sempre uma das coisas mais difíceis para um actor. “Um terço das cenas do filme em que vemos o António a cantar já estão feitas,” diz.
A voz de Praia não é bem igual à de Variações, tem um tom mais baixo; mas o enunciar das palavras, o timbre em vibrato, o prolongar das frases, estão lá por inteiro. Ao longo de 45 minutos, enquanto o veterano José Raposo (no papel de Mário Martins, responsável de artistas e reportório da Valentim de Carvalho) estuda e ensaia o texto, Praia vai afinando, repetindo, aperfeiçoando. Uma vez tudo no sítio, Miguel Raposo, assistente de realização, pede para libertar o enquadramento e para se fazer silêncio no plateau. É apenas um ensaio filmado, Praia avisara Maia para tentar acertar tudo o mais cedo possível (“já sabes como eu sou, fico sempre melhor nos primeiros takes”).
E de repente é Variações que estamos a ouvir; Praia estivera a guardar-se, a voz sobe para o tom de Variações, o modo como acaricia as palavras e entoa o clássico de Amália que primeiro revelou o cantor ao grande público, os movimentos de corpo e de mãos com que acompanha. Está lá tudo.
Voltemos atrás no tempo uma hora. Segunda cena do dia. O corredor do Namouche foi liberto de mobiliário e decoração para apenas deixar as paredes de madeira, a câmara foca-se em Variações, enquanto passam por ele os músicos que o irão acompanhar em estúdio. João Maia explica que a cena se refere a um lendário “disco perdido” de Variações, uma primeira experiência de gravação em estúdio que nunca foi editada e cujas fitas se perderam. “Como o disco não existe, não sabemos o que estava nele e esta cena é uma sugestão do que não se conhece.” (Apesar de Maia dizer que os responsáveis da Valentim de Carvalho ainda têm esperança de que, por milagre, uma cassete apareça...)
Os músicos entram em fila indiana e Variações segue-os, benzendo-se. Praia entra no estúdio, a porta fecha-se, acende-se a luz “a gravar”. Não há diálogos, tudo passa apenas na presença física do actor, que olha para os músicos, sorri para eles nervosamente, como quem se pergunta “que raio estou eu aqui a fazer?”. Quando ele se benze, é arrepiante a semelhança com Variações.
É uma cena aparentemente simples, mas são precisos oito takes para acertar. Inicialmente por uma questão de coreografia e velocidade da entrada dos figurantes que fazem de músicos; ao fim do primeiro par de takes, Maia sugere um outro movimento de câmara para acompanhar Praia até à porta; quando tudo parece estar no ponto, Tiago Raposinho, no som, acusa interferências; finalmente, ao oitavo take, Maia diz “está feito”. (Por comparação, a primeira cena do dia, em que Vitta e Variações esperam à porta do estúdio, com bastante diálogo, ficou resolvida em três takes.)
Ao longo dos oito takes, contudo, é sempre Variações que ali está, com Sérgio Praia a invocar a presença do cantor de Amares com uma assombrosa naturalidade.
Tudo parece correr sobre rodas, sem percalços – Maia diz que a rodagem está dentro do timing, “sem grandes atrasos, mas é verdade que algumas das cenas mais complicadas em termos de produção ainda estão para vir”, citando exteriores no Príncipe Real e a semana de rodagem em Fiscal.
O realizador não poupa elogios à equipa, com especial destaque à direcção de arte (Wayne Santos e Sara Lança) e ao guarda-roupa (Patrícia Dória), ao mesmo tempo que fala das dificuldades em encontrar substitutos para os exteriores de Lisboa (a recepção da Valentim de Carvalho, por exemplo, vai ser filmada no Hospital Miguel Bombarda): “Estamos a rodar em digital, e o digital é impiedoso, vê-se tudo. Se houver um carro moderno ao longe, a câmara vai apanhar. Portanto o trabalho da direcção de arte e do guarda-roupa tem de estar impecável em termos de período.”
Depois dos ensaios, começa a rodagem da audição, que tem lugar em 1977, pouco depois de Variações regressar definitivamente da Holanda. Enquanto Sérgio Praia canta, o actor brasileiro Augusto Madeira, que interpreta Luís Vitta e não tem diálogo nesta cena, senta-se sobre uma coluna. Praia acaba de cantar, o “mas a tua vida não” da letra ecoando no estúdio, e José Raposo começa a falar. “Você tem qualquer coisa...” O veterano reproduz bem as inflexões, a linguagem floreada de Mário Martins, o A&R que lançou Marco Paulo ou Frei Hermano da Câmara – aliás citado no diálogo. “Quem?” pergunta Variações, que não reconhece o nome. “Um padre beneditino que eu descobri num mosteiro. Com uma voz!...”
É uma cena longa, com cinco minutos; após o take, Maia, determinado a colocar na imagem o que tem na cabeça, vai conferenciando com a anotadora, fala com os actores, ajusta com a equipa de câmara as marcações, os movimentos, os timings. Parte para um segundo take. Menos tenso, mais solto, um pouco menos longo. Teresa Amaral diz, sorrindo, que este é um projecto “um pouco mimado” – toda a gente ouviu falar, ao longo destes anos todos, do “filme do Variações”, a figura do barbeiro cantor continua a ser das mais surpreendentemente queridas do público.
É um peso que não se sente no plateau: “um dos mais calmos em que já trabalhei”, diz a directora de produção. O que se sente é a vontade de fazer um filme à altura de Variações, à altura da aparição que é Sérgio Praia no papel do cantor. Veremos o resultado em 2019, ano em que António Rodrigues Ribeiro faria 75 anos se fosse vivo, quando Variações chegar às salas. Saímos do Namouche com Povo que lavas no rio a ecoar na cabeça. Como se fosse outra vez 1982.