De que serve doar material escolar a Moçambique? De muito e de nada
Moçambique está em constante experimentação. Reduzir a formação dos professores é hoje aceite como uma má decisão. Há professores que mal sabem ler. Uma empresa portuguesa deu um contentor de material escolar. Foi bem vindo, mas é uma gota no oceano
“Quem vem a pé do Norte, chega aqui e acha que isto é Paris”, diz o escritor António Cabrita, sentado na varanda do seu apartamento em Maputo, semivazio, mas cheio de livros. A frase é dita com tristeza, mas sobretudo como conselho: é preciso sair da capital para perceber o que se passa com a educação em Moçambique.
Três dias a visitar escolas e a ouvir moçambicanos permitem perceber que há milhares de adolescentes acabados de chegar ao ensino primário, milhares de crianças que aos dez anos, com a 4.ª classe feita, não sabem ler nem escrever, e que um milhão não está sequer na escola. Para não falar das aulas debaixo das árvores, das escolas sobrelotadas, das “segundas turmas”, das salas com 70 alunos, da média de uma hora e 41 minutos de aulas por dia, ou da fraca formação dos professores primários: com a 10.ª classe (10.º ano português) e um ano de formação psicopedagógica, qualquer pessoa recebe uma bata branca para ensinar.
Em Moçambique, isto representa progresso. Em 1975, havia 3% de pessoas alfabetizadas, durante anos o país esteve em último lugar nos índices mundiais de pobreza, após duas décadas de guerra civil os livros tornaram-se um luxo exótico, as elites políticas têm uma formação muito frágil, o Estado não dá prioridade à educação, as exigências no ensino não param de baixar.
No entanto, bastaram 15 minutos no centro de Maputo a folhear exames finais do 1.º ano da faculdade — os alunos de António Cabrita — para ser evidente a dimensão do problema. Que é gigantesco, concordam professores, políticos, funcionários de organizações não governamentais, especialistas em educação, jornalistas e analistas ouvidos pelo PÚBLICO.
“Os alunos chegam à universidade tão mal preparados que, no primeiro dia de aulas, peço sempre que leiam um texto em voz alta. Percebo logo os que têm dificuldade em ler qualquer coisa que não seja muito simples. Alguns parecem miúdos de sete anos. Moçambique perdeu o contacto com os livros durante 19 anos. Hoje, nas universidades, apanhamos os filhos desse vazio”, diz Cabrita, escritor português e antigo crítico do semanário Expresso que, “vítima de um erro de geografia amorosa”, se mudou para Maputo há 15 anos.
Taninga, uma aldeia na areia
Livros é coisa de que nem se fala na escola primária da aldeia de Taninga, no distrito de Manhiça, a cem quilómetros da capital. Quando se pergunta quais são os principais problemas que enfrenta, a professora Olga Ngovene, directora da escola há sete anos, não hesita. São três: dos 840 alunos, 15 turmas têm aulas debaixo das árvores; muitos dos que têm sala trabalham no chão porque as carteiras não chegam, e não há orçamento para pagar a um guarda que, à noite, impeça a defecação dentro das salas. Soa a indiscrição da professora, mas este é um problema referido com naturalidade nos jornais nacionais e nos relatórios internacionais. “Trinta e nove por cento da população ainda pratica o ‘fecalismo’ a céu aberto”, diz a UNICEF no estudo Situação das Crianças em Moçambique, de 2014. “O guarda tem de ser pago pelos pais da aldeia e é difícil convencê-los.”
O tom da professora é factual, não de lamento, e passa a resignação num ápice: “A situação é razoável. Temos de nos contentar com o que temos. É o que o Governo instituiu.”
Estamos a uma distância que se faz em apenas uma hora e meia de carro, o que, num país com quase três mil quilómetros de comprimento, faz Manhiça parecer um subúrbio de Maputo. Mas o contraste é profundo.
A escola de Taninga, como a da aldeia 3 de Fevereiro e outras neste distrito, está construída em cima de solos de areia solta onde os pés se enterram, as salas têm apenas carteiras e um quadro, há três latrinas nas traseiras, um campo de ananases, outro de mandioca — e é tudo.
À volta, vêem-se arrozais e campos de batata-doce, banana, caju e amendoim. As casas da aldeia têm paredes de tijolo e coberturas de colmo, outras apenas colmo, e estão construídas em pequenos núcleos de três ou quatro unidades, como se fossem minipraças.
Atravessamos o caminho de areia aberto por entre a vegetação e chegamos à grande novidade desta escola: as duas salas da pré-primária, recém-construídas pela Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo (ADPP, associada à Federação Humana People to People). Não há professores, nem mobiliário, apenas duas esteiras no chão e um quadro na parede.
É aqui que quatro “facilitadoras” escolhidas entre as mulheres da comunidade — elas próprias com apenas a instrução primária ou nem isso — passam umas horas por dia com crianças dos três aos cinco anos. O salário mensal são 650 meticais, dez euros. Num país em permanente esforço e experimentação, esta “escolinha” faz parte do projecto-piloto da ADPP para a criação de uma rede de ensino pré-escolar comunitário aqui e no distrito vizinho de Boane. Construíram 70. Tem financiamento dos EUA e das receitas conseguidas através da venda de roupa usada — o controverso “negócio das calamidades”.
“O Moçambique rico”
Quando espreitamos pela janela e entramos, um rapaz de três anos e pouco rebenta num pranto e tenta fugir. “Nunca tinha visto um branco”, diz divertida Anabela Ganhane Joaquim, “facilitadora” e mãe de seis filhos. A sua tarefa é ensinar algumas palavras em português, língua que estas crianças nunca ouviram sequer, e regras de convivência básicas como usar as latrinas em vez do mato e ficar sentado a olhar para o quadro. “O meu português é melhor porque nasci na cidade, mas o deles não é um português seguro.” Todos sabem que a probabilidade de ouvir “português seguro” ali é igual à de ouvir “mongol seguro” no Douro, mas Anabela Joaquim é uma aldeã que fala como se tudo fosse fácil. Mas o português não é o maior problema, segundo um especialista em educação que pediu para não ser citado. O grande desafio é fazer a transição de uma sociedade sem escrita: “Quando as crianças chegam à escola, começam a ver coisas ali escritas que elas nunca viram na vida. Numa sociedade com escrita, as crianças começam a ter contacto com a escrita aos três meses.”
Na “escolinha” de Taninga, os alunos sentam-se nas esteiras e repetem as letras em voz alta. Já aprenderam duas frases na língua oficial de Moçambique: “bom dia” e “estamos bem de saúde, obrigado!”. Tudo o resto se passa em changana, uma das 20 línguas moçambicanas e a que se fala nesta região. A “primeira sorte” de Anabela Joaquim — a sua filha mais velha — acaba de chumbar numa escola secundária de Maputo. A ideia da pré-primária é nova, mas todos acreditam que vai fazer a diferença e reduzir desistências e chumbos mais à frente.
Três mulheres do Comité de Coordenação da Comunidade da aldeia, cada uma com um neto na nova creche, recebem-nos debaixo de uma sombra. Em 1975, quando Moçambique se tornou independente, já tinham 20 anos, mas nenhuma fala português. Trabalham na machamba desde sempre, explicam em changana, nunca tiveram “o privilégio de ir à escola”. Um dos netos é órfão de pai e de mãe — “ficaram muito magros e morreram”, conta uma das vizinhas. “Provavelmente sida”, diz alguém discretamente.
Segundo as Nações Unidas, 13% das crianças moçambicanas perderam o pai ou a mãe por causa da sida; em 2013, Moçambique, com uma população de 28 milhões, era o 8.º país do mundo com maior prevalência de VIH; em 2014, havia 183 mil crianças com o vírus; em 2017 morreram 70 mil pessoas com sida, e hoje há dois milhões de infectados. “O meu neto chega a casa e já consegue dizer em português os nomes de objectos, animais, transportes, árvores e frutos”, diz Laurinda Pedro Matchvé, embrulhada num pano tradicional — a capulana — com um padrão de castanhas de caju. Como imaginam o futuro destas crianças? Juvêncio Psungo, no seu blaser preto, ouve as vizinhas e acrescenta: “Espero que vão para a primária, depois para o secundário e a seguir arranjem trabalho. Mas, ultimamente, eles namoram cedo, nascem bebés e estragam tudo.”
Estamos a conversar debaixo da sombra de uma creche de Manhiça, mas parece que caímos dentro do índice de um relatório da ONU sobre desenvolvimento em Moçambique. “A actividade sexual começa muito cedo e tem como resultado elevadas taxas de gravidez na adolescência”, diz a UNICEF. “O casamento prematuro é uma das principais causas de desistência escolar entre as adolescentes.” Uma em cada duas raparigas casa-se antes dos 18 anos. Uma em cada dez casa-se antes dos 15. Em 2015, o Ministério da Saúde concluiu que 46% das adolescentes entre os 15 e os 19 anos estavam grávidas ou já eram mães.
Quando regressamos a Maputo já é noite. Ainda nem digerimos o dia quando um editor de Maputo diz com secura, sabendo que a frase tem a força de uma estalada: “Isso é o Moçambique rico: na Manhiça não há fome. Se forem à Zambézia [no centro do país] ou a Cabo Delgado [extremo nordeste], aí, sim, vêem coisas diferentes.”
Projecto Abraço de Ferro
Não há tempo para tantos quilómetros. Desafiando as recomendações, vamos a uma escola ainda mais próxima da capital. A Escola Primária Completa de Guava, em Marracuene, é apenas a 40 quilómetros de Maputo, na zona urbana e desestruturada que cresceu nos últimos anos ao longo da Estrada Circular financiada pela China. Aqui, as crianças usam uniformes e tudo é diferente das escolas das aldeias de Manhiça — mas só à primeira vista.
O chão do recreio também é de areia lassa e também há 15 turmas sem sala de aula. Quando chegam, são os próprios alunos que transportam o quadro até às traseiras, à procura da sombra de uma mangueira. Como nos distritos mais longínquos, esta escola é um espelho dos principais problemas da educação em Moçambique. O mais óbvio dos quais é tão simples quanto isto: há muitas crianças.
— Quantos alunos tem a sua turma? — pergunta o PÚBLICO.
— Sessenta e sete — responde a professora Maria Palvate.
— Sabe o nome de todos?
— Não, talvez de uns 50... Mas normalmente até ao fim do ano consigo saber todos.
Nércia Paula Mambo, chefe do posto administrativo de Marracuene, define a escola do bairro de Guava como “média”, pois “não está nem pior nem melhor do que o conjunto” do distrito. “Há quatro salas em construção, mas ainda há 15 turmas ao ar livre e continuamos de braços dados aos doadores”, diz a líder local da Frelimo, o partido que está no poder há 43 anos.
É ela quem está no primeiro lugar da fila de 77 convidados — alinhados como numa parada militar — que esperam a chegada de Raimundo Maico Diomba, o governador da província de Maputo. Hoje é dia de festa e a escola está uma confusão.
O doador do dia é a Ferpinta-Moçambique — que produz materiais de aço e equipamentos agrícolas e tem operações em Maputo, Beira e Nacala. De Portugal — onde está a casa-mãe, o Grupo Ferpinta de Fernando Pinho Teixeira, dono da décima maior fortuna de Portugal — enviou um contentor com onze toneladas de bens para oferecer a cinco escolas de Marracuene — ou seja, a dez mil alunos. Chamaram ao projecto Abraço de Ferro. No bairro de Guava, a equipa faz questão de dar os materiais às crianças, uma a uma — e não à escola. Mas de manhã, às 10h30, sem que se perceba porquê, centenas de alunos começam a ir embora.
Por causa do excesso de inscrições — são 4789 alunos —, a escola de Guava tem três turnos, o da manhã, o do meio e o da tarde, e os alunos só têm três horas de aulas por dia, explica a professora Delfina Jamince, 29 anos, que à tarde vende chamuças no mercado.
Mal entra, de sorriso aberto, coque alto e fato impecável, o músico e apresentador de televisão Nuno Abdul é bloqueado por uma multidão de alunos que o querem cumprimentar. Uma menina comove-se, abraçando-o com muita força, como se fosse um amigo próximo. O músico nasceu em Maputo em 1987, no décimo ano da guerra civil, e só estudou no ensino público até à 2.ª classe. O pai, na altura presidente da Federação Moçambicana de Atletismo, mudou-o para uma escola privada, melhor e mais segura. Hoje com 30 anos e pai de um bebé de três, já não hesitou e pôs o filho numa creche privada. A seguir, deverá estudar em Portugal. A escola primária onde esteve até aos oito anos, no bairro do Maxaquene, “está igualzinha ao que era nos anos 1990: pouca higiene, dos professores nem falo!”.
Alguém surge, com uma expressão aflita, a dizer que as crianças receberam instruções para irem para casa. Como a pequena corrupção é tão frequente quanto a grande, a regra é desconfiar. Porque estão a mandar os alunos embora? O camião com os caixotes empilhados e selados a plástico brilha, imponente, no recreio de areia. Uma autoridade local sugere que não se mexa em nada para, com calma, descarregar tudo mais tarde. A equipa distrital da educação está aqui em peso e cada um tem uma proposta diferente. Enquanto se negoceia o plano, alguém fecha o portão maior da escola e os funcionários da Ferpinta pedem às crianças para voltarem a entrar. Muitas já estão na estrada, também de areia, onde só carros com tracção às quatro rodas não se afundam. Nisto, o modelo Pedro Guedes, que com o irmão gémeo, Ricardo, e a namorada ajudou a promover o Abraço de Ferro em Portugal e voou até Moçambique para o dia da doação, sobe para o camião e começa a descarregar.
É dali que saem 1734 mochilas novas e muito material para trabalhar: 30 mil tintas, cinco mil cadernos, sete mil canetas, 663 estojos, oito mil lápis de carvão, seis mil marcadores, 3144 afias, 3250 borrachas, a lista é longa. Há centenas de livros de histórias, mil brinquedos, 2160 sumos e muitas caixas com material para os professores, como pastas e arquivadores. Os manuais escolares usados do 10.º, 11.º e 12.º do ensino português serão oferecidos às bibliotecas escolares. Os materiais foram recolhidos ao longo de um ano em Lisboa, Porto, Santa Maria da Feira, Carregosa, Oliveira de Azeméis, Espinho, Lourosa, São João da Madeira e Águeda, e a operação teve como principais parceiros a Fundação do Sporting Clube de Portugal e a Turkish Airlines. Não há mochilas para todos, mas muitas crianças não precisam. Difícil é garantir que quem tem uma mochila velha — e há muitas — recebe uma nova. Há adultos que põem duas ou três de lado, sem pudor. “Também tenho filhos...”, diz uma professora. As horas seguintes serão de autógrafos e atropelos, idealismo e cinismo, alegrias e decepções, selfies, suor e lágrimas.
Chiu, “o papá Diomba” vai falar
Um flashback rápido: mal chega, “sua excelência o senhor governador da província de Maputo” cumprimenta a parada de Guava e, um a um, dá 77 apertos de mão. Já estão todos sentados quando uma menina de uniforme azul sobe ao palanque para ler a mensagem dos alunos. Em português, agradece a visita de Raimundo Diomba e a ajuda dos “titios da embaixada da Irlanda”, e promete que os estudantes vão “utilizar o material com cuidado para poder beneficiar outras gerações”. O mestre-de-cerimónias ignora o erro e pede uma “forte salva de palmas” para a aluna que “leu tão bem a mensagem” e, com isso, “provou que está bem assimilada” — um estranho uso para uma palavra que ficou do tempo colonial.
O dia vai ser longo, é preciso avançar. “Com a permissão de sua excelência”, António Marcos — boina preta, luvas brancas e calças brilhantes — canta dois hits e faz uma espécie de dança das tesouras sem que a areia lhe atrapalhe as pernas. A seguir o microfone passa para Salmina Alexandre, directora adjunta de Educação e Desenvolvimento Humano de Marracuene, que começa por cantarolar, em tom de balada revolucionária, “mas nunca falta... a educação... mas nunca falta... a educação...”. O discurso é breve e fecha em tom eufórico: “E assim, [com a ajuda dos doadores estrangeiros], estão criadas as condições para promover a cultura de leitura nas nossas crianças, muito obrigada!”
É provavelmente a este tipo de atitude que o arquitecto português José Forjaz, de 82 anos e em Moçambique desde 1974, se refere quando diz mais tarde, no seu atelier de Maputo, que “o hiato entre o que se queria na independência e a realidade já é claro, mas infelizmente dá-se muito a ideia de que ‘temos capacidade, não temos é experiência’”.
Forjaz integrou os governos da Frelimo entre 1975 e 1985: foi conselheiro do ministro das Obras Públicas e secretário de Estado do Planeamento Físico. A seguir, “pediram-lhe” que montasse uma Faculdade de Arquitectura na Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Foi aí que deu aulas durante duas décadas. Em 1976 — “as pessoas não acreditam, mas é verdade” — “entrava na universidade quem tivesse diferente de zero”. Passados 40 anos, “há muitas e boas excepções, mas a consciência da própria ignorância atravessa todas as universidades”. “As estatísticas emergem e o desconsolo aparece”, diz o arquitecto, autor do célebre Monumento a Samora Machel e de vários edifícios públicos. “A educação toca o fundo do barril. Em 1976 havia uma grande esperança. Hoje vemos que o Orçamento do Estado é usado para enriquecer alguns.”
O Abraço de Ferro nasceu inspirado por um projecto de Vânia Teixeira, uma jovem contabilista da Ferpinta-Moçambique que, em 2017, fez uma acção parecida, a título pessoal, para 500 alunos naquela mesma escola de Guava, contou Ricardo Ribeiro, director de operações da Ferpinta-Moçambique. Na cerimónia, quando recebeu o microfone, foi a ela que o gestor português agradeceu com especial cuidado, para além dos parceiros. Mais tarde, ao PÚBLICO, o “maestro” da operação diz que, no futuro, quer fazer acções parecidas noutras regiões de Moçambique: “Não queremos que seja uma acção solta.” Sabe que não será o contentor doado por empresas e cidadãos que vai resolver o problema, mas não fazer nada não lhe parece boa opção. Trabalham no país, têm 130 funcionários moçambicanos, sentem “o dever de fazer”.
Agora “é preciso menos barulho” pois “o papá Diomba” vai falar, pede Salmina Alexandre. O governador da Frelimo, que combateu pela independência contra o Exército português, fez um mestrado em engenharia e fala inglês, russo, maconde e suaíli, é político há décadas e abre o discurso como se estivesse num comício: “Viva a educação!” (“Viva!”, gritam as crianças). “Viva o livro!” (“Viva!”). “Viva o gosto pela leitura!” (“Viva!”). “Moçambique oi!” (“Oiii!”). “Aluno disciplinado, oi!” (“Oi!”). “Aluno que não faz barulho, oi!” (“Oi!”).
Diomba cresceu em Mueda, o distrito de Cabo Delgado colado à Tanzânia que é talvez o mais pobre do país. Sabe bem que aqui — nos arredores da capital — estamos no “Moçambique rico”. Talvez por isso o tom é de optimismo exaltado. Descreve a acção da Ferpinta como “um gesto humanitário imensurável” que vai “semear em cada uma destas crianças o espírito de estudar e gostar de ler”. Mas à terceira ou quarta frase, e as televisões locais estão a filmá-lo, assume pose de campanha eleitoral pura e dura: agradece a “sua excelência Filipe Jacinto Nyusi, Presidente de Moçambique, o empenho que tem demonstrado no processo de pacificação do país”, e sublinha: é por haver “paz que estamos aqui numa festa a receber uma oferta dos nossos amigos”.
Estamos a três meses do início de um ciclo eleitoral sem precedentes e todas as oportunidades são poucas. Fruto dos acordos entre Nyusi e Afonso Dhlakama — líder histórico da Renamo (maior partido da oposição) que morreu em Maio —, o Parlamento acaba de aprovar alterações à Constituição e à lei eleitoral há muito esperadas.
As mudanças permitem que os governadores e os administradores distritais passem a ser eleitos e deixem de ser nomeados pelos ministros e pelo chefe de Estado, e introduzem ainda o conceito de cabeça de lista. Os efeitos vão ser sentidos nas eleições autárquicas de Outubro de 2018, nas gerais de Outubro de 2019 — que incluem presidenciais, legislativas e provinciais — e nas eleições para os administradores distritais em 2024. Analistas políticos ouvidos pelo PÚBLICO estão convencidos de que a Frelimo antecipa uma perda de poder significativa neste novo ciclo eleitoral. A confirmar-se, a vida de homens como Raimundo Diomba, nomeado pelo Presidente da República, poderá estar a caminho de uma mudança radical.
Veterano, é Diomba quem corrige, com humor, a aluna que abriu a cerimónia desta manhã: “Falaram da Irlanda. Confundiram porque estão a receber muitos apoios! De facto, a Irlanda fez esse muro que está aí”, diz o governador, apontando para o fundo da escola. “Não tiveram oportunidade para agradecer na altura e aproveitaram agora! A Ferpinta não deve sentir que houve alguma exclusão!”
“Sua excelência” não se alonga. “Aqueles que tiverem um lápis, que tiverem uma borracha, que tiverem um caderno não muito rasgado, mas que ainda tem papel para escrever, podem oferecer. Estão a contribuir para o engenheiro de amanhã, para o dirigente de amanhã, para o agricultor de amanhã. Moçambique oi! Presidente Nyusi oi! Muito obrigado.” É a deixa para Caio Oliveira, jogador de hóquei em patins do Sporting e também embaixador do Abraço de Ferro, oferecer ao governador uma T-shirt oficial com os autógrafos da equipa. Com “elevada honra”, o mestre-de-cerimónias anuncia a “retirada deste local” de “sua excelência o governador de Maputo” e pede aplausos em changana.
Professor: herói ou bandido?
“Os alunos não podem aprender o que os professores não sabem”, diz o relatório do Banco Mundial (BM) sobre educação em Moçambique que em 2015 deu muito que falar. O retrato é “terrível, terrível, terrível”, diz Fernando Lima, publisher e colunista do semanário Savana, abanando a cabeça.
O documento chama-se Indicadores de Prestação de Serviços da Educação e foi conduzido com o Consórcio de Pesquisa Económica Africana e o Banco Africano de Desenvolvimento. Envolveu 1006 professores, 1731 alunos e 200 escolas primárias moçambicanas, e amostras idênticas na Tanzânia, Quénia, Uganda, Nigéria, Senegal e Togo. Avalia tanto professores como alunos, sobretudo em relação à assiduidade e ao saber.
Os piores resultados são os de Moçambique: quando os inspectores chegaram às escolas em visitas-surpresa, 45% dos professores não estavam e só 39% estavam a dar aulas (11% estavam na escola, mas fora da sala de aula; 5% na sala, mas não a ensinar). É também este estudo que conclui que os alunos têm em média 1h41m de aulas por dia. “Dos 190 dias de aulas, os alunos recebem apenas 74 dias efectivos de ensino.”
As perguntas dos exercícios para aferir o conhecimento são simples. Escolher a palavra correcta para completar a frase “... acordo, escovo os dentes”, sendo as três hipóteses “Que”, “Quando” e “Porque”. Outra frase é “... dinheiro tem?” (“Quem”, “Quanto” ou “Quantos”?). Isto a Português. Na Matemática, eram contas como 44+33; 86-58; 37x13 e 72:9. Só 65% dos professores conseguiram fazer subtracções de dois dígitos (exemplo: 86-58); e só 39% conseguiram fazer subtracções com números decimais (exemplo: 12,15-11,83). A pontuação média obtida pelos professores moçambicanos — que ganham cerca de nove mil meticais por mês (130 euros) — na avaliação de Português, Matemática e Pedagogia foi um embaraço nacional: 29%, o pior valor entre os seis países estudados. O Quénia, o melhor, apresentou uma pontuação de 58%.
Nada disto espanta Liudmila Jeque, apresentadora do Vidas em Directo da STV, ou o músico Nuno Abdul. Os dois são “embaixadores” da doação da Ferpinta e percorremos juntos os 45 minutos de carro de Maputo até Marracuene. “Há professores que mal sabem ler e escrever”, diz a antiga modelo. Ela própria tem uma prima de 30 anos que é professora na Matola e dá erros ortográficos que a deixam perplexa. “Por causa de todos os anos que tivemos de guerra, é supernormal encontrar pessoas com 30 e 40 anos que não sabem ler nem escrever”, diz o músico.
Os dois fazem parte de uma pequeníssima elite de jovens que nasceram nos anos da guerra civil, passaram pelo ensino público e acabaram no privado. Liudmila Jeque, que cresceu em Quelimane, capital da Zambézia, andou no ensino público até à 6.ª classe, mas com um truque familiar. “Todos os dias vinha da escola e o meu pai, chefe de escala nas Linhas Aéreas de Moçambique, estudava toda a tarde connosco — somos quatro irmãs. Ouvíamos os meninos a brincar na rua e nós ali a estudar... Mas hoje somos todas licenciadas.” Na 7.ª classe, acabou por ir para um colégio privado chamado Escola Secundária Geral Mãe África. “Recentemente, o meu pai disse-me que me tirou do ensino público não só pela qualidade de ensino mas também porque os professores queriam dinheiro. Isto no ano 2000. A corrupção tem tomado conta do nosso ensino.”
O arquitecto José Forjaz, que conhece o país desde os anos 1950, é ainda mais duro. “As escolas primárias públicas são destrutivas e são um grande negócio. Todos sabem que há professores que violam as meninas, que há professores que não sabem fazer subtracções simples, que há professores que vendem as notas, que exigem dinheiro para passar os alunos e até para os inscrever na escola”, diz num registo sereno e seguro. “Eu vejo, todos vêem e todos são obrigados a cooperar.” Ainda este ano, o arquitecto “cooperou” e deu dinheiro a uma senhora que conhece e a quem a escola pedira 1500 meticais (22 euros) de “refresco” para inscrever o filho numa primária da capital. “Toda a gente conhece casos iguais.”
É tal a reputação dos professores primários que na sua tese de doutoramento sobre a formação dos professores do básico, Hilária Joaquim Matavele, professora na Faculdade de Educação da UEM, escreve sobre a “vergonha” associada à profissão. “Quando saem da escola, os professores escondem a bata que vestem na escola para não serem identificados como professores”, diz um dos entrevistados para a sua investigação. É Hilária Matavele, cuja tese foi apresentada há dois anos na Universidade de Aveiro, quem sistematiza o ponto de partida do país. “Em 1966-67, na escola secundária, os negros representavam apenas 1,1% dos alunos (Gasperini, 1989). Na mesma linha estava o ensino superior oferecido pela única instituição existente, a Universidade de Lourenço Marques, na qual em 1973 apenas 40 dos 3000 alunos eram negros (Gómez, 1999).” A seguir à independência deu-se uma “explosão escolar”: passou-se de 671.617 matriculados no ensino primário em 1975 para 1.276.500 em 1976. Em 1980 já eram 2,3 milhões e hoje há quase um milhão de novos alunos a entrar no sistema todos os anos.
Duas explosões
A explosão demográfica é um factor decisivo. Há dez anos havia 24 milhões de habitantes, hoje há 28. Na microescala, vê-se assim: o distrito de Marracuene, que a 4 de Julho recebeu a doação de Portugal, tinha 36.150 alunos na escola primária em 2015 e hoje tem 69.548.
Aumentar o número de professores tornou-se uma urgência. Mas para ser feito depressa, baixou-se a exigência da formação. Não era preciso ter-se uma licenciatura, depois não era preciso ter-se a 12.ª classe mais três anos de formação psicopedagógica e depois deixou de ser preciso ter-se a 10.ª classe mais três anos de formação. Há quase uma década que a regra é 10+1. “Havia muita falta de professores primários e o Governo achou que era melhor ter professores piores do que não ter professores”, diz a dinamarquesa Birgit Holm, directora executiva da ADPP Moçambique, no país desde os anos 1980.
Mas não está a resultar. O debate foi aberto, em particular depois de o anterior ministro da Educação ter admitido em público o fracasso da ideia. “O próprio ministro disse que só 4,5% das crianças da 3.ª classe fazem o que é suposto fazer”, diz Birgit Holm. Espera-se que em breve volte a ser, pelo menos, 10+3.
O governador Raimundo Maico Diomba não se quer comprometer. “Vamos deixar os técnicos especialistas discutirem o assunto e depois podemos opinar”, responde ao PÚBLICO, à saída da escola de Guava. Mas se dependesse da equipa distrital de Educação de Marracuene, estava resolvido. Susana Bruno, a directora, diz que a maioria dos 989 professores do distrito só fez a 10.ª classe, mais um ano de formação, e que isso “é pouco”. E Gabriel Mandate, chefe de repartição da Educação Geral, diz que “o tempo é curto”: “Estamos a tirar da escola crianças da 10.ª classe para lhes dar formação como professores, quando elas ainda precisam de estudar.”
O herói de Isaías
“Não foram só as pontes que foram destruídas nos anos da guerra”, diz António Cabrita, professor de Dramaturgia na Escola de Comunicação e Artes, um braço da UEM. “As províncias ficaram isoladas. Um livro sai aqui e não chega a Nampula”, a “capital do Norte”. “Mas também não chega a Quelimane”, mais a sul, mas a 1600 quilómetros de Maputo. “A última livraria de Nampula fechou há um ano.”
É um de muitos sinais num país que, como diz, tem uma elite que não lê e que cresceu sem livros. “Nas revistas, quando aparecem as casas dos políticos, só se vêem bibelots. Os livros têm tiragens de 200 exemplares, mesmo o Mia Couto faz tiragens de 300.” Quando foi à Beira lançar Os Crimes Montanhosos (edições Cavalo do Mar, 2018), com poemas seus e de Mbate Pedro, venderam quatro exemplares na sessão de lançamento, e no debate na universidade, a seguir, não venderam nem um. “E 80% dos escritores moçambicanos são da Beira!” Nos quase 20 anos de guerra, “não se fizeram livros, não se importaram livros, as poucas livrarias que existiam desapareceram, e quebrou-se o circuito dos bens culturais”, diz num fôlego. “Maputo ficou numa redoma.” Em 1975, o Instituto do Livro e do Disco fazia edições de 30 mil exemplares. “Hoje está praticamente parado e as últimas edições tinham tiragens de 200.” A professora primária Delfina Jamince, da escola de Guava, é um bom exemplo da preocupação do escritor. Gosta “muito de ler”, sim. Por exemplo: “Livros de histórias... a Bíblia e livros com ensinamentos.”
Nada disto perturba Isaias Wate, um homem grande com um sorriso proporcionado à sua altura. Operacional da Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo há 22 anos, é ele que nos guia pelas escolas de Manhiça. No escritório, mostra os manuais escolares que a ADPP editou em línguas locais e português, para responder à nova política do ensino bilingue. Onde muitos vêem o futuro comprometido, Wate vê sobretudo a “marcha da educação em progresso”: “Muitos professores têm a paragem do ‘chapa’ a 15 quilómetros da aldeia onde estão colocados para ensinar o ABC. Há chuva, têm dificuldades. Há vento, têm dificuldades. Nasci em 1964 na aldeia de Manjacaze, em Gaza, onde a escola era sinalizada pela árvore mais alta. Não havia mais nada. Foi debaixo dessa árvore que me tornei um cidadão activo. Há alguma dúvida? O professor é um herói nacional.”
O PÚBLICO viajou a convite da Ferpinta-Moçambique