Em busca dos ciganos do Baixo Alentejo - agora já os conhecemos um a um

Entre 2010 e 2018 a população cigana no distrito de Beja aumentou 80%. Cerca de 70% vive em casas de alvenaria, 17% em barracas e 13% em tendas ou roulottes. As situações mais problemáticas afectam as comunidades de Beja, Moura, Serpa e Vidigueira.

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Enric Vives-Rubio

Os números nunca batem certo quando se fala de cidadãos ciganos residentes em Portugal. O primeiro estudo nacional, baseado nas informações prestadas pelas autarquias e apresentado pelo Alto-Comissariado para as Migrações em Maio de 2017, apontava para 37 mil indivíduos. Outros levantamentos efectuados anteriormente referem que o seu número poderia oscilar entre os 40 e os 60 mil. Estrada fora, foram agora conhecer, um a um, aqueles que moram no Baixo Alentejo. Contaram mais de 3600, ou seja, 2,4% da população da região.

As disparidades nos números têm dificultado a integração dos ciganos no Baixo Alentejo, sobretudo na cidade de Beja, onde os responsáveis autárquicos alegam que a capital do distrito está a ser “invadida” por famílias vindas dos concelhos vizinhos. O fenómeno, referem, dificulta uma avaliação sobre o número real de famílias residentes com vista a um futuro processo de realojamento dos que vivem em barracas ou tendas.

Contar, uma a uma, as famílias ciganas residentes nos 14 concelhos do Baixo Alentejo parecia, à partida uma tarefa ciclópica, sobretudo quando se sai dos centros urbanos para o espaço rural, onde se sabe que reside em condições muito precárias um desconhecido número de famílias desta etnia. Para alcançar um tal desiderato só tendo alguém que soubesse onde as comunidades vivem neste tão extenso território. Anselmo Prudêncio, dinamizador no Núcleo Distrital de Beja da EAPN Portugal/Rede Europeia Anti-Pobreza, conhecia a pessoa indicada: o presidente da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), Prudêncio Canhoto, que foi mediador municipal em Beja entre 2009 e 2016 e premiado em 2016 pela Associação Letras Nómadas como o “Cigano do ano”.

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Os dois estabeleceram um roteiro que, à partida, garantia um levantamento credível e rigoroso das famílias ciganas no Baixo Alentejo. Pela primeira vez, iria ser possível fazer o seu recenseamento quantitativo e o registo fotográfico habitacional como forma de comprovar as condições habitacionais das comunidades. O PÚBLICO acompanhou os contactos feitos em quase todos os concelhos e observou aspectos de uma realidade que não entra nas contas dos gabinetes autárquicos ou da administração central. Pela primeira vez, estava a ser feito o primeiro trabalho do género no Alentejo que iria ser comparado com o estudo de Caracterização da População Cigana do Distrito de Beja realizado em 2010 pelo Centro Distrital de Segurança Social de Beja.

Este levantamento concluiu que a população desta etnia passou dos 2048 de indivíduos em 2010 para os 3619 que acabam de ser registados. Cerca de 70% vive em casas de alvenaria, 17% em barracas e 13% em tendas ou roulottes. Apenas o concelho de Cuba registou uma descida no número de elementos da comunidade cigana. Os restantes 11 concelhos apresentam um aumento. A maior subida foi em Beja, com mais 825 cidadãos ciganos em relação a 2010. E tudo indica que este crescimento se possa acentuar. 

Beja, com 1399 ciganos, e Moura com 983, são os concelhos onde habitam mais famílias.

Realidades diferentes

O périplo começou pelos concelhos do sul do distrito - Almodôvar, Mértola, Odemira (não estão referenciadas famílias ciganas em Ourique). Em Mértola, as famílias ciganas vivem integradas e a viver do seu trabalho. Em S. João dos Caldeireiros, José Albino vende roupa nos montes do chamado Alentejo profundo “e tem fregueses certos”, refere a esposa enquanto regava as laranjeiras e os limoeiros que plantou num terreno que é seu, assim como a casa onde vive, mais umas quantas que estão na vizinhança. Tem um filho que explora um café/restaurante em Mértola e a esposa “não é cigana". Uma sua filha é funcionária na Câmara de Mértola.

Prudêncio Canhoto conhece os locais onde residem as famílias ciganas, mesmo nos sítios mais recônditos. Vivem dispersas, pelo concelho, 20 famílias ciganas (47 adultos e 30 crianças e jovens). Não habitam em barracas ou tendas, mas em casas próprias ou da autarquia. O cenário altera-se no concelho de Almodôvar.

Osvaldo Barão, 33 anos, trabalha numa empresa privada a cortar pasto para o gado e lamenta-se das condições em que vive: há uma década que todos os dias monta e desmonta uma tenda, onde dorme com a esposa e dois filhos menores. “Estou à espera de uma casita que o presidente [da câmara] me arranje”, diz, frisando que na terra de onde é natural não consegue que lhe aluguem uma habitação. A mãe de Osvaldo ironiza com a situação. “Nesta família somos todos Barões mas não parece”.

Mais a norte do distrito, em Alvito, a autarquia pretende que as famílias ciganas ocupem casas que estão devolutas no centro da vila. “Não queremos ostracizá-los”, garantiu ao PÚBLICO o presidente da Câmara, António Valério, assumindo que metade da renda “é suportada pela autarquia”. A solução proposta é a mesma que está a ser seguida na Vidigueira, um concelho marcado por constantes e problemáticos conflitos entre as comunidades ciganas, representadas pelas famílias dos Azuis e dos Cabeças, e a autarquia.

Os conflitos entre as duas famílias, que fizeram história, estão sanados mas persiste um contencioso com a autarquia da Vidigueira pelas precárias condições de alojamento a que as 49 famílias ciganas (101 adultos e 103 crianças e jovens) têm estado sujeitas há vários anos.

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Dormir no restolho

No lugar da Travessa da Fonte, na periferia da Vidigueira, é difícil suportar o calor no interior das barracas. A cabeça bate nas chapas de zinco do telhado. “Está de queimar”, queixa-se o elemento mais velho das sete famílias ali residentes. Tem 60 anos e diz ter nascido naquele local. "À noite dormimos no restolho”, conta. Ninguém consegue estar nas barracas. “Os ciganos têm de abalar para onde haja uma fonte de água fresca e árvores com sombra”, explica Prudêncio Canhoto.

No interior da vila, o velho patriarca da família Azul perde-se a contar os filhos e netos. “Uma menina aqui. Dois meninos acolá. Mais seis moços ali, eu e a mulher. E ainda falta o mê manel”. Num casão apertado concentram-se cinco casais e mais 14 crianças. “Quando os colchões se estendem à noite chegam à porta da rua. Dormimos todos juntos sem qualquer privacidade”, sublinha uma jovem mãe, realçando as dificuldades de uma outra jovem que está grávida e suporta as dores no corpo em silêncio para não incomodar os outros quando dormem. Vivem todos os dias nestas condições que Miguel Ramalho, porta-voz da autarquia, reconhece serem deploráveis mas impossíveis de superar com os meios que o município dispõe.

O problema da habitação para a comunidade cigana e não cigana já motivou reuniões com a secretaria de Estado da Habitação e a câmara aguarda uma próxima com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. Mas enquanto as respostas não chegam, “a autarquia da Vidigueira vai pagando a renda das famílias que ocupam habitações alugadas”, sublinha Miguel Ramalho.

Em Serpa convivem dois mundos: o das famílias que vivem em situação precária e o das outras que conseguiram superar o problema da habitação construindo elas próprias a sua casa. Há um bairro com 31 habitações à saída da cidade onde convivem famílias ciganas, a maioria, com famílias não ciganas. Ao lado, um conjunto de barracas faz o contraste e alimenta o mal-estar e a revolta.

Mário José Barão que tem a sua casa em alvenaria, decorada com gosto e imaculadamente limpa, sublinha que “as casas não crescem, mas crescem as famílias”. Prudêncio Canhoto lembra que há uns anos, “as famílias tinham, em média, entre 8 a 10 filhos mas agora ficam por menos de metade”. Mesmo assim, e para os padrões da comunidade não cigana, “continua a ser muita criança porque todos gostam de ter uma grande família - o cigano porque não gosta de estar sozinho”, acrescenta.

Mário Barão, familiar dos “Barões” de Almodôvar, diz que nos dias de hoje a sociedade de Serpa não faz distinção: "Somos todos bem aceites. Aqui tratam-nos pelo nome”. E conta que tem um filho no 12º ano e um sobrinho a frequentar um curso de engenharia alimentar no Politécnico de Beja.

A pouco distância e no mesmo concelho, em Brinches, Margarida Ramos, membro da comunidade ali residente, diz que o seu sonho é ter uma casa. "Dá dignidade às pessoas”. Dorme numa furgoneta abandonada.

Em Vila Nova de S. Bento, a maioria das famílias ciganas ali residentes foi construindo as suas próprias habitações, com o dinheiro que amealharam em Espanha nos trabalhos agrícolas. É o caso da família Damião: “Lutámos uma vida inteira em Espanha, fazendo os trabalhos que apareciam, sobretudo na agricultura”. Sacrifício atrás de sacrifício permitiu a compra de um terreno para si e para os filhos.

Anselmo Prudêncio diz que “o trabalho não pode parar” e que os dados recolhidos “obrigam a repensar a realidade e as leituras feitas sobre a comunidade cigana residente no Baixo Alentejo”. 

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