O homem que geria negócios com uma panela de pressão
Tirou a Fiat e a Chrylser da miséria mostrando que um plano financeiro não chega. O que podemos aprender com o método de gestão de Sergio Marchionne?
Quando Sergio Marchionne chegou a Turim, em 2004, a Fiat era “uma anedota”. No plano financeiro, o grupo estava sem travões. Em termos comerciais, os modelos mais recentes equivaliam a despistes. E quanto aos recursos humanos e operações, a Fabbrica Italiana Automobili Torino, fundada em 1899, era um carro desgovernado. A cada passo havia greves; a produção era obsoleta; a gestão era uma incineradora – nos três anos anteriores, a Fiat tinha tido quatro presidentes executivos (CEO) e nenhum conseguira inverter a marcha.
Até que chegou Sergio Marchionne, um outsider sem experiência na indústria automóvel, que morreu esta semana, por razões ainda não totalmente esclarecidas. Foi recebido em Turim com desconfiança, dentro e fora do sector. “Olharam para mim como um estrangeiro [vivia fora de Itália desde 1966]. Eu via o descrédito estampado nas caras deles. Estavam ali sentados, na sala, a pensar ‘lá vamos nós outra vez, vamos ter de ensinar o negócio a este tipo e se ele for igual ao último, estamos lixados’”, descreveu o próprio num texto de 2008, aludindo à primeira reunião na Fiat. Formado primeiro em Filosofia e só depois em finanças empresariais, Marchionne tinha uma carta na manga – era preciso perceber o comportamento organizacional e mudar a cultura. Sem isso, nenhum plano financeiro iria dar resultado. E foi isso que fez, juntando duas coisas que a teoria separa, gestão e liderança, e segundo um método baptizado como o “método da panela de pressão”, em que a direcção financeira e de recursos humanos eram apenas instrumentais.
A cultura como essência
Em Julho de 2004, chamaram-lhe louco em Itália quando disse que chegaria a 2007 com uma facturação de dois mil milhões de euros. Mas Marchionne, que tinha sido consultor da área fiscal na Deloitte & Touche e dera a volta aos prejuízos da SGS, na Suíça, tinha o total apoio de John Elkann, o neto de Humberto Agnelli, que herdara a incumbência de administrar o império da família.
Em três anos operou a reviravolta. E em 2009, repetiu o feito nos EUA, com a Chrysler. “Não são duas histórias de boa gestão financeira. É uma só notável história de liderança”, diz Bernardo Bertoldi, professor da Universidade de Turim e autor de dois artigos sobre Marchionne para a Harvard Business Review (a “bíblia” de muitas escolas de gestão no mundo).
Em Itália como nos EUA, Marchionne mostrou que a teoria de que as finanças dependem de uma boa gestão fazia sentido na década de 50 mas não chegava no século XXI. “A cultura é o tecido que mantém uma empresa viva, não é apenas um ingrediente para o sucesso, é a essência do sucesso”, defendeu na primeira vez que se dirigiu aos trabalhadores da Chrysler. Foi a 10 de Junho de 2009, um dia depois de a aquisição da Chrysler pela Fiat ter sido aprovada nos EUA. Os norte-americanos acreditaram nele – o sucesso na Fiat era um certificado de credibilidade.
A primeira coisa que Marchionne fez quando chegou à Fiat, em 2004, e à Chrysler, cinco anos depois, foi renovar equipas. Despediu os gestores de topo e foi às segundas e terceiras linhas escolher substitutos. “Numa primeira fase, era eu quem escolhia estas pessoas”, recordou num texto para a Harvard Business Review, em 2008.
Regra geral, as vendas de uma empresa em reestruturação estagnam, resume Bertoldi, ao telefone, a partir de Turim. “Focam-se em cortar custos, despedir pessoas, controlar os activos empatados em fundo de maneio e, como resultado, ficam sem espaço para investir em vendas e lançar novos produtos”, descreve. “A Chrysler mostrou que não tinha de ser assim e logo no primeiro ano de liderança de Sergio foi ao salão automóvel de Detroit, apresentar 16 produtos significativamente renovados”, conta. Como foi possível contrariar aquele ciclo doloroso? O segredo está, segundo Bertoldi, na tal “panela de pressão”.
Na Fiat, a gestão quase dinástica dos Agnelli – que transformara os cargos em posições vitalícias, as promoções em certezas desde que se respeitasse o status quo e a palavra do chefe – foi pulverizada em dois tempos. “Infelizmente, os gestores mais velhos não estavam habituados a assumir responsabilidades e quando se trabalha muitos anos nesse status quo é quase impossível mudar. Em muitos casos, tive de os despedir, não tinha alternativa: estavam demasiado agarrados a velhos hábitos”, testemunhou o próprio.
Marchionne simplificou hierarquias: as pirâmides deram lugar a estruturas horizontais, mais ágeis e rápidas a decidir; as equipas de gestão passaram a ter sangue novo. “É claro que passo muito tempo a olhar para os números, mas eu estou mais interessado nas capacidades de um gestor para liderar pessoas e liderar a mudança”, recorda.
Lidas em 2018, estas declarações parecem uma evidência, mas em 2004, eram uma excepção. Convém notar que o modelo actual de empresa é produto das mudanças que as crises de 2000 (bolha das dotcom), de 2007 (financeira e banca) e 2008 (indústria automóvel) impuseram à gestão empresarial. E que resulta também em grande medida da (re)visão das teorias de liderança após a chegada dos millenials (nascidos nos anos 80) ao mercado laboral. O mundo iria mudar e Marchionne foi capaz de se antecipar, com três apostas: procurar novos líderes (o mundo queria novas caras); fixar objectivos exigentes mas partilhando a gestão (o mundo pós-crise pedia uma nova repartição de poder); e respeitar os empregados (que eram os consumidores lixados por todas as crises).
“Vale mais o mérito do que o mero conhecimento; a capacidade de liderança do que o cargo; a busca da excelência é mais importante do que a mediocridade tal como o espírito competitivo vence o egocentrismo; é melhor trabalhar com pessoas fiáveis do que com promessas que não se cumprem”, resumiu o próprio, em 2009, que mudaria a Chrysler com o apoio dos sindicatos e despediu notáveis da indústria, como Bob Nardelli (antigo CEO da Home Depot e membro da equipa de Jack Welch, da General Electric) e Jim Press, antigo responsável operacional da Toyota para a América do Norte.
Os dois direitos de um CEO
Um dia, Bertoldi e Rob Kaplan, então um professor em Harvard (e actual presidente da Reserva Federal do Texas) sentaram-se para escreverem um caso de estudo sobre a Chrysler. “Pensávamos que iríamos escrever sobre uma reestruturação financeira, mas ao fim dos primeiros contactos percebemos que tínhamos em mãos um caso de liderança”, recorda Bertoldi. “O que víamos a acontecer era uma mudança de cultura [organizacional]”, explica, “com milhares de pessoas a aderirem gradualmente a estas ideias e a seguirem o líder”. Marchionnem no entanto, “era dos que pensavam que um bom líder cria outros líderes e não seguidores”, salienta Bertoldi. “Os únicos dois direitos que tenho como CEO são os de escolher as pessoas com quem trabalho e os valores que orientam a empresa”, escreveria Marchionne, que em tudo o resto colocava os méritos na equipa e apenas responsabilidades na liderança. “Todas as 300 mil pessoas da Fiat Chrysler olham constantemente para os líderes. O líder tem de ser honesto no trabalho que faz em prol do que é melhor para a organização. E tem de ser um exemplo. Se trair um trabalhador uma vez, está feito. Perde a confiança que deveria inspirar”, advogava Marchionne.
Foi Bertoldi quem baptizou o estilo de liderança dele como o “método da panela de pressão”. “As reuniões eram, regra geral, ao sábado e ao domingo. Eles ‘só’ tinham de escolher os ingredientes que iriam para a ‘panela’. A direcção financeira definia o tempo de cozedura e garantia a compra dos ingredientes, mais nada. E os recursos humanos geriam a pressão”. Como? “Quando era preciso trabalhar ao fim-de-semana, Sergio mandava flores para casa das pessoas com uma nota à família, que ele próprio escrevia: ‘A culpa é minha’.” Gestos assim faziam milagres.
Nem todos apreciavam o estilo. Em Itália, nos EUA, na indústria automóvel, Marchionne era visto como um desbocado, um homem tão frontal e directo que desafiava as convenções e se colocava no limite do admissível. Foi um duro? Bertoldi acha que não. “Ele teve de tomar decisões muito duras”, contrapõe este professor italiano. Era preciso agitar as águas – e ele fê-lo, com tal veemência que quase reconfiguraria uma das teorias clássicas do management. “A teoria definiu que a liderança tem a ver com a mudança: definir a direcção, alinhar as pessoas, motivá-las e inspirá-las; e que a gestão tem a ver com complexidade: planificar e orçamentar, organizar e alocar recursos, controlar e resolver problemas. Nas empresas as duas actividades são realizadas por diferentes figuras; nas universidades, as duas ciências são estudadas por diferentes escolas. Marchionne criou um novo estilo que combinou ambas, liderança e gestão”, salienta Bertoldi.
“É o mais notável caso de gestão num fabricante de carros de dimensão mundial”, sustenta por seu lado Richard Johnson, editor do Automotive News, que contrapõe ao ponto de vista de Bertoldi um outro olhar, talvez menos idílico: “Como patrão, ele subscrevia a versão monarca absolutista/escravo submisso da teoria de gestão. Podia ser irascível, era capaz de enlouquecer pessoas e tinha uma pele tão fina que às vezes fazia outros engolir em seco. Mas ele também tinha um lado útil e teatral, sabia como encher uma sala com apartes.”
Fazer perguntas estúpidas
Marchionne definia as coisas noutros termos: “O meu estilo é sobretudo informal”. A prática confirmava-o. Quando chegou ao edifício da Chrysler, em Auburn Hills (no Michigan), trocou o gabinete do CEO e a sala de reuniões que os alemães do tempo da DaimlerChrysler tinham ocupado por um gabinete no quarto andar – o mesmo do departamento de engenharia industrial. A mensagem parecia clara: “Marchionne era um CEO acessível, disponível e queria estar onde os produtos eram feitos". Além disso, “gastou milhões” a renovar cantinas, cafetarias e em obras de manutenção há muito adiadas. “Quando cheguei, via medo na cara dos trabalhadores. Eles temiam pelos postos de trabalho”, recordaria Marchionne. Só o tempo e os resultados poderiam apagar isso. Até lá, restava-lhe dar exemplos de que respeitava todos os operários, enquanto obrigava os poucos italianos da Fiat que levou para a Chrysler a falarem inglês. E proibiu-os de passarem os fins-de-semana na Europa, como era hábito entre os gestores que a Daimler pusera nos EUA.
“Ligava a horas estranhas aos membros da equipa”, recorda Bertoldi. E fazia-o em qualquer dia da semana. Ele próprio estava sempre a trabalhar – ou a viajar em trabalho. Italiano de nascimento, canadiano por aculturação (emigrou aos 13 anos para o Canadá com os pais) e suíço por residência fiscal, dizia não ter “uma casa”. “Num ano passo 43 dias completos dentro de aviões”, descreveu numa entrevista. Vestia sempre a mesma coisa: uma camisola preta. Uma camisa azul e umas calças pretas. “Compro por atacado, compro logo 50 exemplares, para não perder tempo de manhã a pensar no que vou vestir”, contaria.
Frugal na aparência, era também assim no método de liderar pessoas. “Muito do que faço é desafiar e questionar as premissas – o que acaba por dar um pouco o aspecto de que estou ali a fazer perguntas estúpidas”, descreveu Marchionne. Foi assim que encurtou o tempo de produção do Cinquecento – “o iPod da Fiat”, como ele lhe chamaria – de quatro anos para 18 meses.
A equipa encarregada deste modelo – que representou o regresso dos carros Fiat aos EUA – só tinha pessoas com menos de 40 anos, conta Bertoldi. Em Itália, era visto como um projecto impossível. Marchionne encarou o desafio assim: “A minha missão era deixá-los trabalhar e impedir duas coisas – que cometessem erros estúpidos e que fossem contaminados pela cultura de descrença.”
Este estilo, segundo Bertoldi, exige três características: ser um “sonhador pragmático”; contratar pessoas que são sempre melhores em, pelo menos, uma coisa do que ele; e ser o tipo mais esperto na sala – aquele que faz as melhores perguntas e que ajuda os outros a ir mais além”.
Sonhador pragmático? O próprio Marchionne, para quem tudo girava em torno de resultados, ajudou a definir o conceito: “Se fixas metas que as pessoas julgam irrealistas, tens de ajudá-las a atingirem os objectivos. Ajudar não significa fazer o trabalho por elas. Mergulho no negócio, nas tarefas para guiar as pessoas no terreno de modo a que elas tomem as decisões certas.” E acrescentava: “Não sei quais são as melhores decisões quando vou para uma reunião. Mas penso que o facto de me envolver aumenta a possibilidade de sairmos dessa reunião com as medidas mais acertadas.”
Uma missão inacabada
Marchionne era acima de tudo um homem que julgava ter uma missão. Terá morrido sem a cumprir, porque ao contrário do que se julgará, ele não salvou a Fiat nem a Chrysler – ele mesmo dizia que isso foi obra e missão das pessoas que lá trabalham.
A missão dele, pelo menos nos últimos anos, ainda estava por cumprir, segundo deixou subentendido. Em 2015, apresentou ao mundo um documento, Confessions of a Capital Junkie, em que expõe a tese fundamental: “os fabricantes de carros gastam mais dinheiro a desenvolver produtos e a criar menos valor para accionistas e consumidores do que qualquer outra indústria”. Sete anos antes, ainda preocupado com a Fiat, tinha escrito algo semelhante: “Costumava pensar que a indústria química era a referência da destruição de valor, mas a indústria automóvel é certamente um rival à altura. E a Fiat era um dos piores infractores. “
Segundo ele, só haveria um caminho – mais consolidação no sector. Ele próprio, depois de fazer da Fiat Chrysler o sétimo maior produtor do mundo, tentou uma aproximação à GM – uma aposta que foi liminarmente recusada. Mas todos sabiam o que ele pensava e acabaram por respeitar o estilo mais transaccional na prática mas transformacional nos resultados – e na hora de se despedirem dele, só se ouviram palavras de elogio.