Nunca leu Os Maias? Não sabe o que perde!
Não pode acontecer que professores e o Estado escolham o caminho menos trabalhoso, em detrimento do mais qualificante.
A questão na ordem do dia de o romance Os Maias deixar de ser, no 11.º ano do ensino secundário, leitura obrigatória, mas apenas oferecido em alternativa a qualquer outra obra de Eça de Queirós, segundo documento colocado em discussão pública pelo Ministério da Educação, designado “Aprendizagens Essenciais”, reduz-se em última análise a: Quem nunca leu Os Maias não sabe o que perde!
Antes de mais, não sabe que perde o privilégio de usufruir de uma das obras de arte maiores da cultura portuguesa e, em consequência, não conhece uma peça angular do património cultural português. Porque é disso que se trata: uma obra do nosso património, de importância idêntica ao Palácio da Pena em Sintra, ao Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa, à ponte D. Luís I e ao Palácio das Carrancas (sede do museu de arte oitocentista, Soares dos Reis) no Porto, aos quadros de Malhoa ou Columbano, às obras de Bordalo Pinheiro, para referir apenas alguns exemplos maiores de património do sec. XIX. Ora, não conhecer o Palácio da Pena ou a ponte D. Luís I ou as obras daqueles artistas plásticos é, convenhamos, ignorar peças que nos identificam como nação, que definem a nossa identidade no quadro da cultura romântica e do século XIX europeu e que muito ajudam a compreendermo-nos hoje.
Os Maias, publicado há 130 anos, não há que temer dizê-lo, é um dos grandes romances do património europeu do século XIX, que só não é tão lido ao nível dos grandes romances de Flaubert, Dickens ou Balzac porque foi escrito em língua portuguesa, uma língua dificilmente reconhecida ainda hoje como língua de cultura. É um romance belíssimo, a obra prima de Eça e a obra canónica por excelência do romance oitocentista português, um romance no qual ele próprio se propunha, como disse, pôr tudo o que tinha no saco...
Nele se cruza uma impiedosa pintura da sociedade portuguesa e dos seus tipos humanos e sociais com a história trágica de um amor incestuoso, símbolo do círculo fechado em que Carlos, Maria Eduarda e a família Maia estão encerrados, presos nas teias do destino. E a simbologia desse círculo fechado alarga-se ao país, encerrando as próprias elites protagonistas do romance num tempo parado, imobilista, gerador de uma experiência diletante de desencanto e desistência. Eça denuncia a impotência das elites sociais dominantes e vinga-se delas através da própria escrita irónica do romance e também da confusão auto-irónica de si mesmo com a personagem de Ega, o qual, dono da ironia, mostra o mundo na sua duplicidade trágica e cómica.
Só a arte, e dentro dela a grande literatura, capta a duplicidade complexa da realidade humana e social, permite um conhecimento alternativo do mundo, por isso não é dispensável e por isso é intensamente formativa. Há uma certa compreensão do século XIX português e dos tempos que lhe seguem, assim como das singularidades que o habitaram, que não podemos captar só através do discurso historiográfico. Eis também por que um clássico como Os Maias suscita sempre novas interpretações, nunca ficando definitivamente encerrada a sua leitura. Eis por que a educação literária é contemplada e muito bem nos programas de Português.
Mas, dir-me-ão, e não se pode ter a experiência da grande literatura queirosiana com um outro romance, um conto, uma crónica ou até uma carta? Pode, porque Eça tem em todos estes géneros verdadeiras obras-primas. A questão não é essa; a questão nem sequer é saber se não seria mais fácil para os estudantes penetrar na leitura queirosiana a partir de outras obras. Talvez até fosse. A questão, do meu ponto de vista, é saber se é admissível que num programa que não oferece nenhuma outra leitura integral de um romance do século XIX (de Garrett, Herculano e Camilo serão lidos apenas excertos de um romance de um deles), a não ser um romance de Eça, é aceitável que não se leia a obra magna do autor e o romance canónico do século XIX português, Os Maias –? Episódios da Vida Romântica.
E não se leia em nome de quê? Em nome de uma sistemática menorização dos estudantes e dos próprios professores e do sistemático acomodamento a uma prática de ensino-aprendizagem que não insista no esforço, na dedicação, no trabalho necessários ao desenvolvimento do conhecimento, porque é disso que se trata, desenvolvimento do conhecimento, com educação literária e consequentemente estética dos estudantes, através do contacto com uma preciosa obra de arte. E em nenhuma época, convenhamos, estudantes e professores tiveram ao seu alcance tantos meios para amenizar e potenciar o seu trabalho, independentemente das múltiplas circunstâncias que afastam os estudantes da leitura. O que não pode acontecer é que professores e o Estado escolham o caminho menos trabalhoso, em detrimento do mais qualificante.
Não será ainda despiciendo pensar que é bem possível que para muitos estudantes, se não para a maioria que não provém de sectores sociais privilegiados, essa seja a única oportunidade que terão na vida para usufruírem dessa obra magna da literatura em língua portuguesa (como também terá acontecido com as obras canónicas de autores como Gil Vicente, Camões, Pessoa...), que a escola democrática tem obrigação de lhes facultar se de facto quer democratizar o conhecimento e arte.
P.S.: Duas breves observações ainda a respeito destas “Aprendizagens Essenciais”:
1. O desaparecimento do conto como género nos programas de Português do 12.º ano, no qual estava prevista a leitura de um de três contos (de Manuel da Fonseca ou Maria Judite de Carvalho ou Mário de Carvalho), não me parece ser uma opção desejável, até por se tratar de um género breve, que os jovens nas sociedades de hoje, sociedades do fragmentário e da aceleração, nitidamente privilegiam, como é possível constatar na blogosfera onde narrativas breves e micronarrativas ocupam lugar de relevo. Valeria então a pena cavalgar nesta preferência, que de resto ajudaria a colocar o conto, junto dos leitores portugueses, num patamar de género nobre que lamentavelmente, e ao contrário do que acontece na cultura anglo-saxónica, não tem, dando a ler aos estudantes uma obra integral de outro(s) ficcionista(s) do século XX para além de Saramago. E neste caso poderia ser bastante indutor de leitura e bastante exequível pôr três grupos de estudantes dentro da sala de aula a ler cada um dos três contos.
2. A manutenção no programa de 12.º ano de Português da obrigatoriedade da leitura integral de um de dois romances de José Saramago, Memorial do Convento ou O Ano da Morte de Ricardo Reis, parece-me, essa sim, discutível. Aqui, na narrativa contemporânea (do século XX), não seria de considerar a possibilidade de estudar em alternativa autores romanescos igualmente marcantes, pese embora nenhum deles, a não ser Saramago, ter arrecadado um Prémio Nobel, bem sei? Romances de Agustina Bessa-Luís ou Aquilino Ribeiro ou Carlos de Oliveira ou Jorge de Sena ou José Cardoso Pires ou Vergílio Ferreira ou Vitorino Nemésio... não poderiam ser ponderados? E também aqui não seria interessante e produtivo criar três ou quatro grupos de estudantes que, dentro da mesma sala de aula, se ocupassem de três ou quatro leituras distintas? Não poderia também daqui resultar indução de leitura?