Brincando aos Panteões
O respeito pelo sentido profundo da memória colectiva que encerra um Panteão Nacional não se compadece com alterações que são verdadeiros “fatos à medida”.
Criado pelo Decreto de 26 de Setembro de 1836, o Panteão Nacional, como tal de início apenas considerado a Igreja de Sta. Engrácia, em Lisboa, foi alargado ao Mosteiro dos Jerónimos, na mesma cidade, ao Mosteiro de Sta. Maria da Vitória, na Batalha e à Igreja de Santa Cruz, em Coimbra. A sua actual regulamentação resulta da Lei n.º 28/2000, de 29 de Novembro, que define e regula as honras do Panteão Nacional, entretanto alterada pela Lei n.º 14/2016, de 9 de Junho. Na sequência da polémica em torno da trasladação dos restos mortais de Eusébio, a Assembleia da República (AR), órgão de soberania com competência exclusiva na matéria, entendeu fixar o prazo de vinte anos desde a morte da pessoa distinguida para a deposição dos seus restos mortais e de cinco anos para a afixação de lápide alusiva à sua vida e obra.
Após cerca de dois anos, em virtude do falecimento de Mário Soares, está em curso o processo legislativo iniciado pelo projecto de Resolução da AR n.º 1758/XIII/3.ª, datado de 26 de Janeiro deste ano, mas que só deu entrada no passado dia 6 de Julho. A iniciativa foi subscrita por deputados do PS e do PSD, mais concretamente, Miranda Calha, Bacelar de Vasconcelos, Sérgio Sousa Pinto, Hortense Martins, Carlos César, Fernando Negrão e Duarte Pacheco. O “bloco central” garante, à partida, a sua aprovação.
O projecto em causa, reconhecendo os altos valores ao país prestados por Mário Soares, decide “promover a concessão de honras do Panteão Nacional ao Presidente Mário Soares”. Abre – de modo não inocente – com uma declaração de Marcelo Rebelo de Sousa, proferida aquando da morte de Soares. Determina o art. 2.º, n.º 1 da já citada Lei n.º 28/2000, que “as honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”. Não se me oferecem dúvidas que Mário Soares cabe dentro deste leque necessariamente reduzido de personalidades. Goste-se mais ou menos de concretas medidas políticas – sempre criticáveis –, julgo ser indiscutível que o ex-Presidente foi um dos fautores de um regime democrático pluralista, evitando uma deriva comunista no tempo do PREC.
Para tal desiderato, mister se torna alterar a Lei n.º 28/2000, o que já foi objecto do projecto de lei n.º 939/XIII/3.ª, com a mesma data de entrada na AR que o projecto de resolução quanto à concessão de honras a Mário Soares e subscrito pelos mesmos deputados. Nada mais simples, portanto: cria-se uma nova alínea no art. 4.º, onde se passa a prever que o prazo para a trasladação dos restos mortais é de “dois anos [contados] sobre a morte de chefes de Estado e antigos Chefes de Estado”. Soares faleceu a 7 de Janeiro de 2017. Em Janeiro de 2019 tudo deve estar resolvido, em termos do processo legislativo parlamentar.
Isto dito, o que impressiona é a facilidade com que a AR viola um dos princípios fundamentais da lei, a qual é a única fonte imediata do nosso ordenamento jurídico. Ensinamos e aprendemos que a lei deve ser geral e abstracta e que só assim se garantem princípios basilares como o do Estado de Direito e da igualdade, de entre outros. Pretende-se agora que, para os ex-Presidentes da República, se altere de novo a Lei (a última mudança tem dois anos), excepcionando estas figuras. Já sabemos que, em Portugal, ao contrário do que a generalidade das pessoas pensa, o desporto mais praticado não é o futebol, mas a alteração legislativa, com as terríveis consequências do prisma da sua aplicação. Quando se forma um corpo de estudo e correntes jurisprudenciais num dado sentido, só possível com tempo para análise, alguém quer deixar a sua marca – vá-se lá saber o que isso significa – e inscreve o seu nome nos anais do processo legislativo. O que agora a AR se prepara para fazer é o que chamamos uma “lei-medida”, ou seja, aquela que só na aparência é geral e abstracta, porquanto todas as circunstâncias que conduziram à sua aprovação se dirigem a um caso concreto e individual. Não é preciso ser jurista para compreender que este é um mau serviço à democracia, mesmo que sob a veste respeitável de um percurso notável de Mário Soares e que, por isso, dizem reclamar um regime excepcional.
Outro problema destas leis-medida é o de, a seu reboque, aparecerem outros nomes, neste caso: Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e Álvaro Cunhal já foram aventados. Todos construtores do regime político actual, por certo uns mais criticáveis que outros. E a questão reside exactamente aqui: a teleologia do lapso temporal para a deposição dos restos mortais ou mesmo de uma lápide serve para que a História se consolide, não se cometendo injustiças que sempre ocorrem quando se não concede a esta ciência o suficiente afastamento temporal. Os factos e feitos históricos vivem do e para o tempo. Ele é o seu húmus constitutivo, pois só ele permite a saudável discussão em torno de factos e personalidades, de modo a cumprirmos a nobre missão de um Panteão Nacional. Não tenho memória de, nos Estados que decidiram conceder este tipo de honra, se legislar “à flor da pele”, na magnífica expressão usada em outro contexto pelo actual Presidente do Tribunal Constitucional (na época deputado), Manuel da Costa Andrade.
E, convenhamos, com todo o respeito pela memória de Mário Soares e de outros “panteonáveis”, este tipo de procedimento é provinciano. Diria mesmo que o respeito por estes vultos exigiria mais decoro e que se respeitasse a regra alterada em 2016. Se assim não for, consolida-se cada vez mais a ideia de que a legislação portuguesa é uma espécie de “albergue espanhol”, em que conveniências, amizades e quem berra mais alto consegue uma magnífica publicação no Diário da República. Tenho dúvidas que Mário Soares desejasse o que está a acontecer. O respeito pelo sentido profundo da memória colectiva que encerra um Panteão Nacional não se compadece com alterações que são verdadeiros “fatos à medida”. Decoro e respeito talvez sejam as palavras que me ocorrem. Pelos mortos e pelos vivos que desejam um país menos prisioneiro de núcleos de interesses, normais em democracia, mas que aqui assomem de modo despudorado.