Juventus, a acelerar para os picos da Europa

Uma história centenária, feita de mais altos que baixos, parece ter encontrado um ponto de equilíbrio na última década. Os “bianconeri”, que valorizam tanto a tradição como os génios do futebol, ganharam o direito à hegemonia em Itália, mas não vêem a hora de dominar o continente

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A Juventus tem dominado em Itália e agora quer dominar na Europa Reuters/ALESSANDRO BIANCHI

Mais do que o desabafo de um milionário, foi o desabafo de um apaixonado por futebol: “Fico triste por não ter visto Di Stéfano com a camisola da Juventus, não ter vista Kubala, não ter visto Puskás, não ter visto Van Basten, a lista é infinita...” Infinita era também a admiração de Gianni Agnelli pelos verdadeiros génios da bola, aqueles que arrastavam multidões em direcção ao Estádio Delle Alpi, em Turim. Um dos herdeiros do império Fiat, o “Advogado” foi não só um membro distinto da mais poderosa família de Itália, mas também o mais carismático presidente da “Juve”. Se hoje pudesse assistir aos primeiros remates de Cristiano Ronaldo no centro de treinos de Vinovo, provavelmente esboçaria um sorriso.

A Juventus versão Agnelli (o que equivale a dizer a Juventus desde 1923) foi sedimentando, ao longo dos anos, uma reputação de uma certa aristocracia. O caminho começou por ser desbravado por um grupo de alunos do Liceu Massimo D’Azeglio, que em 1897 decidiram criar o Sport-Club Juventus, mas rapidamente foi pavimentado com a matéria de que são feitos os campeões. Quando Edoardo Agnelli assumiu as rédeas do clube, havia um campeonato no currículo, mas o palmarés começou quase de imediato a alastrar-se, muito por força da visão estratégica de um líder com meios para financiar uma ideia.

Com a nova direcção nasceu um novo estádio e nesse recinto evoluiria, a partir do início dos anos 1930, a primeira equipa 100% profissional de Itália, que rapidamente se tornaria na principal fornecedora de mão-de-obra para a selecção. Era a aceleração autoritária de um clube que começava a tornar-se muito grande para as fronteiras da região de Piemonte e já cativava simpatias e grupos de adeptos um pouco por todo o país.

“O facto de não carregarmos o nome de uma cidade trouxe-nos grande popularidade. Tornou-nos nacionais”, comentou, a propósito, Gianni Agnelli, que liderou os destinos dos “bianconeri” de 1947 a 1954. Enquanto a esmagadora maioria dos emblemas italianos assentava parte da sua afirmação no sentimento de pertença local, a Juventus alargava os tentáculos, incluindo aos territórios mais desfavorecidos do sul, que alimentavam com gerações de trabalhadores as fábricas do sector automóvel implantadas a norte.

As estimativas são, obviamente, falíveis, mas o simples facto de se apontarem à “Juve” cerca de 11 milhões de adeptos atesta a dimensão de um clube que foi aperfeiçoando a arte de fundir tradição e inovação. Sim, é verdade que souberam investir em activos estratégicos nos momentos certos (basta pensarmos em lendas como Dino Zoff, Claudio Gentile, Omar Sivori, ou, mais recentemente, em Michel Platini, Gianluigi Buffon ou Zinedine Zidane), mas souberam também modernizar-se sem perder a identidade. 

É nos detalhes que esse equilíbrio exigente se detecta. Exemplo 1: a festa de Natal, enquanto momento de convívio colectivo, é tão valorizada pelos donos do clube que existe uma cláusula no contrato dos jogadores a prever a sua participação num vídeo festivo que é filmado todos os anos. Exemplo 2: a época desportiva começa sempre com um jogo de preparação, entre a equipa principal e um adversário composto de jovens da academia, na cidade vizinha de Villar Perosa, de onde é originária a família Agnelli.

“É um momento de união para todos os envolvidos no clube, com a equipa e os adeptos a serem uma família”, contextualiza Giorgio Chiellini, desde 2005 em Turim a consolidar a fama de um dos mais competentes centrais italianos. Gianluigi Buffon, uma referência para a eternidade na baliza juventina, segue a mesma linha de raciocínio, desfiada num documentário intitulado Juventus: Equipa Número 1. “No futebol moderno, manter algumas tradições é um pequeno lado romântico que sobrevive e que não podemos perder”.

Buffon partiu neste Verão, de Turim rumo a Paris, encerrando uma longa relação de 17 anos de amor correspondido com os adeptos, os do clube e os do futebol italiano em geral. Uma relação construída à base de defesas impossíveis, de reflexos felinos e de uma liderança natural. Uma relação construída também sobre os alicerces da fidelidade e do compromisso inabalável, que ficou à vista desarmada quando o escândalo Calciopoli varreu a Série A.

Foi o momento mais negro da vida dos “bianconeri” – uma designação que decorre do equipamento branco e preto inspirado nos ingleses do Notts County e adoptado no arranque do século XX, depois de o rosa ter dominado os primeiros anos. A Juventus, acusada de tentar corromper equipas de arbitragem, foi desapossada do título de 2004-05 e despromovida ao segundo escalão em 2006-07, cenário que precipitou a saída de estrelas como Fabio Cannavaro, Lilian Thuram ou Zlatan Ibrahimovic. Não foi o caso, porém, de Alessandro Del Piero ou de “Gigi” Buffon, que quiseram participar da reconstrução da equipa e, com ela, ganharam estatuto de lenda no Dele Alpi.

O regresso à elite foi meteórico, com o triunfo na Série B logo à primeira tentativa, mas as sequelas do terramoto denunciaram divisões. Se, para o actual presidente, Andrea Agnelli, a “marca” saiu reforçada por uma história tremenda de superação, para os críticos, e em especial para os clubes rivais, a palavra corrupção passou a andar de mãos dadas com a Juventus. Um rótulo que ainda resiste, por muito que os responsáveis juventinos enquadrem o castigo argumentando que o clube acabou por ser o bode expiatório de um problema sistémico no calcio

Certo é que a família Agnelli foi forçada a abrir um novo capítulo, rompendo com os dirigentes envolvidos no processo e lançando as bases da hegemonia que hoje se conhece. Foram quatro temporadas na rampa de lançamento para uma afirmação que arrasou a concorrência e que se tornou imparável com a chegada de Andrea à presidência e com o contributo inicial de Antonio Conte como treinador. Os números são admiráveis: sete campeonatos conquistados em série, quatro Taças de Itália, três Supertaças e duas presenças na final da Liga dos Campeões.

“A filosofia desta equipa é tentar sempre ganhar. Fomos peças, momentos desta vida, mas o segredo da Juventus não somos nós, é a continuidade do seu património”, avalia Roberto Bettega, goleador da “Juve” entre 1970 e 1983. Bettega já tinha terminado a carreira quando a “Vecchia Signora” (e já lá vamos à origem da alcunha) conquistou a Europa, em todo o seu esplendor, pela primeira vez. Em 1984-85 bateu o Liverpool, na final de Bruxelas; onze anos mais tarde repetiu a proeza, derrubando o Ajax, nas grandes penalidades, em Roma.

É a esse patamar, o dos picos da Europa do futebol, que o clube pretende voltar o mais depressa possível. E uma das “ferramentas” para o atingir chama-se Cristiano Ronaldo, um habitué na arte de levantar o troféu e um pulverizador de recordes por onde quer que passe. Foi, de resto, o avançado português o principal responsável pela ruína do objectivo europeu dos turineses na edição 2017-18 da Champions, ao fazer três golos no conjunto das duas mãos dos quartos-de-final. Um deles mereceu mesmo a ovação dos adeptos rivais e um lugar na galeria dos melhores momentos da história do torneio.

“Naquele lance, não havia nada que pudesse ser feito. Há que admirá-lo. Acho que todos nós, que vemos futebol, apreciamos este tipo de momentos. Eu estava a ver do banco, vê-se a bola vir por trás do avançado e vem demasiado alta para ser cabeceada, por isso não se espera que consiga uma boa trajectória no remate. Por vezes, é a qualidade do adversário que o faz ganhar o jogo”, descreveu o guarda-redes suplente Wojciech Szczesny, que assistiu ao pontapé de bicicleta desde a linha lateral.

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ANDREA DI MARCO/LUSA

Ronaldo haveria de confessar, mais tarde, que os aplausos dos tiffosi o ajudaram a tomar a decisão de trocar Espanha por Itália. A partir desta temporada, os adeptos transalpinos vão poder acompanhar o português de perto e regularmente no Allianz Stadium, um recinto inaugurado em 2011, nove anos depois de a Juventus ter chegado a acordo com a Câmara de Turim para a compra dos terrenos do emblemático Dele Alpi. Num contexto de dependência das autarquias e de utilização de estruturas municipais, os "bianconeri" configuram a ruptura: são o único emblema da Série A que é proprietário do seu estádio.

Para um clube que tem como máxima “Ganhar não é apenas importante, é a única coisa que conta”, o território doméstico há muito que se esgotou. É certo que o Nápoles deu luta na época passada e que a perspectiva de um oitavo Scudetto consecutivo também seduz, mas há muito que os olhos dos adeptos estão postos na Liga dos Campeões. “Queremos ganhar na Europa, tem de ser esse o nosso objectivo. Vencer em Itália e vencer na Europa”, determinou recentemente o actual presidente da “Vecchia Signora”.

Agora sim, avancemos para a explicação. A expressão remonta aos primórdios do clube, inicialmente impulsionado pela aristocracia britânica e mais tarde “adoptado” pela poderosa família Agnelli. Naqueles tempos, a classe operária referia-se à elite dominante e aos empresários mais influentes como “velhos senhores”, uma alcunha que fazia justiça ao perfil da Juventus (ainda que a raiz do nome remeta justamente para o oposto, uma ideia de juventude) e que perdura até hoje.

Nada que incomode Andrea Agnelli, ainda que o dirigente de 42 anos, que aprofundou a ligação da família ao futebol ao assumir funções na Associação Europeia de Clubes e no Comité Executivo da UEFA, avance com uma interpretação ligeiramente diferente. “A Juventus é conhecida como a namorada de Itália. É provavelmente a mulher com quem todos querem estar”.

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