A corrosão do tempo
Uma alegoria moral que explora o conflito de angústia entre aquilo que sabemos dever fazer e aquilo que na realidade fazemos.
O que faríamos se presenciássemos um crime de morte a alguma distância? Iríamos de imediato avisar a Polícia ou, antes pelo contrário, ficaríamos paralisados e pensaríamos no assunto? Diz-nos a moral e a ética social que deveríamos informar logo a Polícia. Mas não é isso que faz a personagem de A Noite do Professor Andersen, do escritor norueguês Dag Solstad (n.1941), antes se entrega a profundos pensamentos sobre moralidade, justiça e compromisso social — e pelo meio vai fazendo uma espécie de balanço da sua vida.
As personagens habituais dos livros de Dag Solstad — um dos grandes escritores escandinavos vivos — são quase sempre professores, filósofos, escritores: homens solitários à procura de um sentido para a vida, vidas a que, na bem organizada sociedade norueguesa, aparentemente nada falta; mas são homens que, por outro lado, parecem viver numa ilusão controlada, numa espécie de hipocrisia piedosa em que a célebre frase do dramaturgo Henrik Ibsen — a personagem deste livro, curiosamente, ensina Ibsen — continua a fazer sentido mais de século e meio depois de ter sido escrita: “Prive o homem comum da sua mentira vital e ter-lhe-á roubado a felicidade.”
No outro livro do autor por cá traduzido, Pudor e Dignidade (Ahab, 2009), Solstad conta-nos a história de um dia (o decisivo) da vida de Elias Rukla, um professor de norueguês no ensino secundário, com pouco mais de cinquenta anos de idade, ancorado na rotina diária, ligeiramente alcoólico e amargurado, obediente à engrenagem social, casado com uma mulher que foi “indescritivelmente bela” e a quem já pouco mais diz do que “tem um bom dia”. Em A Noite do Professor Andersen, Dag Solstad torna a ter um professor como personagem central, mas desta vez universitário e especializado no ensino das obras dramatúrgicas de Ibsen, divorciado, 55 anos de idade, a viver sozinho há dez. Pål Andersen não é crente mas celebra o Natal por razões culturais e porque essa celebração lhe traz paz interior, sentindo-se nessa noite “reconciliado com a sua maneira de ser, algo que raras vezes acontecia”. Ora, é precisamente na noite da consoada que o professor Andersen, observando da sua janela os vizinhos dos apartamentos do prédio diante do seu, testemunha um crime: um homem estrangula uma mulher. Mas em vez de informar a Polícia, não o faz. Espantado com a sua reacção, entrega-se a algumas divagações de maneira a tentar entender a sua ausência de acção. Estes exercícios de consciência autocrítica levam-no no dia seguinte a pensar que conseguiria contar o sucedido, e pedir conselhos, a um amigo antes de um jantar de Natal. Lá chegado, não o conseguiu fazer.
Dag Solstad recorre neste romance à estratégia do jantar, em que junta sete pessoas (todos amigos ou conhecidos desde os anos 1970, unidos pelo passado), para assumir o papel de uma espécie de cronista que vai anotando os sinais da “corrosão do tempo”, que mais não são do que o da morte das ideologias, das utopias, a notícia de que o Homem ficou privado de esperança, mas não sem exercitar o seu lado de crítico social e político. Assim fala do radicalismo político (ele próprio, foi, à época, um activo e controverso intelectual maoísta), das acções contra a NATO e contra o Mercado Comum, e como com o tempo essas pessoas se foram transformando noutras com estilos de vida enfeitados com tiques de snobismo, apesar de continuarem a não se sentirem “conformados com o poder” nem com o estatuto social. É a corrosão do tempo que faz com que o entusiasmo por algo não consiga ultrapassar a “capacidade poderosíssima do marketing”, o que leva a personagem do professor Andersen a afirmar: “somos intelectuais numa época comercial e profundamente influenciada pelo que agita os corações das massas. O que agita os corações das massas são as consequências da nossa própria inadaptabilidade. É pura e simplesmente isso. Quando é que te comoveste pela última vez ao ver ou ler uma tragédia grega? Refiro-me a comoção genuína, a algo que te abalou profundamente.”
À semelhança do que já acontecia no seu romance anterior (Pudor e Dignidade), a estrutura narrativa acompanha o pensamento em movimento, em “danças de roda” em que as frases (ou apenas segmentos destas) se repetem como se fossem parte do ritmo de uma estrutura musical, obsessiva e circular, muito à maneira do escritor austríaco Thomas Bernhard, levando a que, por vezes, narrador e personagem se confundam num processo muito próximo do “fluxo de consciência”. Mas também o norueguês Knut Hamsun — um dos pilares da moderna literatura europeia, e da nórdica em particular — está presente, não em referências explícitas no texto mas nas privações (modernas) vividas pela personagem central nas suas deambulações quase ao acaso quando atormentado pela sua condição de ser social que já nada tem para dizer. Não deixa de ser curiosa a maneira como Dag Solstad, em algumas passagens, quase parece querer transpôr a personagem do romance Fome (publicado originalmente em 1890) para um século depois: a mesma agitação emocional momentânea e exagerada, a alteração constante do ritmo do seu caminhar pelas ruas de Oslo, as reacções inesperadas e inexplicadas.
Nesta quase alegoria moral, Solstad, retratando minuciosamente alguns processos mentais, desenha uma personagem angustiada que parece incapaz de empatia e de reconhecer a sua solidão, que se protege com a rotina, que intelectualiza em vez de agir, deixando-se assim levar em prolongados exercícios de balanço de vida. A Noite do Professor Andersen é um “estudo” quase metafísico da solidão, ao mesmo tempo que explora o conflito moral entre aquilo que pensamos que devemos fazer e aquilo que na realidade fazemos.