Sutari, uma folk polaca para sair da cozinha
Baseando-se em antigas canções populares da Polónia, o trio Sutari, que actua terça no FMM, juntou instrumentos de cordas a utensílios de cozinha para trazer nova vida para a tradição. E para se libertar das obrigações domésticas.
Não é novidade nenhuma que a música popular acompanhou e acompanha, com frequência, a realização de práticas laborais. Os cantos de trabalho sempre ajudaram a iludir a violência física do trabalho braçal e da repetição incessante dos mesmos gestos, ao mesmo tempo que construíam um sentido colectivo através de uma partilha desse mesmo destino. É-se menos sozinho e menos maquinal a cantar, juntando as vozes contra a dureza do dia-a-dia. Mas as canções populares acompanham também as coreografias domésticas – ao som de uma melodia lava-se a loiça, descasca-se batatas, varre-se o chão.
E foi com esse imaginário doméstico em mente que as três cantoras do grupo Sutari se muniram de utensílios de cozinha para acompanhar as suas vozes. Primeiro, por acidente. “Estávamos sentadas, a beber café na cozinha, enquanto tentávamos perceber o que fazer com uma canção”, contam as três polacas – que tocam terça-feira no Centro de Artes de Sines, integradas no Festival Músicas do Mundo – ao Ípsilon. “Trabalhámos sobre a letra e quando finalmente definimos a melodia, sentimos que continuávamos a precisar de um ritmo e experimentámos tocá-lo com aquilo que tínhamos à mão.” Depois, porque a imagem era perfeita: o interesse de Zofia (Zosia) Baranska, Katarzyna (Kasia) Kapela e Barbara (Basia) Songin pelo reportório tradicional do país lembrava-as do papel da música na vida das suas avós.
O poder simbólico não se esgotava nesse quadro, no entanto. Para as Sutari servia também de afirmação de que se pode “encontrar música em todo o lado”, de reclamação da cozinha como lugar criativo e de luta contra o estereótipo de que o lugar da mulher é naquela divisão, a preparar refeições para a família. De talheres e raladores a copos, garrafas e tigelas com água, as três reimaginam este universo como se o libertassem das obrigações da vida doméstica, e frisassem que quanto mais queiram enfiá-las numa cozinha mais elas encontrarão formas de lhe escapar. Ao juntar estes “instrumentos” a violinos e violoncelos, dá-se todo um momento instantâneo de dignificação das rotinas quotidianas.
Algumas das letras que trouxeram de um passado distante falam de um tempo em que as mulheres tinham maridos escolhidos por catálogo de conveniências, viviam à espera que os homens voltassem da jornada de trabalho ou das escapadas à taberna da terra, e eram obrigadas a pagar em silêncio as várias formas de traição conjugal a que eram sujeitas. “Mas se pegarmos nas histórias dessas mulheres”, dizem, “podemos refazer as letras para contarmos histórias diferentes sem nos desviarmos do tema – falando de como pode ser difícil encontrar ou perder o amor.” E reforçam a importância de que a ligação aos dias de hoje se faça também por olhar para lá da literalidade e não esbarrar numa primeira camada de regozijo por, em determinadas sociedades, as lutas das mulheres já não serem estas – haverá outras, às quais estas batalhas passadas também aludem.
Não é por acaso que a criação de tais imagens é tão crucial no desenho da sonoridade e dos espectáculos das Sutari. Com um background em teatro e dança – Basia é coreógrafa e trabalha com teatro físico, Kasia está mais próxima do teatro circense e colabora com o Wroclaw Song of the Goat Theatre, Zosia é mais entendida na música tradicional polaca e e está presente em vários projectos que partem deste legado –, as três conheceram-se no Centro Gardzienice para Práticas Teatrais, “um teatro muito musical, com inspiração de diferentes culturas”. Desde o primeiro momento, ainda assim, perceberam que queriam encontrar-se em redor de canções (e além das Sutari apresentam ainda performances mais teatralizadas).
Uma floresta negra
Sutartinés vem de um lugar mais remoto do que a cozinha. A palavra que inspirou o trio polaco vem da Lituânia e designa canções polifónicas tradicionais, partilhadas por mulheres. A designação agradou-lhes pela evocação da sobreposição de vozes que também serve de base à musicalidade que exploram atendendo a outro conceito presente na palavra – “perfeita harmonia”. Essa harmonia ficou bem à mostra logo desde a primeira actuação, há seis anos, momento em que o trio colheu um imediato entusiasmo por parte de público e do júri do festival em que se apresentou. A proposta que levavam para palco era tão pessoal que não alimentavam nenhumas expectativas de que o rastilho para a adopção popular das suas canções fosse tão curto.
“Entrámos nessa floresta negra simplesmente porque queríamos fazer algo novo”, dizem. E se falam de uma floresta negra é porque o segundo álbum, Osty – polaco para “cardos”, planta “muito bonita que, no entanto, pode causar dor” –, se inspira num conceito de agregar melodias e canções imensamente belas, mas cuja relação com as letras implica uma travessia por palavras e lugares “selvagens e sombrios”. Um caminho de autodescoberta, de contacto íntimo com os sentimentos enterrados mais fundo e uma forma de purga emocional para sair do outro lado num qualquer estado de renovação, pacificação ou redenção. “Nos contos de fadas”, argumentam, “tem de se entrar numa floresta sombria para se crescer. Por isso é que no segundo álbum escolhemos histórias que lidam com a morte, mas pelas quais é preciso passar para alcançar um final mais feliz.”
A partir de harmonias vocais que não surpreenderão quem tenha contactado com a Warsaw Village Band ou mesmo com a música das Värttinä ou dos Hedningarna, há muito da música das Sutari que passa pela teatralização. E isso manifestou-se, por exemplo, na decisão de pensar a gravação do disco de estreia Wiano (traduzido para inglês como Bride Price) em cenários como casas-de-banho, cozinhas ou espaços exteriores junto a lagos. “Uma ideia louca”, riem-se agora. Mas sintomática da diferença e da singularidade que buscavam para a sua música. Osty acaba por revelar a certeza de que essa singularidade está já presente nas suas próprias canções e não tanto naquilo de que se possam rodear.
Até porque os sons de água, de animais e gargalhadas fazem já parte da própria música, não são adereços excêntricos nem papel de parede. São o mundo de um trio que cresceu a ouvir punk, klezmer, música cigana e clássica, e percebeu que o encontro de tudo isto se fazia num ponto que não deixa a vida de fora. Estas canções estão dentro da cozinha e dentro das suas existências – aquilo que sempre quiseram reivindicar, desde a primeira garfada nesta música.