De fato-macaco e unhas pintadas a escavar a terra
Até há dois meses, e por causa de um decreto assinado por Salazar, era proibido às mulheres executar trabalhos subterrâneos em explorações mineiras. Uma lei que poucos conheciam e que, na Somincor, nunca foi acatada. Porque não é preciso ser homem para conduzir um camião de 60 toneladas, e porque o trabalho mineiro que já não se faz de picareta na mão, nem a rastejar por galerias.
São quase duas da tarde, e há dezenas de homens todos vestidos de igual a encher uma sala ampla que tem como epicentro uma máquina de café. Poder-se-ia dizer que o epicentro é o chaveiro que preenche os quase quatro metros de parede, de cima a baixo, e onde cada um dos trabalhadores deixa uma placa de identidade. É um procedimento obrigatório: para levantar a lanterna e a máscara de salvamento que vão levar para o fundo da mina deixam uma placa com um número para que, em caso de acidente, todos à superfície, saibam quem é que está lá em baixo, nas profundezas da mina. Mas não. O epicentro naquela sala é a máquina do café, e é à volta dela que todos se organizam na chegada àquela sala que antecede a saída para a boca da Mina da Somincor — Sociedade Mineira de Neves Corvo.
Ana Palminha, 27 anos, não tem nenhum comportamento diferente dos seus colegas. Porém, destaca-se de todos eles. É bem mais baixa, tem corpo franzino mas musculado, uma farta cabeleira loira (que ainda não amarrou) e uns bonitos olhos amendoados e expressivos. E, ao contrário dos colegas homens, que não usam nada por baixo do macacão cor de laranja por causa do calor, Palminha usa uma t-shirt branca e, avisa, tem também umas leggings por baixo das calças. “A gente habitua-se a tudo, e ao calor também. Mas prefiro usar as leggings do que não ter nada. Porque se, por alguma razão, rasgar o macacão num dumper (camião mineiro de grande porte) já não fico desconfortável por andar com tudo à mostra”, exemplifica. E sublinha que sabe do que fala, porque já lhe aconteceu.
Palminha trabalha há sete anos no fundo da Mina de Neves Corvo. Dali a poucos minutos saberá em que pick up vai descer até aos 500 metros (a mina já tem quase um quilómetro de profundidade) com destino à sala da britagem, para cumprir mais um turno. A partir do momento que desce até à mina (e demora mais de 20 minutos a chegar ao posto de trabalho) sabe que só volta a subir depois 21h30, e que só estará pronta para ir para casa muito depois das 22h30 — ninguém se mete num carro ou num autocarro antes de tomar banho. As semanas passam, o horário muda, e os turnos também. Tem um filho de quase três anos, o ex-marido também é mineiro, e “às vezes conciliar os horários é um grande enleio”, admite. Mas logo põe um grande sorriso e remata que “tudo se resolve”.
“É do trabalho no fundo da mina que eu gosto. Não me imagino a fazer mais nada. Não queria por nada deste mundo estar a fazer outra coisa nesta empresa”, afirma, apressada. Já são quase 14h30, ela vai descer para a mina, e combinamos que será lá em baixo que a iremos reencontrar, para que nos descreva melhor o que é, afinal, ser mulher e ser mineira, hoje. Já não é ter uma picareta na mão, nem andar de gatas em galerias empoeiradas e húmidas. Há pó, há água, há escuridão. E há apetrechos técnicos e rígidas normas de segurança.
Até Maio deste ano, a vigência de um decreto proibia que qualquer “indivíduo do sexo feminino, seja qual for a sua idade, [possa] ser empregado em trabalhos subterrâneos nas minas”. Era o resultado da transposição para a lei nacional de uma convenção da Organização Mundial do Trabalho que foi assinada em Genebra em 1935. O decreto de lei, assinado por António Oliveira Salazar e promulgado por António Carmona, teve a data de 26 de Julho de 1937. Só a 17 de Maio deste ano é que o Governo português renunciou a essa convenção, pelo que até aqui o trabalho das mineiras deveria ser considerado ilegal — mas não havia propriamente consciência disso. O que havia, e sempre houve (e, em alguns quadrantes, ainda há) era a superstição de que as mulheres davam azar quando entravam em túneis e subterrâneos. Em túneis, quaisquer que sejam, para minas, ou para a construção de estradas, barragens ou pontes, imagens femininas só a de Santa Bárbara. E até essa fica à porta.
Ana Palminha não sabia da existência dessa convenção, e limita-se a comentar que ela “não faz sentido nenhum”. Não usa as mesmas palavras que aparecem no texto da resolução, em que se lê que a convenção “não está de acordo com o princípio da igualdade no acesso ao emprego entre mulheres e homens” e que “a protecção da segurança e saúde dos trabalhadores que efectuam trabalhos subterrâneos é regulada e assegurada por instrumentos normativos internacionais posteriores”. Palminha vai directa ao assunto e diz que, quando veio trabalhar para a mina, já andavam cinco mulheres a trabalhar lá no fundo. Ela foi a sexta, e depois dela entrou a sétima. Todas dirão o mesmo, como diz Ana: “Faço tudo, mas exactamente tudo, o que consegue fazer um homem.”
O “tudo” a que se refere é estar na frente de mina, num dos túneis que estão continuamente a ser escavados (já há uma rede de 180 quilómetros de túneis na mina de Neves Corvo), ora a preparar a frente para a dinamite, ora a conduzir uma das 147 máquinas pesadas que tem a empresa, entre pás carregadoras e os dumpers, que permitem transportar o minério até umas das quatro centrais de britagem que existem no subsolo para fazer a primeira “moagem” do minério antes de o enviar à superfície. “E quando é preciso também vou lá em baixo, desencravar alguma pedra que esteja a impedir a britadora de trabalhar”, assegura.
Do restaurante para a mina
O descritivo de funções que lhe é pedido não difere, em nada, do que é pedido a um mineiro do sexo masculino. Os salários também não são diferentes. E aqui uma mulher pode ter tantas pretensões e possibilidades de chegar a chefe como qualquer um outro. Andreia Rebolo, 29 anos, está praticamente a consegui-lo. Nessa terça-feira à tarde é ela quem está aos comandos na sala de britagem em que trabalha Ana Palminha e a comunicar via rádio com os restantes 18 membros da equipa, a dizer quando é que cada um se deve abeirar de cada ponto de recolha de minério, ou transportá-lo para a britadeira. Com recurso aos rádios e às muitas câmaras que estão espalhadas na mina, Andreia Rebolo, anota as informações que lhe chegam via rádio, comanda as operações de descarga na britadeira, usa um joystick gigante para activar uma espécie de braço pneumático que vai ajudar a moer alguns materiais. Tem fato-macaco como os outros, usa o mesmo cinturão a segurar a máscara de segurança, mas as unhas pintadas de azul revelam que há uma vaidade que não vai desaparecer. “Não temos de ser desleixadas. Sabe sempre bem arranjarmo-nos um pouco”, afirma.
Enquanto isso, Ana Palminha anda por aquele labirinto de túneis, a convocar a destreza ao volante de um dumper e a desafiar as probabilidades matemáticas que explicam como é que máquinas tão grandes não batem mais vezes nas paredes. Aliás, nos hasteais, porque há todo um outro vocabulário quando se fala em túneis e em minas. A mineira não conhecia essa nomenclatura, mas quando ainda trabalhava num restaurante em Beja e ouviu dizer que na Somincor estavam a aceitar currículos foi lá deixar o seu, “sem saber muito bem ao que ia”. “Disseram-me que aceitavam mulheres, confirmei com um primo meu que cá trabalha se isso era possível, e ele disse que sim. Então vim, arrisquei, e acabou por correr bem”, relata.
O recrutamento obedece a várias etapas, começa em testes psicotécnicos, passa por exames médicos, obriga a um prolongado processo de formação. Passado tudo isso, e oito anos de experiência depois, Ana Palminha não tem qualquer dificuldade em eleger a condução do dumper como a sua actividade preferida na mina. Primeiro, confessa que foi o tamanho deste veículo especializado que mais a surpreendeu na primeira vez que desceu ao fundo das minas. Já tinha ouvido falar do tamanho deste camião, tinha visto fotografias das máquinas, mas nunca se tinha apercebido “que poderiam ser tão grandes”.
Um camião mineiro tem cerca de 3,5 metros de largura, quase outro tanto de altura e mais de 11 metros de comprimento. E tem capacidade para carregar 60 toneladas de minério. Mas a mineira, do alto do seu 1,65, não se inibe com o tamanho do veículo e admite que este “lhe dá muita porrada”: “Conduzir este camião dá muita adrenalina! Dá-nos uns safanões, é preciso unhas para o segurar, mas é isso que dá gozo.” Parece que dentro de um dumper ninguém tem medo de nada. Mas Ana Palminha tem o mesmo medo que toda a gente, até os irredutíveis gauleses de Uderzo e Goscinny: “Que, um dia, isto nos caia em cima da cabeça.”
É porventura pelo mesmo tipo de receio que Maria João Tomé, que entrou na Somincor para trabalhar em 1987, ainda a empresa era propriedade pública, nunca se atreveu a entrar dentro da mina. Primeiro entrou para o refeitório, e em 1991 passou para os vestiários, onde está até hoje, “com um horário que é um luxo”, sempre a trabalhar das 8h00 às 17h00. E, agora que tem um filho a trabalhar nas minas, empenhou-se em garantir que o trabalho que lhe arranjavam não era para ir lá para o fundo. “Também há muito que fazer cá em cima”, argumenta. “Eu nunca lá entrei, mas aqui, nos vestiários, a gente vê tudo. Ouve muitas histórias, passa-nos tudo pelas mãos. Antigamente não iam mulheres lá em baixo. Não deixavam, nem elas queriam. Agora entre estagiárias, engenheiras e, agora, até mineiras, já entra tudo. Eu continuo a não querer sequer pensar nisso”, comenta.
Na verdade, a presença de mulheres na Sociedade Mineira de Neves Corvo é uma realidade desde a sua abertura. O universo de trabalhadores é muito flutuante e feito de trabalhadores directos e indirectos — os chamados “empreiteiros”, que têm posto de trabalho fixo na mina, mas que não pertencem à estrutura da empresa que foi concessionada, primeiro à Eurozinc, em 2004, depois à canadiana Lundin Mining, em 2006. Actualmente, trabalham na Somincor 1207 trabalhadores directos e 1110 empreiteiros. E cerca de 10% dos trabalhadores directos da empresa são mulheres.
“Ó rapariga, tu não estás boa da cabeça”
De acordo com as informações cedidas pela empresa, trabalham em Neves Corvo 413 mineiros e 104 operadores de lavaria. Uma delas é Élia Alves, que foi de Almodôvar para Castro Verde, há 29 anos, tinha então 22, para trabalhar nas lavarias. “Não fazia ideia do que era uma lavaria”, comenta. Diz “nem é coisa que se ensine nas aulas de Física e Química, nem mesmo nas de Geologia”. Élia tirou o 12.º ano, e, “por acaso gostava dessas duas disciplinas”, mas sonhava com um curso de Educação. Estava a fazer um trabalho de Verão, num parque de campismo de Vila Nova de Milfontes, quando recebeu uma carta do centro de emprego. “Desde que vim cá inscrever-me até que me colocaram como operadora de lavaria eu pensei muitas vezes com os meus botões: ‘Ó rapariga, tu não estás boa da cabeça. Uma mina não é um sítio para trabalhar.’ Mas fui-me deixando ficar, mesmo sem saber bem o que isto era. E ainda hoje tenho dificuldade em explicar”, concede.
Se a profissão de mineira existe, a de operadora de lavaria não. “Quando abro uma conta no banco, e tenho de escolher umas das profissões que lá aparecem, a mais parecida é operadora de máquinas — o que não tem nada a ver com isto.” A lavaria são as instalações fabris onde se faz a separação do minério com recurso a processos mecanizados e químicos. O minério que chega previamente britado do fundo da mina passa por sucessivos moinhos até terminar numa granulagem fácil de trabalhar e à qual são adicionados alguns reagentes químicos. São estes químicos que explicam o hipnotizante borbulhar do minério, que é separado por um processo de flutuação. Na lavaria do cobre também se faz, hoje em dia, chumbo. Em breve, e depois de um ambicioso projecto de expansão, de 260 milhões de euros, vai-se produzir ainda mais zinco.
Nos últimos 28 anos, a Somincor tem sido, essencialmente, uma empresa produtora de cobre, e o zinco um produto secundário em termos de vendas. Mas a produção tem vindo a diminuir drasticamente (em 2017, a empresa produziu apenas 22% do cobre que fabricou em 1990), pelo que avançou para um projecto de expansão que tornará o zinco o produto principal da mina. Como, tipicamente, o preço do zinco é cerca de menos de metade do preço do cobre, a empresa tem de aumentar o volume e a produtividade. “O projecto de expansão de zinco é importante para garantir a sua competitividade internacional, a sustentabilidade futura da mina, dos postos de trabalho e das comunidades na região”, afirma fonte oficial da empresa.
“Eu costumo dizer que, enquanto houver bolhas, ainda há minério”, simplifica José Simão, que trabalha na lavaria do cobre há tanto tempo quanto Élia Alves. O dia-a-dia de ambos é passado entre dividir amostras, que são passadas por divisores de polpa, por pegar nos filtros, crivar, limpar amostradores, preparar baldes para o dia seguinte, enfim, por trabalharem em todo o processo industrial. É Simão quem se diverte a acicatar Élia, dizendo se há ou não diferença entre o trabalho feito por homens e mulheres. Mas acaba por dizer que o trabalho é o mesmo, e a concordar com Élia que, com as mulheres, a lavaria anda mais organizada e limpa.
Ambos os trabalhadores já assistiram às várias fases da empresa, e viram entrar e sair muitos donos e ainda mais directores e chefias. Começaram na lavaria do estanho, mas este mineral deixou de ser explorado. Agora trabalham na produção do cobre e do chumbo e aguardam que arranque o processo da lavaria do zinco. Já não se assustam com as “novidades”. Aliás, souberam acomodá-las. José Simão tem quase tanto tempo de trabalho na produção (15 anos no fundo da mina) como no processo (trabalho na lavaria) e não tem dúvidas em dizer que as condições de trabalho têm vindo a ser sucessivamente alteradas. “Para melhor”, sintetiza Simão.
Élia Alves acredita que na base de toda a motivação esteve sempre o dinheiro. “Nós ganhávamos bem. Não sei qual era o ordenado mínimo na altura, mas era muito abaixo do que se ganhava aqui. Sei que ao fim de seis meses passei logo para aos quadros da empresa”, recorda.
A importância desta empresa na empregabilidade da região, e mais concretamente nos concelhos de Almodôvar e Castro Verde, mas também Aljustrel, Ourique e Mértola, é notória, já que mais de 90% da força de trabalho é oriunda ou vive nos concelhos circundantes. Em 2017, o custo anual com recursos humanos ultrapassou os 58 milhões de euros, com uma média salarial anual de 55 mil euros, um valor significativamente mais alto do que a média nacional.
“Mulheres a entrar na mina, nem pensar”
Élia saiu da lavaria quando a produção de estanho terminou. Muitos operadores e mineiros rescindiram contrato, mas Élia Alves foi trabalhar para um outro equipamento da empresa, a Ocupação de Tempos Livres que a Somincor tinha a funcionar no centro de Almodôvar. “Ainda estive lá dez anos, com uma outra colega. Tínhamos crianças dos três aos 13 anos. Dávamos o almoço e o lanche, brincávamos com elas, íamos passear. Mas depois passou a ser obrigatório que à frente destes centros estivesse alguém com formação em educação, que nós não tínhamos. Foi-me sugerido vir embora, com indemnização ou criar o meu posto de trabalho, ficando eu com o centro, mas tendo de contratar uma educadora. Pensei muito e acabei por voltar ao meu posto de trabalho inicial”, contou. Hoje, aos 52 anos, com a vida estabilizada, não se vê a fazer outra coisa.
“Mas a minha vida ficou mais facilitada. Antes havia laboração contínua, os turnos eram quando calhava. Agora estou no horário geral, tenho tempo de levar o miúdo à escola, de sair daqui às cinco e apanhar o autocarro para estar em Almodôvar às seis”, relata referindo-se ao filho de 17 anos. Com quase três décadas de mina, Élia Alves nunca desceu ao fundo do poço. Não foi por falta de vontade. “Antes tínhamos aqui um director que não queria que houvesse mulheres na mina, nem nas lavarias. Dizia que elas engravidavam e que ficavam muito tempo fora. Mulheres a entrar na mina, nem pensar”, comenta. Hoje em dia, em que a mina “é um entra em sai” de mulheres, e as condições de acesso estão mais facilitadas (afinal, é só apanhar boleia numa carrinha), também ainda não teve oportunidade. “As burocracias são tantas, as restrições de segurança também, que ainda não fui para lá chatear ninguém. Mas acredite que quero muito lá ir”, confessou.
A primeira mulher mineira de que há referências em Portugal desempenhou funções de “jumbeira” (ou manobradora de uma perfuradora) nas Minas de Panasqueira, na Covilhã, durante o ano de 2003. Chamava-se Lucinda Baptista e, segundo o actual responsável pelas minas que foram exploradas pela Beralt Tin and Wolfram Portugal e depois pela Almonty, António Corrêa de Sá, não há actualmente nenhuma mulher a trabalhar no fundo de mina. “Tanto quanto sei, a única que houve na já muito longa história da Panasqueira foi mesmo a Lucinda”, respondeu o gestor ao P2.
Foi Lucinda Baptista quem contou ao PÚBLICO, nesse ano de 2003, que houve colegas no interior da mina que começaram por mostrar desconforto por ver ali uma mulher a trabalhar. Quem assumiu esse desconforto de forma pública foram, então, os sindicatos, que lembraram a convenção da Organização Mundial do Trabalho e a proibição de mulheres trabalharem no subsolo. “Dizia-se que as mulheres não podiam descer à mina, porque isso poderia prejudicar a gestão de crianças”, relatava, há 13 anos, a então mineira. Lucinda Baptista referia que já tinha duas crianças, não pretendia engravidar de novo, e repetia a toda a gente que a profissão de mineiro não é uma profissão só de homens, mas sim “de quem a quiser desempenhar”.
Em Portugal nunca foi bem assim. Mas também nunca foi como nas minas de carvão de finais de século XIX e início de século XX cuja realidade foi tão detalhadamente contada no romance Germinal, de Émile Zola. O escritor francês retrata o movimento grevista mineiro e as terríveis condições de trabalho que enfrentavam os trabalhadores. Na mina de carvão de Voreaux, em França, trabalhavam famílias inteiras.
Zola era jornalista, tal como Balzac, e nesta obra de 1885 sublinha-se a riqueza dos detalhes e a linguagem realista a descrever os operários imundos e esfomeados, e os seus instintos animais de sobrevivência. No romance, Zola conta que um desses primeiros momentos de revolta e tensão entre os mineiros surgiu como resposta ao desejo da empresa em substituir as operadoras de vagonetes por rapazes, como já haviam feito outras sociedades mineiras em França. “O capataz esboçou um sorriso. Esse projecto de retirar as mulheres do fundo da mina repugnava de ordinário aos mineiros, que temiam pelo emprego de suas filhas, pouco se importando com a questão da moralidade e da higiene”, lê-se no livro.
As raparigas e as mulheres trabalhavam tanto no subsolo como na superfície. Aliás, trabalhar na mina era uma espécie de direito, exercido por pai, mãe, rapazes e raparigas — o único requisito mínimo era ter 14 anos. Os mais novos andavam a pedir esmola, e só quando morria alguém é que a família do mineiro tinha direito a ocupar o lugar deixado vago. Tudo isto porque a fome estava instalada e trabalhar na mina poderia significar ter algo para comer.
“Nem que me pagassem muito queria descer ao buraco”
Com 14 anos foi precisamente a idade com que Alcina Teixeira, agora com 76 anos, começou a trabalhar nas minas do Pejão, em Castelo de Paiva. Foi a última mina de carvão a encerrar em Portugal, em 1994, e Alcina Teixeira andou lá até ao fim. Foi lá que cresceu, foi lá que se casou, foi lá que viu o marido ficar doente e aceitar sair da empresa com uma pré-reforma depois de 36 anos de trabalho. Diz que sempre viu mulheres a trabalhar na mina, mas nunca nenhuma se atreveu a ir para o fundo. Ela própria também fugia da boca da mina a sete pés. “Sempre ouvi falar do poço, e da jaula. Ouvi muitas histórias sobre os que lá morreram. Eu nunca quis lá entrar e rezava todos os dias para o meu marido conseguir de lá sair”, conta.
Rui Paiva, e encarregado da mina durante mais de 20 anos, não consegue dizer à primeira investida o porquê de as mulheres não trabalharem no fundo da mina e desconhece se há uma tradição — a verdade é que desconhecia a existência da já referida convenção internacional. “Nem as mulheres queriam, nem os homens deixavam”, começa por enumerar o responsável. Refere que as mulheres desceram às minas apenas quando começaram muitas mulheres a frequentar o curso de Engenharia de Minas na Faculdade de Engenharia do Porto, e quando a Empresa Carbonífera do Douro passou a ser um dos locais quase obrigatório para visitas de estudo e para pedidos de estágio. “E aí começou a ver-se muitas mulheres a descer à mina”, admite. Mas nunca nenhuma delas para participar no processo de extracção do carvão.
Sempre a trabalhar no exterior da mina, Alcina Teixeira desempenhou várias funções. “Comecei por escolher carvão nos crivos, depois andei a acartar gigas de 50 quilos de antracite para levar para casa dos engenheiros, para eles se aquecerem. Comecei a trabalhar no sistema que transportava o minério para a central térmica. Primeiro nos barcos, depois nas cestas”, relata ao P2.
O sistema que refere Alcina é um teleférico que levava o carvão em “cestas” até à central do Outeiro, na freguesia das Mêdas, no concelho de Gondomar — ficava na outra margem do Douro, e onde o minério era queimado para produzir energia. Alcina olha para essa central quase todos os dias, apesar de o sistema de cestas já não lhe passar por cima da cabeça.
“Foram tempos muito difíceis e muito duros. Antigamente trabalhava-se a sério”, afirma, dizendo que sempre trabalharam muitas mulheres na mina e descrevendo a dureza das funções. “Quando andava a escolher o carvão nas vagonetas, também trabalhava por turnos, e depois tinha de esperar que o meu marido saísse do poço para vir para casa. Porque nunca, mas mesmo nunca me passava pela cabeça poder vir para casa, de noite, sozinha”, confessa. Também recorda os relatos “dos moços mais novos que andavam na gandaia de noite, e depois iam para a mina e adormeciam, acabando por morrer, porque lhes faltava um ar”, recorda. “Eu cá, nem que me pagassem muito queria descer ao buraco.”
Tudo a assustava no fundo da mina. Quando ouve os relatos de que agora há muitas mulheres a trabalhar e que há máquinas de grande porte a andar nas galerias, Alcina mostra-se espantada. Ela, que teve de ser operada à coluna “por causa dos carregos que acartou”, rapidamente diz que foi uma pena a mina do Pejão ter fechado. E nisso é secundada por Cristina, uma das três filhas de Alcina e Henrique Teixeira. Também ela fez muitos quilómetros para ir levar o almoço à mãe, desde a Lomba, em Gondomar, onde ainda hoje habitam. “Antigamente havia trabalho, havia vida. Eles conseguiram juntar dinheiro, fazer uma casa. Nós não arranjamos trabalho, nem conseguimos fazer poupanças. Hoje em dia não há nem um café aqui. As minhas filhas (ambas adolescentes) dizem que estamos num buraco”, diz Cristina Teixeira. Só que é um buraco à superfície.