Vimos uma nova luz nos The xx e ouvimos todas as vozes para Zé Pedro
A banda britânica era a mais aguardada da noite e mostrou-se confiante e celebratória como nunca. Neles se concentraram todas as atenções no arranque do Super Bock Super Rock, marcado também pelo tributo em família ao guitarrista dos Xutos & Pontapés.
“Gostei”, diz um amigo ao outro enquanto se sentam ambos num muro à saída da Altice Arena, em Lisboa, hora já avançando madrugada dentro. “Gostei porque sabia o que ia ver”, sentencia. Era uma forma de enquadrar aquilo a que acabarámos de assistir, ou seja, era uma forma de descrever o concerto dos The xx, o mais aguardado da primeira noite do Super Bock Super Rock 2018, no Parque das Nações, em Lisboa. Num pavilhão preenchidíssimo de público – foi o único momento do dia em que todos pareceram escolher o mesmo destino –, o trio britânico ofereceu realmente aquilo que o público esperava.
Hold on, Crystalised, Shelter, Say something loving, VCR ou Angels. Todas elas passaram pelo palco maior do festival que esta quinta-feira recebeu também todos os muitos convidados da celebração conjunta, familiar, de Zé Pedro (tributo baptizado, de forma que o homenageado certamente aprovaria, “Who The F*ck is Zé Pedro”). Um festival que aplaudiu à noite, com toda a justiça, sob a pala do Pavilhão de Portugal, um grande soul man chamado Lee Fields, precisamente no mesmo local onde, às 17h, os Parkinsons, os primeiros a actuar, avisaram a certa altura, só para enganar, “a próxima é uma balada” (claro que não era, que os Parkinsons são banda punk'n'roll sem temperamento para coisas dessas). Um festival, continuemos, que, ultrapassadas as duas horas da madrugada, continuava a dançar no pavilhão o som tonitruante dos Justice – dois homens e sua maquinaria, uma barreira imponente de amplificadores e luzes a faiscar enquanto os franceses libertavam batidas saturadas, insufladas de prog e rock e funk e mais patifaria sónica da boa.
Apesar da generosa quantidade de t-shirts com a famosa cruz que fomos vendo durante o dia, o equivalente, nos Justice, à icónica língua que se confunde com os Rolling Stones, a verdade é que no arranque do Super Bock Super Rock, tudo pareceu convergir para os The xx. “Gostei porque sabia o que ia ver”, disse-se então quanto tudo terminara.
Gigante pista de dança
Num concerto iniciado às 23h30, uma hora e quinze minutos depois do inicialmente previsto (o início do tributo a Zé Pedro foi alterado das 20h para as 21h, adiando todas as actuações no palco principal), ouviram-se as vocalizações partilhadas entre Romy Madley Croft e Oliver Sim, ouviram-se os ecos da guitarra daquela flutuarem pelo ar, ouviu-se Jamie xx agindo como propulsor rítmico da banda. Isso era o esperado. Mas, e isto não sabíamos que iríamos ver, viu-se também um trio que, no último concerto da digressão europeia e depois de quase dois anos na estrada, como referiram durante a actuação, já não é aquele casulo de timidez que conhecemos nos primeiros encontros. A música continua a ser espaço para confissão de intimidades, mas também se liberta, efusiva, para transformar o pavilhão numa pista de dança gigante.
A delicadeza de um sussurro continua a ser o tom assumido, mas eles encaram-nos agora de frente, Romy Croft dançando livre e confiante, Oliver agitando-se nos calções de napa enquanto Jamie xx põe a máquina em movimento. Ao longo do tempo, do homónimo álbum de estreia (2009) até chegarem, depois de Coexist (2012), ao mais recente I see you (2017), a banda londrina foi caminhando em direcção à luz, procurando fazer da insularidade inicial uma celebração conjunta, quase festiva. A forma como o demonstraram, tão seguros de si, aproximou-os ainda mais de um público que, de qualquer forma, parecia rendido à partida.
Começaram intimistas e envolventes, num início em que se ouviu, por exemplo, Say something loving e, pouco a pouco, as texturas electrónicas feitas névoa fantasma foram ganhando corpo e intensidade. Serenámos para que Romy Croft, depois de juras de amor à cidade e ao país em que actuavam, dedilhasse Performance a solo mas, pouco depois, quando Oliver Sim dedicou Fiction à comunidade LGBT - “vejo-vos, são lindos, sou um de vocês” -, o tom alterou-se definitivamente. Chegaram raios laser, Jamie xx empolgou-se na função e até se ouviu uma das canções do seu percurso a solo, Loud places. O público das bancadas levantou-se definitivamente dos lugares para dançar (chegara On hold) e mesmo a sentida e delicada Angel, a da despedida, teve o seu quê de celebração. Sabíamos o que íamos ver, mas não estávamos à espera que os The xx nos encarassem desta forma, tão livres e confortáveis no palco.
O arranque do festival, que contou com os Vaccines, curioso caso de culto em Portugal, com a elegância disco-house dos Mirror People de Rui Maia, com o inspirado riot-qurrr, chamemos-lhe assim, de Vaiapraia E as Rainhas do Baile e com as novas de Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo, foi também marcado pelo psicadelismo barroco dos ingleses Temples ou por uns curiosos Parcels, australianos radicados em Berlim que parecem o resultado de uma estadia dos Daft Punk e dos Chic nas mediterrâncas Ilhas Baleares. Por eles e, claro, por Lee Fields, homem de carreira tão vasta – começou nos anos 1960, conviveu com Solomon Burke, aprendeu com James Brown – quanto grande é o seu talento para dar vida à soul.
De impecável fato branco debruado a brilhantes e acompanhado pelos Expressions, banda ágil e sábia, gingou pelo funk de We can make the world better, ergueu a voz numa dor de alma feita matéria apoteótica em Faithful man. Antes, falara de companheiros tombados cedo demais, dedicando a sua Wish you were here a Sharon Jones e a Charles Bradley, falecidos em anos recentes e, como ele, heróis tardios da soul. Poderia tê-la dedicado também à memória do homem que, à mesma hora, reunia dezenas de músicos na Altice Arena – e a razão pela qual nos foi impossível ver todo o concerto de Fields.
Sucederam-se as imagens – Zé Pedro nas várias fases da vida, os seus heróis musicais, os seus companheiros de percurso -, sucederam-se os músicos, sucederam-se as canções. A primeira de todas, London calling, clássico punk dos Clash e uma das canções da vida do guitarrista dos Xutos & Pontapés, deu o mote. Tocou-a uma banda residente que era verdadeira banda família: Fred, director artístico do concerto e filho de Kalú, Marco Nunes, sobrinho do baterista dos Xutos, Sebastião e Vicente Santos, filhos de Tim, João Nascimento, filho de Gui, Joel Cabeleira, sobrinho de João Cabeleira. No baixo, Nuno Espírito Santo.
Depois da memória dos Clash, um a um, foram surgindo cúmplices como Tó Trips, que recuperou Submissão, Rui Reininho, que lhe dedicou Morremos a rir, ou João Pedro Pais, que cantou uma És do mundo que, confessou, compôs com Zé Pedro no pensamento. Ao longo das duas horas, vimos Manuela Azevedo cantar Amor com paixão e, com a companhia de Tim, Conta-me histórias. Manel Cruz entregou-se ao clássico Circo de feras e, antes dele, Tomás Wallenstein atacou Morte lenta na companhia de António Reis Colaço, sobrinho de Zé Pedro, e partilhou Este mundo é teu e Esquadrão da Morte com Carlão.
Ainda ouviríamos Paulo Gonzo, surgido em palco de muletas erguidas, cruzadas num xis de Xutos, e ainda se veria Jorge Palma e os reunidos Palma's Gang (chegou assim Esta cidade e Portugal Portugal), bem como os Ladrões do Tempo. Para o fim ficaram eles mesmos, os Xutos & Pontapés. Para o adeus, Tim, João Cabeleira, Gui e Kalú chamam todos os participantes a palco. Foi uma multidão a cantar “Remar remar”. Dando justa medida à dimensão do homenageado, Carlão dissera que, “se tivéssemos em palco toda a gente da tuga que gosta do Zé Pedro, tínhamos que fazer três dias de Super Bock Super Rock” – se pecou, não foi por excesso, mas por defeito.
O Super Bock Super Rock continua esta sexta-feira com foco centrado no hip hop e tem Travis Scott, Anderson .Paak, Princess Nokia ou Slow J como protagonistas. Termina no sábado, dia em actuarão no Parque das Nações Benjamin Clementine, Julian Casablancas, The The ou Stormzy, entre outros.