Chegou Agouro e os nossos preferidos do concurso nacional do Curtas continuam a ser as animações
Agouro é uma animação invernal e telúrica que prolonga o trabalho impressionista de David Doutel e Vasco Sá. Ao terceiro dia – espécie de “ponto de equilíbrio” dos cinco dias do concurso nacional do Curtas –, os nossos preferidos continuam assim a ser as animações.
Ao terceiro dia – espécie de “ponto de equilíbrio” dos cinco dias do concurso nacional do Curtas –, não deixa de ser peculiar que os nossos filmes preferidos continuem a ser as animações. Depois de Entre Sombras, de Alice Eça Guimarães e Mónica Santos, é outro filme de outra dupla nortenha, David Doutel e Vasco Sá, a ficar na memória visual deste 26.º Curtas: Agouro, menos uma história (difusa) e mais um ambiente, um mal-estar, uma espécie de “prenúncio de morte” com pronúncia do Norte, para citar o velho êxito dos GNR.
Antes de lá chegarmos, contudo: houve também na noite de quinta 3 Anos Depois, de Marco Amaral, que faz parte da embaixada portuguesa a Locarno este ano, que partilha com Agouro a sensação de “tormenta à vista”. Não apenas pelo simbolismo (algo carregado) da tempestade que se aproxima com a sua promessa de chuva que vem lavar o passado, mas também pela ideia que lhe é central, a de uma batalha surda entre duas mulheres por uma criança.
Há uma inteligência muito grande a trabalhar em 3 Anos Depois: uma inteligência de economia narrativa e visual, em que tudo fica dito em dois ou três planos, em duas ou três falas e, sobretudo, na presença física das suas actrizes – Ana Moreira e Custódia Gallego, que conseguem com um mínimo de elementos (rostos, olhares, vozes) construir tudo o que há para dizer sobre esta mãe e esta filha ressentidas e distantes. Mas essa economia apela também a uma frieza, a uma abstracção que tornam o filme de Marco Amaral tão sufocante como distante – como se a sua claustrofobia nos fosse proposta apenas como objecto de observação e não de emoção.
É um pouco o mesmo problema que afecta Equinócio, de Ivo M. Ferreira. Podemos dizer que o autor de Cartas da Guerra nunca fez dois filmes iguais (quer em curta, quer em longa). Em comum com o que ficou para trás, a sua nova curta de ficção, deslumbrantemente fotografada na ilha da Culatra por João Ribeiro, tem a dimensão oblíqua de uma busca cujo fim fica sempre de algum modo “fora de campo”: duas mulheres (mãe e filha?) que vão à Culatra cumprir um dever funerário, dois homens (pai e filho?) que observam estes dois peixes (literalmente) fora de água, também sob o signo da tempestade que se aproxima (desde o vento que arrasta a tenda mais leve que o ar à areia que vai cobrindo as personagens saciadas). O que sai de Equinócio é mais sensorial do que narrativo, buscando uma sensualidade sedutora que nunca encontra igual na progressão da trama, criando um coitus interruptus que deixa o espectador frustrado.
Passando por cima de Nevoeiro, de Daniel Veloso, adaptando um conto de Mário Dionísio sobre a resistência ao regime de Salazar de forma anónima e até algo escolar (é pena, era projecto que merecia uma abordagem menos convencional e que trabalha muito bem, nos instantes finais, a ideia de “agouro”), chegamos então a Agouro. Animação invernal e telúrica que prolonga o trabalho impressionista de David Doutel e Vasco Sá na sua anterior curta, Fuligem (2014), Agouro é uma história de sobrevivência que opõe o impulso de acção de um camponês à superstição passiva do primo que com ele mora.
O título vem de uma bolota presa num copo de água gelada, que é o alvo do pânico do primo supersticioso e o motivo visual de um filme de uma beleza negra e soturna, onde as personagens parecem figuras estilizadas em movimento num enorme parque de vidro à espera que o degelo chegue e que – de uma maneira ou de outra – as liberte. Quase sem diálogo, Agouro vive por inteiro de um extraordinário e atento trabalho de criação sensorial que transmite ao espectador precisamente aquilo que o título promete: um presságio com tanto de inevitável como de libertador.