Só não é um disco maior porque está a ombrear com uma obra gigante
Sem propor uma revolução, Both Directions at Once não deixa de ser um importante documento do labor do quarteto clássico de John Coltrane. E só não é um disco maior porque se coloca ao lado de uma obra gigante.
No seu artigo para o France-Observateur, recuperado por Addison Nugent para o site Ozy.com, Charles Estienne escrevia em Março de 1960 que Paris tinha assistido à “noite de estreia da Sagração da Primavera do jazz moderno”. Chamava assim a atenção para a pouco consensual apresentação do Quinteto de Miles Davis no Olympia, comparando a reacção extremada do público à estreia na capital francesa da peça de Stravinsky em 1913. Nunca foi muito claro até que ponto terão ou não existido motins no Olympia aquando do confronto do público com a música do compositor russo e com a coreografia de Nijinsky, mas é pacífico assumir que não se terá tratado de um serão sossegado.
A comparação entre os dois momentos estabelecida por Estienne baseava-se na reacção do público à actuação de uma formação histórica de Miles Davis, com a presença de um John Coltrane que, então, já anunciara o seu abandono para se concentrar na sua própria música. O embate em palco entre os dois, pouco depois da gravação do clássico Kind of Blue, soou a muitos ouvidos como um discípulo em claro desafio do mestre, impondo a sua voz e disputando, em palco, o lugar de líder.
De alguma maneira, o modernismo que Stravinsky forçou no universo da música escrita teve em Coltrane uma força semelhante no mundo do jazz. E, de facto, era inclusivamente conhecido o interesse particular que o saxofonista tinha pela obra do russo. Wayne Shorter, outro dos nomes históricos do jazz norte-americano, havia de comentar que Coltrane “tocava saxofone mais como se o instrumento fosse um piano ou até um violino”. Mas o mais relevante nesta afinidade seria sempre a “visão periférica” de olhar para uma linhagem musical e conseguir ter a percepção de todo o espaço à volta. Algo que é raro em qualquer género musical. A grande maioria nasceu para ir atrás; só uns pouco iluminados sabem pegar numa candeia, avançar por terrenos inóspitos e sair do outro lado com algo que valha a pena partilhar com o mundo.
Both Directions at Once, o registo de um dia de gravação de John Coltrane com o seu quarteto clássico no estúdio de Rudy Van Gelder, em New Jersey, é um impressionante documento de um ponto intermédio no processo fulgurante que levou o saxofonista de intérprete soberbo dentro da linguagem be bop e hard bop até ao estilhaçar de todas as regras, rumo a uma liberdade em que as progressões de acordes se tornavam quase uma miragem e o espaço de um tema ganhava a dimensão extraordinária de todas as possibilidades – sem que isso significasse uma perda de contacto com as raízes. Daí que seja justo falar-se em movimento de expansão, porque Coltrane nunca substituiu um código por outro, antes os acumulou numa conquista contínua de espaço para a sua música.
Será talvez mais acertado chamar “sessão” a Both Directions at Once do que “álbum”. Porque, apesar da argumentação de Ashley Khan nas liner notes de que não faltam indícios de que o Coltrane poderia ter planeado a passagem pelo estúdio com o fito claro de gravar um álbum de fio a pavio (o número de temas, a duração total e o eventual “casamento” entre eles poderia indicar essa vontade), a verdade é que nada há de palpável que nos leve a crer que Both Directions at Once teria sido pensado para figurar ao lado de Duke Ellington & John Coltrane, Ballads, John Coltrane & Johnny Hartman e Impressions (para citar apenas os lançamentos de 1963).
O desaparecimento do master de Both Directions at Once, presumivelmente quando a Impulse! mudou os escritórios de Nova Iorque para Los Angeles ou numa limpeza aos armazéns que tornou dispensáveis masters de gravações que não tivessem chegado a disco (dependendo daqueles a quem damos ouvidos), fez com que destas sessões pouco se conhecesse – Vilia, tema composto a partir da peça Vivias, do compositor Franz Lehár, tinha figurado numa compilação da editora lançada em 1965. Agora que a cópia que Gelder terá passado para Coltrane ouvir em casa foi encontrada pela ex-mulher do músico Juanita Naima, e trabalhada por Ravi Coltrane – músico e filho de John – e pelo técnico Ken Druker vê finalmente a luz do dia, aquilo que se ouve é o resultado óbvio da forma impressionante evidenciada por um quarteto de comunicação musical milagrosa em final de residência no Birdland.
Sem atingir o nível desmedido dos álbuns que se seguiriam, Both Directions at Once é de uma qualidade geral notável. Não figurará certamente entre os álbuns obrigatórios de Coltrane mas oferece interpretações que justificam, sem dúvida, a sua edição e ultrapassam em muito qualquer aproveitamento comercial que possa estar na origem da sua chegada às lojas. Bastaria, aliás, ouvir a solidez inventiva de Elvin Jones e Jimmy Garrison em Untitled original 11383 e Nature boy (tema soberbo a que voltariam em John Coltrane Plays) para a edição estar ganha; tal como bastaria ouvir como Coltrane arranca Slow blues numa linguagem de standard blues e vai, aos poucos, implodindo o tema, como se lhe testasse a elasticidade e capacidade de resistência aos mais variados safanões que lhe dá pelo caminho.
Não mudando propriamente a História da música, Both Directions at Once é, ainda assim, um intenso registo do ponto em que o quarteto se encontrava neste período, pouco antes de virar o jogo do avesso com a ascensão espiritual a tomar conta da música de Coltrane. E só não é um disco maior porque, na verdade, está a ombrear com uma obra gigante.