A influência de uma viga verde na arquitectura belga
Uma paisagem construída com os materiais usados por três ateliers, um português, um belga e outro espanhol, mostra, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, os bastidores da arquitectura. São as histórias que todos os arquitectos têm para contar.
Há muitas contaminações na exposição de arquitectura que inaugurou na semana passada na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Talvez a mais interessante seja aquela que faz como que “Histórias Construídas” pareça uma exposição de artes plásticas. As vigas verdes do atelier Vylder Vinck Taillieu lembram-nos a obra do escultor Anthony Caro nos anos 60. A casa de tijolo de Ricardo Bak Gordon parece uma citação das instalações dedicadas às arquitecturas inacabadas do seu amigo (e cliente) Pedro Cabrita Reis. O atelier Maio, com os seus pilares que nada sustentam e multiplicam aqueles que já existem no espaço subterrâneo da Garagem Sul, evocam um Piranesi do século XXI.
“A verdade é que esta exposição pode ser vista como uma só instalação”, concorda Rodrigo da Costa Lima, um dos curadores desta exposição que pretende ultrapassar o modelo das exposições monográficas à volta de um só arquitecto e pôr em diálogo vários ateliers, nacionais e estrangeiros, ao mesmo tempo que se discute a forma como a arquitectura é produzida e construída. “A plasticidade dos materiais é muito potente”, acrescenta Amélia Brandão Costa, a segunda curadora da exposição Building Stories.
Talvez o atelier Maio, de Barcelona, seja o que contribui de uma maneira mais minimalista para a construção da “paisagem abstracta” que os comissários quiseram construir na Garagem Sul. A Garagem Sul, normalmente um espaço que surge dividido em três naves, tem agora cinco filas de pilares de secção quadrada, revestidos com cofragens de metal, semelhantes às que serviram para os fazer durante a construção do CCB, cujos 25 anos se comemoram este ano.
“Como a instalação devia reflectir o nosso trabalho no atelier, resolvemos redesenhar o espaço da maneira mais simples. Introduzimos mais pilares, por isso o espaço parece mais pequeno e mais baixo”, explica Ana Puigjaner, um dos quatro nomes do atelier catalão, acrescentando que quiseram jogar também com a contradição de alguns pilares nada sustentarem (e se apresentarem afinal como objectos absurdos).
Logo à entrada, alguns dos pilares têm na sua base ou muito perto três montes de areia, de brita, de cimento. São os materiais que servem para introduzir os três arquitectos belgas do atelier Vylder Vinck Taillieu. Segue-se um círculo de água, um empilhamento de madeira amarela, outro de isolamento térmico, escoras que vão pontuando o espaço aqui e ali.
O atelier belga, que acabou de ganhar o Leão de Prata na Bienal de Arquitectura de Veneza, trouxe apenas a verdade dos materiais, mas estes vão ganhando uma solenidade que os parece fazer crescer até à categoria de ready-made. Foram precisos 5632 tijolos de cimento e mais outros 42,8 metros quadrados de tijolo tradicional para fazer a Casa Arbed – lemos nas legendas que acompanham os empilhamentos.
Tal como o nome da exposição indica há histórias para contar nesta exposição dedicada às histórias construídas, como a da viga verde que se tornou um dos materiais favoritos do atelier belga e acabou por ser integrada na sua linguagem arquitectónica. Jan de Vylder conta que um dia chegaram a uma das suas obras e as vigas de aço, normalmente de um vermelho acastanhado, estavam pintadas de verde. Pensaram que o empreiteiro não tinha percebido que era para tratar as vigas com uma tinta anticorrosiva, deram-lhe ordens para não improvisar, mas afinal era a empresa que lhe vendia a tinta primária que tinha mudado de fornecedor – e de cor. De um vermelho acastanhado, a lembrar o ‘pedigree’ industrial, passara a verde vivo.
“Na nossa prática arquitectónica nós queremos tornar claro como as coisas são feitas. Muitas vezes gostamos de dar-lhe um pequeno twist para que apareçam de uma forma diferente”, explica aos jornalistas o arquitecto Jan de Vylder, confessando que num primeiro momento o verde os tinha deixado muito perturbados. “Mas apaixonámo-nos pelo verde. É uma viga muito vulgar, mas o verde faz toda a diferença e passámos a usá-lo sempre. Onde há verde também quer dizer que é uma história simples. Gostamos de construir casas só com os materiais que normalmente desaparecem quando o estaleiro é desmontado. Acreditamos que eles têm uma beleza inacreditável.” Encontramos a viga verde no projecto Caritas que lhes deu o Leão de Prata, uma intervenção num velho hospital psiquiátrico, em Melle, e também nos estúdios da companhia de dança Les Ballets C de la B, em Gante. Os Vylder Vinck Taillieu usam também os painéis amarelos das cofragens de uma marca suíça como elementos da sua linguagem. E os tijolos portugueses, nota Jan de Vylder, são diferentes dos franceses ou dos suíços.
Na exposição é igualmente possível ver as escoras tão presentes em qualquer estaleiro – e que podem suportar pesos antes de ser construída a estrutura definitiva –, a que os Vylder Vinck Taillieu também deram um twist, desta vez elevando-as a matéria preciosa. “Nós produzimos uma série delas em prata para uma galeria, porque acreditamos que são tão bonitas. Elas têm o aspecto que devem ter, podendo ficar mais altas ou mais baixas.”
111 desenhos para uma casa
Já perto do final do espaço da Garagem Sul, o arquitecto português Ricardo Bak Gordon trouxe-nos o espaço interior da Casa Azul, que começou a semana passada a ser construída na Serra de Grândola. Mas se no Alentejo ainda estão a abrir o buraco para fazer as fundações, na exposição do Centro Cultural de Belém, onde a casa é reproduzida à escala natural, as paredes em tijolo subiram até conseguirem desenhar a abertura das portas. Por isso, os seus clientes, um casal de portugueses para quem Bak Gordon já tinha feito uma casa há 15 anos, perceberam primeiro o que é que encomendaram durante a inauguração da exposição. “O nome da exposição, Building Stories, é muito sobre um processo presente, de um tempo que está a correr e de coisas que estão a ser feitas no mesmo compasso de tempo”, explicou ao PÚBLICO Ricardo Bak Gordon, que foi o atelier português de apoio ao arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha no novo Museu dos Coches, em Lisboa.
Nas casas de fresco que dão o nome à Casa Azul – um espaço entre o exterior e o interior onde se poderão tomar as refeições ou ver o pôr-do-sol - o pigmento azul é integrado na cal tradicional, como se pode já ver no ensaio feito no CCB. A cal pigmentada, que faz lembrar o tadelakt marroquino, leva ainda uma camada de cera de abelha para ganhar qualidades hidrófobas, transformando-se a exposição num lugar de experimentação e ensaio. Aqui, só falta as paredes chegarem aos seis metros de altura para a escala 1:1 incluir as várias dimensões do real. “O elemento unitário de construção da casa é o tijolo. O tema da casa é aquele que melhor permite às pessoas que não são da disciplina perceber o que é a arquitectura e a construção da arquitectura. A casa é o grande tema da construção de um lugar e acompanha o homem desde sempre. Sem casas não há cidade”, diz Ricardo Bak Gordon.
“O que é que um arquitecto faz? Não é verdade que o arquitecto faça apenas uns traços, dê uma imagem à obra, e depois haja alguém que saiba construir.”, defende André Tavares, o programador do espaço da Garagem Sul, de quem partiu o convite aos dois curadores. O caderno da Casa Azul, com os desenhos do projecto, junta até agora 111 desenhos realizados pela equipa, entre o estudo prévio, o projecto de licenciamento e o projecto de execução. Feitas as contas, foram realizados mais de três desenhos por metro quadrado para a Casa Azul.
Rodrigo da Costa Lima percebe que possam achar esta exposição “muito estranha”, como já lhe disseram. “Pode ver-se em cinco minutos, se a entendermos como uma instalação, ou em mais de uma hora, se se começar a ver os vídeos, as fotografias das maquetas, as colagens e os desenhos. Quando entramos nesse nível é que a exposição cumpre os requisitos museológicos que era preciso que tivesse no CCB.”
Os curadores desistiram de pôr uma betoneira dentro da Garagem Sul. Mas encontramos umas estranhas caixas suspensas, de onde pode sair o som de uma voz humana ou o canto de um pássaro, numa intervenção do artista Tomás Cunha Ferreira. “Quisemos transportar essa escala mais doméstica para um espaço onde se apresenta a crueza dos materiais. É como quando os trolhas entram no estaleiro e domesticam o espaço da obra com o seu rádio, com um cabide para a roupa ou com uma mesa para as refeições”, comenta Amélia Brandão Costa.
Nesta paisagem abstracta, como notam os dois, a certa altura não é fácil distinguir quem fez o quê. Também nunca chegamos a ver as obras totalmente acabadas dos três arquitectos a não ser nos vídeos, porque o objectivo é revelar o processo, os bastidores. “O processo é semelhante a todos, o resultado é que é muito diferente”, termina Rodrigo da Costa Lima.