Há "Anjos" e "extraterrestres" nas eleições paquistanesas
A linguagem colorida usada quando se fala de política é um eco do tempo em que o país era dominado pelos militares. Há receios de que estes e os serviços secretos estejam a querer manipular a votação, que é apenas a segunda transição democrática em 70 anos.
Na maior parte dos países, se um político dissesse que os extraterrestres estavam a tentar influenciar as eleições, seria ridicularizado pelos media e castigado nos boletins de voto. No Paquistão, onde as referências crípticas às “mãos invisíveis” fazem parte do léxico político, os eufemismos mostram que está em curso a campanha eleitoral das legislativas de 25 de Julho.
Foi o antigo primeiro-ministro, Nawaz Sharif, quem, no início do mês — quando foi condenado a dez anos de prisão e inabilitado para se candidatar a cargos públicos por corrupção — avisou que os “extraterrestres”, ou seja os militares paquistaneses, estavam a tentar impedir que o seu partido conseguisse um novo mandato de cinco anos.
Outros falam do papel que os “anjos”, ou seja os serviços secretos, podem ter nas eleições.
Em parte, a terminologia colorida reflecte a rica herança linguística do Paquistão, apimentada com termos ingleses como “red line” (assuntos proibidos). Mas se olharmos melhor, percebemos que este vocabulário político nasceu do medo de se criticar abertamente os poderosos militares do país — o sujeito nunca mencionado desta linguagem criativa.
“Estes termos só se encontram no Paquistão devido à estrutura do governo”, explica Jibran Nasir, um conhecido advogado de defesa dos direitos humanos. “Temos uma política militarizada, uma coisa que não vemos muitas vezes numa democracia moderna”.
Os militares paquistaneses, que não responderam ao pedido de comentário para este artigo, já negaram várias vezes interferir na política actual. As eleições que se aproximam ocorrem dez anos depois de o antigo chefe do Exército, Pervez Musharraf, ter sido forçado a abandonar o poder.
O dia 25 de Julho é, por isso, considerado um marco histórico — é apenas a segunda vez que há uma transição democrática do poder num país que foi dirigido pelos militares durante quase metade da sua existência desde a independência, em 1947.
Mas são cada vez mais as acusações de que os militares estão a interferir, com a Liga Muçulmana do Paquistão (o partido de Sharif) a acusar “forças ocultas” de estarem a enfraquecer o partido.
Os jornais também têm publicado artigos argumentando que os militares estão a tentar controlar os resultados das eleições. E as empresas de comunicação acusam “poderosos” (ou seja os militares) de impedirem a liberdade de expressão. Já os jornalistas, estão a usar palavras oblíquas para passarem a sua mensagem sem aborrecer o establishment (os militares e os serviços secretos, mas também alguns juízes e funcionários públicos no topo da hierarquia).
Os editoriais nos jornais e nas redes sociais falam no receio de que a votação possa ser adiada através de um esquema de bastidores orquestrado por “forças antidemocráticas” — outro eufemismo para descrever o Exército e os seus espiões, incluindo a poderosa agência de serviços secretos (ISI).
No seu discurso, Sharif acusou os “extraterrestres invisíveis” de intimidarem os deputados do seu partido e de os obrigarem a “virar a casaca”. “Os verdadeiros extraterrestres... eles andam por ai há 70 anos. Agora vai haver um confronto. E se Deus quiser, os humanos vão derrotar os extraterrestres”, disse Sharif, que estava em Londres quando foi condenado e decidiu regressar ao Paquistão na sexta-feira da semana passada, sendo preso mal aterrou.
Do tempo de Zia-ul-Haq
O Movimento pela Justiça, partido do antigo jogador de críquete e herói nacional Imran Khan, é considerado o grande rival da Liga dos Sharif (o partido é liderado pelo irmão de Nawaz, Shehbaz) nestas eleições.
Khan nega estar a ser apoiado pelos militares, porém, no passado, disse em comícios que um “terceiro árbitro” podia acabar com a Liga. As suas palavras foram imediatamente interpretadas como uma metáfora do críquete para dizer que os militares poderiam intervir.
Jibran Nasir diz que ao falar em “extraterrestres” Sharif fez uma jogada calculada. “É difícil pôr as bases a dizerem que Liga Muçulmana está a competir com os militares e não com Imran Khan — mas se disserem que está a lutar contra extraterrestres, todos sabem o que querem dizer”.
Muitos dos termos usados para referir os militares datam dos anos de 1970-80, quando o poder estava nas mãos do general Zia-ul-Haq, que mandou torturar jornalistas e cujos censores liam todos os artigos antes de serem publicados. “Esta linguagem é bem conhecida de todos e diz respeito a um momento histórico em que os militares tinham um papel activo na política paquistanesa”, diz Cyril Almeida, colunista do Dawn, o maior jornal do país em língua inglesa.
Já o termo “anjos”, usado para referir os serviços secretos, tem a ver com a crença generalizada de que nada do que fazem está documentado e por isso o seu envolvimento não pode ser provado — mas existe.
No início do mês, uma influente activista social que critica abertamente os militares foi raptada durante algumas horas. Os seus colegas acusaram uma “instituição sensível”, outra forma habitual de referir os militares e os serviços secretos.
Esta forma de falar confunde muitas vezes os diplomatas envolvidos em conversações com membros do governo. “Já reparámos que eles nunca dizem ‘ISI’. É como se soubessem que é melhor nem admitirem que existe”, disse um diplomata ocidental. “E dizem-nos sempre que têm que levar o nosso pedido às 'autoridades relevantes' ou às 'autoridades apropriadas'”.
Num país que respira conspirações, é difícil distinguir a verdade da paranóia. Mas é generalizada a crença de políticos, empresários e cidadãos comuns de que os seus telefones estão sob escuta.
Num encontro recente com um ministro no seu gabinete, este fez gestos — dobrou o braço direito e apontou para insígnias invisíveis no seu ombro — para assinalar que ia falar dos militares.
Entrevistas on-the-record podem ser bastante desconcertantes para os jornalistas. Talal Chaudhry, que até há um mês era ministro do Interior, disse à Reuters que certas instituições do Estado estavam a pressionar activistas para provocar dissidência e justificar uma “democracia controlada”, o que no Paquistão significa o Estado sob o controlo dos militares.
Mas quando questionado sobre essas instituições, Talal recusou nomeá-las. “Dizer o nome delas pode piorar tudo e nós não queremos que isso aconteça — disse —, queremos é que tudo melhore”.
Reuters