Cenas da luta de classes em Caracas

A relação entre um homem mais velho e um garoto da rua. As relações de poder entre classes a partir da perspectiva de uma relação de poder sexual. Funde-se tudo, o amor e o comércio, numa pouco ortodoxa paternidade. À Distância, de Lorenzo Vigas, com quem aqui conversamos, é uma das obras mais singulares a chegar aos ecrãs portugueses.

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A relação entre um homem mais velho, Armando (Alfredo Castro, o actor de Tony Manero) e um garoto da rua, Élder (Luis Silva),A relação entre um homem mais velho, Armando (Alfredo Castro, o actor de Tony Manero) e um garoto da rua, Élder (Luis Silva) ,
Lorenzo Vigas, de Afar, Luis Silva
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Lorenzo Vigas, Alfredo Castro, de Afar, 2015 Festival Internacional de Cinema de Veneza, Caracas
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Lorenzo Vigas, From Afar, 2015 Festival Internacional de Cinema de Veneza, 2012 Festival Internacional de Cinema Latino-americano de Biarritz
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De Afar, Jericó Montilla
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Três anos depois de ter ganho o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2015, chega às salas portuguesas À Distância, primeira longa-metragem do venezuelano Lorenzo Vigas (n. 1967). Não é um cinema muito divulgado, o venezuelano, nem temos, por isso, muitas imagens da Venezuela para contrapor às que chegam da televisão e dos telejornais. É uma das razões do interesse de À Distância, oferece-nos um outro olhar sobre o quotidiano de Caracas, sobre as suas ruas, sobre a sua arquitectura, sobre o modo com as pessoas vivem e se relacionam – e Vigas, que filma muito bem (o ecrã largo, cheio de “campo” mesmo quando é para “cortar” o horizonte, os planos fixos), capta com notável intensidade uma respiração quotidiana que parece bastante credível, seja nos ambientes da classe média seja nos bairros pobres e marginalizados.

No centro do filme, uma relação entre um homem mais velho, Armando (Alfredo Castro, o bem conhecido actor chileno revelado no Tony Manero de Pablo Larraín) e um garoto da rua, Élder (Luis Silva), violento e turbulento, de allure com o seu quê de fassbinderiano ou pasoliniano – provavelmente os últimos cineastas europeus a filmarem consistentemente as relações de poder entre classes a partir da perspectiva de uma relação de poder sexual. Funde-se tudo, o amor e o comércio (é também uma relação “comercial”), uma espécie de pouco ortodoxa paternidade (a que se acrescenta a figura, fisicamente ausente mas sempre presente no espírito da personagem, do pai de Armando), e uma ferocidade psicológica entre a dependência e manipulação: quem depende de quem, quem manipula quem, quem tem, afinal, o poder – respostas que o filme sugere mas apenas revela praticamente na última sequência. Em fundo, não podemos esquecer mesmo que o filme não faça alusão directa a esse contexto, um país e uma sociedade que desde há anos parecem configurar uma situação de crise e conflituosidade permanentes. As personagens são lançadas contra esse fundo mas, no que é outro aspecto assinalável de À Distância, não há sobre ele um discurso de superfície, “legível”, feito de A + B.

Em conversa com Lorenzo Vigas, ele explica-nos que o filme começou a nascer muito antes desse contexto, justamente. Tudo começou com a personagem de Armando. “Interessava-me uma personagem com este recorte: um homem solitário, a viver em isolamento, aparentemente indiferente ao ambiente circundante, incapaz de resolver as suas emoções”. Era, diz, uma “reflexão sobre a alienação contemporânea, esta solidão e falta de ligação em que cada vez mais vivemos”, exposta através de um “estudo de personagem”. Só depois veio a ideia de colocar esta personagem num diálogo com a tensão da sociedade venezuelana. Vigas era amigo de Guillermo Arriaga (o argumentista mexicano que durante anos colaborou regularmente com Iñarritu e que é creditado como co-argumentista de À Distância), contou-lhe a ideia, Arriaga apoiou-o, e o venezuelano passou três anos no México a desenvolver o guião, até voltar à Venezuela para filmar, em 2014, no ano seguinte à morte de Hugo Chávez, e portanto já no tempo de Nicolás Maduro. As coisas ainda estavam “contidas”, nessa altura. “Havia muita tensão no ar, evidentemente, mas essa tensão ainda não se tinha transposto para o dia a dia nas ruas”. Os primeiros tumultos e confrontos sérios “começaram exactamente uma semana depois de terminada a rodagem, foi quando houve as primeiras manifestações de estudantes”. Vigas concorda que o lado político do filme não está na sua epiderme, não vive de sinais exteriores, e nunca pretendeu “um comentário político directo”. Mas é obvio “que é um filme inteiramente político, lida com uma sociedade profundamente dividida, mostra as pessoas com dinheiro e as pessoas sem dinheiro, que são praticamente todos os jovens de famílias pobres – a única solução para eles é emigrar, não há empregos a sério, uma vida normal é impossível”.

O tema do dinheiro, justamente, está por todo o lado em À Distância. O dinheiro com que Armando “compra” os miúdos na rua, o dinheiro com que eles são comprados. É como se fosse a grande fractura social: uma classe compra, a outra é comprada. “Quando Chávez chegou ao poder”, diz, “houve entusiasmo: ele tinha um discurso de coesão, de aproximação, de integração, e isso foi emotivo e esperançoso”. Mas a decepção veio quando “toda essa conversa, na prática, se revelou o contrário: toda aquela retórica caminhou mais e mais no sentido do afastamento entre classes e, pior ainda, na inoculação de um ódio entre as classes”. Isto era o que já se respirava quando o realizador filmou, o filme acaba por o representar, mesmo que isso não fosse a ideia essencial de Vigas – “mas quando somos honestos connosco, com o país em que vivemos, é impossível não deixar incluir uma afirmação de carácter político”.

Há também essa personagem misteriosa que é o pai de Armando, aparentemente um homem de posses ainda maiores de que ele próprio, com quem ele se recusa a contactar mas observa à distância, numa espécie de obsessão furtiva. É a chave, diz Lorenzo Vigas, para o comportamento de Armando: a partir desses pormenores e da relação com o miúdo, “podemos imaginar o relacionamento dele com o pai e o carácter emocionalmente mal resolvido desse relacionamento”. Não é “metáfora social”, não pretende dizer que a Venezuela tem uma fixação por resolver com o seu passado histórico, mas Vigas diz esperar que o país possa pacificar-se e aprender com esse passado.

A escolha de Alfredo Castro não surpreende, é um intérprete perfeito dum olhar vazio, dum semblante que é como uma parede a barrar o acesso à psicologia. Mas o miúdo, Luis Silva, é uma descoberta. “Tive muita sorte, porque é um actor natural”, conta Vigas, “e aliás hoje vive nos EUA, acabou por ficar lá numa das vezes que fomos apresentar o filme a festivais”. Era mesmo um miúdo da rua, de uma família “muito pobre e muito violenta, ligado a gangs – aliás, entretanto, desde que o filme foi feito, os primos dele foram todos assassinados, o que é uma boa razão para continuar a viver nos EUA”. Aquela violência interior, que às vezes explode de forma muito perturbante, é “encenação” ou já estava nele, foi questão de a “dirigir”? “Sim e não”, responde Vigas, “não creio que seja naturalmente violento, mas a questão é que hoje qualquer pessoa que viva em Caracas tem que incorporar a violência, ela está por todo o lado: ir comprar pão pode implicar ficar três dias à espera à porta da padaria e andar à bulha para conservar o lugar na fila”.

Esta violência no “ar”, mais do que apenas em “acto”, é que se vê, “à distância”, no filme de Lorenzo Vigas, por certo uma das obras mais singulares a chegar aos ecrãs portugueses em 2018.

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