Descargas poluentes em canais de Mira afectam agricultura, turismo e chegam à ria de Aveiro

Águas do Centro Litoral, empresa que gere o sistema, diz que está a ser estudada uma solução.

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Imagem recolhida na Vala Real pelo empresário Rogério Guímaro

As descargas poluentes em vários pontos do concelho de Mira, no litoral Norte do distrito de Coimbra, estão a pôr em causa a agricultura, o turismo e a produção de bivalves. Empresários da região lamentam que as descargas de efluentes sem qualquer tratamento na Vala Real ocorram há meses.

Empresário e ambientalista, Rogério Guímaro tem vindo a denunciar a poluição e a registar vídeos desde o ano passado. Fala num “crime ambiental”. O empresário, cuja produção de agriões de água na localidade do Casal de S. Tomé, em Mira, depende da água da Vala Real, diz que as descargas já lhe provocaram prejuízos na ordem dos 850 mil euros nos quatro hectares de terreno que tinha plantados. “Não tenho produto. Isto já acontece desde Fevereiro de 2017”, afirma, acrescentando que se fez notar mais em Outubro do ano passado, quando o caudal da Vala Real estava reduzido devido à seca. 

A descrição de Rogério Guímaro é de um “risco para a saúde enormíssimo”, uma vez que há “descargas ininterruptas, mesmo sem chover e sem lençóis freáticos saturados”. Essas descargas contêm “tampões, pensos higiénicos, fezes e urina”, exemplifica. 

João Luís Pinho tem uma unidade de turismo rural a uma curta distância da Lagoa de Mira, um dos corpos de água afectados pela poluição e onde se observam peixes mortos nas margens. O empresário aponta que, para além da praia de mar, uma das “principais mais-valias” de Mira é o seu sistema hídrico, com a pista ciclo-pedonal que acompanha parte dos cursos de água. “Frequentemente têm surgido reparos [dos hóspedes] ao estado da água, com o cheiro nauseabundo, a esgoto”, descreve. Com a casa aberta desde 2015, João Luís Pinho lamenta que o concelho esteja “a perder um pouco da sua atractividade”. 

Os empresários falaram ao PÚBLICO à margem de uma visita de três deputados do PS na Assembleia da República ao terreno. O deputado socialista Pedro Coimbra falou aos jornalistas sobre o que “parece ser um problema ambiental grave e significativo”. De acordo com Pedro Coimbra, que esteve em Mira já depois de o local ter sido visitado por deputados do Bloco de Esquerda, do grupo ecologista Os Verdes, e do PCP, o problema parece estar no colector principal, que vem de Cantanhede e leva os resíduos para Norte, até à ETAR de Ílhavo, já no distrito de Aveiro. No entanto, este colector está “aparentemente sobrecarregado”, levando a que o sistema, que só faria descargas em situações de emergência, as passe a fazer em permanência. 

Questionada pelo PÚBLICO, a Águas do Centro Litoral (AdCL) informou que as descargas se devem ao “excesso de caudal por parte da rede em “baixa” (municípios) que chegam às estações elevatórias da AdCL nas zonas de Cantanhede e Mira”. A empresa que tem como accionistas 29 municípios de Aveiro, Coimbra, Leiria e Santarém e a Águas de Portugal, referiu ainda que têm vindo a efectuar-se trabalhos de na rede para aumentar a capacidade de bombagem. 

Estas “medidas mitigadoras” visavam dar resposta ao problema até que seja construída a ETAR de Cantanhede / Mira”, um dossier que, segundo a AdCL, implica “negociações difíceis com os autarcas”. 

No entanto, mesmo depois desses trabalhos de mitigação, as descargas continuaram. Por isso, “estão a ser feitos estudos para averiguar as causas das descargas, em conjunto com as autarquias de Mira e Cantanhede”, responde a AdCL. Na passada sexta-feira, o secretário de Estado do Ambiente, Carlos Martins, deslocou-se a Mira e, citado pela Agência Lusa, deu um prazo de três meses para que a concessionária tenho o “diagnóstico feito”. No mesmo dia, o presidente a Câmara Municipal de Mira, Raul Almeida, disse estar a “perder a paciência” para a falta resolução do problema e admitiu recorrer à justiça.

Mas o impacto não se fica pelo concelho de Mira, uma vez que há um canal de água doce que liga a Barrinha da Praia de Mira à Ria de Aveiro. Francisco Avelelas, produtor de bivalves da Gafanha da Encarnação (distrito de Aveiro) refere que há produtores de ostras que se estão a deparar com taxas de mortalidade entre 80% a 90%. O impacto é sentido desde Março, mês que a água das chuvas aumentou os caudais. Salvaguarda no entanto que, devido à natureza dos contaminantes, é difícil estabelecer uma relação directa entre as descargas e a morte de parte dos bivalves. 

Alerta também que há o risco de alteração de classificação das zonas de produção da ria, que pode ir do A ao D. O nível A significa que pode ser feita a venda directa, a classe D proíbe a apanha. Neste momento, a zona da Gafanha da Encarnação está classificada como B, que significa que pode ser vendida depois de depuração. Contudo, dependendo do grau de poluição, pode passar para C. “Com essa classificação, só podemos mandar para a transformação. Não tem interesse comercial”, explica Bruno Silva, também produtor de bivalves na ria. E se isso acontecesse? “Arrumávamos todos as botas e íamos todos vender gelados”, explica Francisco Avelelas, que é também biólogo marinho. 

Bruno Silva conta que a venda de berbigão na lota está entre 1,5 e dois euros por quilo, enquanto um quilo para transformação vale 70 cêntimos. O produtor fala em cheiros de “urina, fezes e químicos” que por vezes se sente na ria.

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