Uma noite para se ser atropelado por Josh Homme e a pandilha dele

Num Nos Alive totalmente esgotado, as multidões de sexta-feira reuniram-se sobretudo em volta de Queens of the Stone Age, The National e Portugal. The Man. Todos tentaram criar memórias duradouras.

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Josh Homme, dos Queens of the Stone Age, muito provavelmente o homem da noite RITA RODRIGUES

Não é coisa nova. Já o testemunhámos centenas de vezes e continuaremos a testemunhá-lo em qualquer concerto futuro. Cada músico, cada banda, cada frontman usa uma estratégia para estabelecer uma ligação com o público e dar a entender, da forma mais intensa possível, que o amor é recíproco entre o palco e a assistência.

Diante de multidões como aquelas que lotam os festivais, estas estratégias podem facilmente ser o trampolim para que um bom concerto passe a ser memorável – já um concerto medíocre só por milagre deixará de o ser. Na segunda noite do Nos Alive 2018, houve estratégias para todos os gostos: agradecimentos sentidos por quem, com o nome ainda pequenino no cartaz (Teresinha Landeiro e Beatriz Pessoa), conseguiu juntar dezenas de pessoas frente a um palco discreto num festival com solicitações musicais constantes; apresentação bem-humorada da banda (no caso dos Eels), com o currículo de alguns elementos da mesma a ser embelezado e resumido a experiências tão marcantes quanto perder a virgindade ou lograr a conversão religiosa de dois homens enquanto missionário mórmon no Japão; um telemóvel desviado das mãos da proprietária para Matt Berninger (The National) se filmar; ou um Josh Homme (Queens of the Stone Age) de braços escancarados, em Cristo-Rei, como se tentasse abarcar toda a imensa plateia no abraço enquanto dizia “We fucking love you”.

Nestes pequenos gestos de comunicação com o público, gestos destinados a salvar o respectivo concerto de cair no esquecimento, emergem as características fundamentais dos protagonistas: a humildade do início; o humor (por vezes sarcástico) enquanto elemento de mediação com o mundo; a procura desesperada de aceitação e amor; e a crueza de quem não gosta de se esconder atrás de ideias muito elaboradas.

Talvez por isso tenha pertencido aos Queens of the Stone Age (QOTSA) o grande concerto desta sexta-feira no Nos Alive 2018. A música da banda de Josh Homme é feita desta mesma atitude desembestada, em que cada tema parece apressado em soltar-se-lhes dos instrumentos. É um lado primário que parece adicionar a guitarra à secção rítmica, tornando o rock do grupo altamente físico e cru. A partir do momento em que o tema da banda sonora de Laranja Mecânica se transforma em Feet don’t fail me, os QOTSA têm a mira sempre apontada ao corpo do público, agitando-o com shots de energia infecciosa, como acontece com The way you used to do, tema de um balanço tal que soa àquilo que Elvis faria se tivesse caído em criança num caldeirão com uma poção que lhe mostrasse o futuro do rock’n’roll em linha recta.

Mais chegados ao metal ou aos blues, mais sintonizados com os Iron Maiden ou com um Robert Johnson sob o efeito de choques eléctricos, os QOTSA desfilam um conjunto de canções em estado quase selvagem, de Song for the deaf, You think I ain’t worth a dollar, but I feel like a millionaire a Burn the witch e Go with the flow, com paragem obrigatória por No one knows (rock-blues-polka de maravilhosa safra, com o riff da guitarra a ser berrado pelo público). São raros os momentos como Make it wit chu, nos arrabaldes de um disco-soul em vocabulário de banda rock, em que Homme permite aos companheiros de palco e ao público recuperarem o fôlego.

E esse é um dos efeitos da máquina imparável da banda: sai-se do concerto desta gente como se se tivesse sido atropelado por uma febril locomotiva blues-rock, com marcas na pele que equivalem a medalhas para ostentar com orgulho. Algo que coloca o concerto dos QOTSA nos antípodas de uma outra banda que vimos actuar naquele mesmo palco principal, ainda com o sol bem desperto. Os Black Rebel Motorcycle Club, que na viragem do século apareciam com os Strokes como salvadores da coisa rock, atascados até ao pescoço no cancioneiro dos Jesus and Mary Chain, foram vítimas de um jogo de espelhos. Eles que surgiram como uma bem-vinda perturbação nostálgica da música de outros aparecem agora como uma banda nostálgica de si mesma. Foi um concerto mortiço de um colectivo que nunca primou por picos de adrenalina.

Fado, pop e humor

Mas nem só dos palcos principais e de rock se faz este Nos Alive. Muito embora os namoros com o rock apareçam em palcos como a casa de fados improvisada onde vemos os músicos de Teresinha Landeiro tocarem com um vigor rockeiro para tentar impor o som dos instrumentos à crispante electricidade que vem não de muito longe, de uns tipos chamados Kaleo e que se intrometem nos fados. São temas tradicionais que a jovem fadista vai desfiando (numa voz fresca e garrida, mas ainda um pouco verde), tentando convencer o público de que sendo antigos ainda são válidos hoje. E não resiste a ir ao rock dos Xutos & Pontapés (que tinham ido à canção ligeira de Milu) para nos oferecer A minha casinha em registo fado-pop.

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Beatriz Pessoa mostrou que está a caminho de se fazer uma grande intérprete RITA RODRIGUES

Pop, mas nas terras do jazz, isso fica por conta de uma Beatriz Pessoa que passa pelo coreto numa curta actuação que dá a perceber o quanto é já uma óptima escritora de canções, a caminho de se fazer uma grande intérprete. No palco Clubbing, pouco depois, passamos os olhos pelos congoleses Kokoko!, cuja essência debaixo do manto de electrónica made in France fica, na verdade, por esclarecer. Por lá passam também, noite já avançada, Branko e a música que parte de Lisboa para tragar o mundo numa electrónica, aí sim, de vistas largas, ouvidos atentos e sempre disponível para se alimentar de novas fontes de inspiração – no Nos Alive foram as vozes de Dino D’Santiago e do rapper brasileiro Rincon Sapiência.

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Os congoleses Kokoko! RITA RODRIGUES

Atravessando o recinto no final da tarde, o choque com os Eels mostrava como nem todos caem na armadilha do tempo – ou, pelo menos, não da mesma forma. Não se escusando a jogar de acordo com as regras que aconselham a povoar os concertos de festivais com doses maciças de temas mais populares, E (E de Everett, de Mark Everett) comandou o grupo por temas dos primeiros álbuns (com particular foco em Beautiful Freak, Daisies of the Galaxy e Souljacker), mas sem fazer vénias a esse passado. Ou seja, canções como Flyswatter (no limiar dos Nirvana) e I like birds encheram-se de electricidade, Novocaine for the soul soou a blues em trajes funerários, My beloved monster tomou um suplemento de vitamina D e até parecia coisa alegre, Dogfaced boy e Souljacker, pt. 1 estiveram mais de acordo com a natureza blues-rock encardida e de poucos banhos.

E depois há aquela teatralidade que E sabe aplicar aos concertos, tentando que se destaquem entre os demais. Em I like birds (mesmo à falta de um cronómetro para ser mais rigoroso), foram mais ou menos dois os minutos em que o baterista seguiu a tocar enquanto os três homens das guitarras se quedaram imóveis, deixando apenas que os instrumentos cuspissem longos feedbacks na direcção do público. Tão difícil de arrumar na gaveta das memórias temporárias dos festivais quanto a passagem pelo mesmo palco secundário dos norte-americanos Portugal. The Man. Não apenas porque os desvarios de rock psicadélico encimados por um bom cardápio melódico são suficiente motivo de interesse, mas porque também eles souberam usar os meios disponíveis para alargar a comunicação com o público, criando outros pontos de interesse para além da música.

Os Portugal. The Man optaram, por isso, pelo humor. Num longo trecho instrumental fizeram projectar nos ecrãs “as bandas a sério não precisam de cantores”, para pouco depois descansarem o público com uma outra mensagem que dizia “Somos os Portugal. The Man. Só para garantir que estão a ver o concerto certo” ou aludirem à peculiar designação projectando “Obrigado por nos emprestarem o vosso nome”. Num espaço que transbordava, graças à recente onda de sucesso que chegou a esta gente originária do Alasca, foi a costela psicadélica a colonizar o concerto e a encarregar-se de criar boas memórias.

Matt, o carpideiro

Por essa altura, lá ao fundo, no palco principal, Matt Berninger ainda estava a acabar de carpir as desgraças dele. Se há quem goste de afogar os lamentos amorosos num copo de uísque frente a um barman ou quem opte por escolher a dedo aqueles a quem expõe as entranhas, Berninger prefere segredar as suas feridas diante de milhares. Impecável naquele ar de quem atrai todos os azares da vida, o homem dos National é exímio neste miserabilismo de estádio que eleva a uma dimensão desmesurada e filiada nos U2 (mais evidente em Day I die) estas canções que, um dia, quiseram ser filhas de Leonard Cohen (menos disfarçado em Walk it back).

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Matt Berninger, como sempre impecável naquele ar de homem que atrai todos os azares da vida RITA RODRIGUES

Num concerto que agitaria um pouco as águas com Day I die e Fake empire, fica a certeza de que ao vivo os National se tornam mais lamurientos, mesmo quando a banda tenta abanar Berninger e fazê-lo sair daquele torpor. Quando, por momentos, o homem parece cantar I need my gun, há um vislumbre de que possa dramatizar a música para lá daquela auto-comiseração constante. Só que afinal, aquilo que dizia era algo bem mais esperado: I need my girl. Como diria Alain Resnais, “é sempre a mesma canção”.

O Nos Alive 2018 termina este sábado com concertos de Pearl Jam, Jack White, At the Drive-In, MGMT ou Franz Ferdinand.

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