Perdidos e achados em Bolonha
Todos os anos, programadores de cinematecas, arquivistas, técnicos de restauro, investigadores, críticos e cinéfilos em geral convergem para a capital da Emília-Romanha. Durante uma semana, Il Cinema Ritrovato, dedicado à redescoberta de filmes e à exibição de cópias restauradas, é ponto de encontro incontornável da cinefilia de todo o mundo.
Muito antes de ser utilizada como metonímia do espaço comum europeu do ensino superior, o nome de Bolonha era já sinónimo de uma das cidades mais belas, acolhedoras e inteligentes de Itália. Testemunho da prosperidade que conheceu ao longo de várias épocas, o centro histórico desenvolve-se em torno da Piazza Maggiore, estendendo-se por vários eixos repletos de edifícios merecedores de atenção, em várias gradações de ocre e ligados pelas suas características galerias. Não sendo uma cidade particularmente turística (a concorrência na região é forte), é um dos centros universitários mais prestigiados de Itália, para além de beneficiar de excelente culinária.
Como se tudo isto não bastasse, possui uma cinemateca com um espólio monumental, que integra um dos laboratórios de restauro mais importantes a nível mundial (L’Immagine Ritrovata). Essa cinemateca organiza anualmente um festival, intitulado muito adequadamente Il Cinema Ritrovato, dedicado à redescoberta de filmes e à exibição de cópias restauradas, que se tem vindo a tornar num dos pontos de encontro incontornáveis da cinefilia de todo o mundo. Todos os anos, programadores de cinematecas, arquivistas, técnicos de restauro, investigadores, críticos e cinéfilos em geral convergem para a capital da Emília-Romanha para, durante uma semana, participar numa maratona de sessões de cinema, encontros, conferências e seminários, que começam todos os dias às nove da manhã e que se prolongam quase sempre até depois da meia-noite.
A edição deste ano (decorreu de 23 de Junho a 1 de Julho) tinha Marcello Mastroianni no cartaz. Todos os motivos são bons para homenagear a arte de Marcello, um dos maiores ícones do cinema italiano e, não esquecer, um dos maiores actores de cinema de sempre – Il Cinema Ritrovato apresentou uma pequena selecção de filmes que Mastroianni rodou entre 1954 e 1974, alguns dos quais pouco conhecidos. Mas o programa de 2018 foi o costumado embaraço de escolhas: a habitual atenção dedicada aos filmes de há 100 anos, assinalou alguns outros centenários (os dos nascimentos de Ingmar Bergman e de Luciano Emmer) e ofereceu uma profusão de secções imperdíveis ou, no mínimo, interessantes.
Martin Scorsese, anjo providencial na batalha da preservação da Sétima Arte, tem colaborado activamente com a Cineteca di Bologna através da Film Foundation, que dirige, e este ano desceu à terra, perdão, veio a Bolonha, para participar num debate com cineastas italianos (Jonas Carpignano, Matteo Garrone, Alice Rohrwacher) e apresentar, perante uma Piazza Maggiore a abarrotar, versões restauradas do clássico mexicano Enamorada, de Emilio Fernández (1946), e da sua obra-prima O Toiro Enraivecido (1980).
Se dúvidas ainda restassem de que a necessidade do restauro não diz respeito apenas a “velharias”, basta ver a quantidade de filmes relativamente recentes, ultraconhecidos e cujos negativos que se pensaria que estão bem conservados, a necessitarem de intervenção. Não nos referimos a versões truncadas ou à proliferação de director's cuts , mas tão simplesmente à recuperação de cópias em decomposição ou com cores alteradas. Este ano, paralelamente às versões restauradas de A Vida de O'Haru (Saikaku Ichidai Onna, 1952), um dos mais belos e mais tristes filmes de Mizoguchi, e de Primavera Precoce (Soshun, 1956), que apesar de fazer parte da última fase de Ozu é um dos seus filmes menos conhecidos precisamente porque o estado da cópia que circulava em DVD era péssimo, Bolonha exibiu os recentes restauros dos oscarizados O Padrinho (1972) e O Caçador (1978) ou dos ainda mais recentes Mishima, de Paul Schrader (1985), e Tucker –? O Homem e o Seu Sonho de Francis Ford Coppola (1988) que, independentemente da opinião sobre a sua qualidade, são filmes cujo aspecto visual é fundamental.
Por entre a recuperação de filmes mainstream como estas dos movie brats de Hollywood, outras houve que vieram permitir ver filmes malditos, virtualmente invisíveis desde a sua estreia. É o caso de The Last Movie (Dennis Hopper, 1971), talvez o filme menos convencional e mais audacioso alguma vez produzido por Hollywood. Depois do êxito de Easy Rider, Hopper conseguiu que a Universal lhe financiasse esta extravagância (rodado em grande parte no Peru, sem guião prévio). Depois de uma rodagem caótica, o estúdio, sem saber o que fazer com o objecto insólito que tinha entre mãos, estreou-o quase em segredo, nunca o chegando verdadeiramente a distribuir.
A cópia apresentada permite fazer alguma justiça à ousadia de Hopper. A vaga trama de The Last Movie fala da interrupção da rodagem de um western no Peru, após a morte acidental de um dos atores principais; um dos membros da equipa, um duplo (Dennis Hopper), permanece no país com uma das actrizes peruanas e acaba por participar num remake (imaginário?) do filme, realizado por uma equipa local. Nem tudo faz muito sentido, mas uma vez ultrapassada a perplexidade, há muito a desfrutar nesta obra. Uma alegoria do neocolonialismo americano? Uma metáfora de Hollywood? Uma trip em livre curso? Aceitam-se palpites.
O segmento Ritrovati e Restaurati do festival, a par do capítulo dedicado aos filmes de há 100 anos (Cento anni fa: 1918), ocupa a parte principal da programação: vários filmes de curtíssima duração (cerca de cinco minutos, como os dirigidos por Segundo de Chomón para a Pathé nos anos 1906-08 ou as duas curtas de Walt Disney de 1927 e 1928 descobertas na Biblioteca Nacional da Noruega); duas curtas metragens alemãs de 1918, uma de Robert Wiene e outra de Ernst Lubitsch; a espectacular apresentação na Piazza Maggiore (com a partitura original executada ao vivo por uma orquestra dirigida por Gillian Anderson) do restauro do primeiro filme americano do mesmo Lubitsch, Rosita (1923), produzido e estrelado por Mary Pickford; dezenas de outras longas-metragens (cerca de 40), todas recentemente restauradas por diversos laboratórios em vários países (com a parte de leão cabendo, naturalmente a L’Immagine Ritrovata de Bolonha) e muitas delas igualmente redescobertas após terem caído no esquecimento ou terem sido objecto de censura, política ou simplesmente económica, como o já referido The Last Movie — tudo isso fez parte da selecção deste ano.
Um dos casos curiosos de censura (ou antes, autocensura) prende-se com o filme “invisível” de Ingmar Bergman, Sånt händer inte här (High Tension ou, literalmente, This Can't Happen Here), filme de espionagem que o cineasta sueco rodou em 1950 e que depois renegou (ao que parece, já o rodara extremamente contrariado), tendo envidado todos os esforços para que não fosse exibido, mesmo nas retrospectivas mais completas. O filme é afinal mais interessante do que a sua reputação parecia indicar. Totalmente atípico na obra de Bergman, mesmo para a época (entre Rumo à Felicidade e Um Verão de Amor), insere-se na tradição do nordic noir, que se havia inspirado no film noir francês de Duvivier, Grémillon e Carné. Se bem que a história seja convencional (intriga típica de espionagem do início da guerra fria), sem grande esforço podemos detectar um tom bergmaniano na relação “de massacre” conjugal. Além disso, algumas das sequências são visualmente notáveis (em grande parte graças à contribuição do director de fotografia Gunnar Fischer), como a inicial, da chegada a Estocolmo da personagem de Ulf Palme, o transporte do seu “cadáver” pelos bastidores de um teatro, ou a perseguição que termina na sua queda do elevador de Katarina.
Não se pode dizer que René Clair esteja esquecido, mas anda um pouco arredado das graças dos críticos e programadores contemporâneos. Em boa hora, a exibição em Bolonha de três dos seus filmes, de épocas e estilos muito distintos — Entr'act, média metragem vanguardista encomendada em 1924 para ser exibida no intervalo de um ballet de Francis Picabia, com música de Erik Satie, Os Dois Tímidos (Les deux timides), comédia rocambolesca de 1928, hoje praticamente esquecida, e sobretudo O Silêncio é de Ouro (Le silence est d'or), com Maurice Chevalier, o seu primeiro filme realizado em França após o exílio voluntário nos Estados Unidos durante a guerra — vêm relembrar por que foi um dos cineastas franceses mais apreciados na primeira metade do século XX, conseguindo o raro feito de congregar os favores do público, da crítica e dos pares.
A reputação de Giuseppe De Santis, um dos mais celebrados realizadores do neo-realismo (Não Há Paz Entre as Oliveiras, Arroz Amargo), não sobreviveu intacta até aos nossos dias mas, a avaliar por Um Dia de Amor (Giorni d’amore, 1954), que figurou na homenagem a Mastroianni, talvez merecesse melhor sorte. Uma história de amor lírica que desune duas famílias rurais pobres serve ao comunista De Santis para pregar o seu credo mas, muito mais do que isso, para demonstrar a sua habilidade de contador de histórias e o seu humor na descrição de uma comunidade de província tipicamente italiana.
Bolonha dedica habitualmente uma retrospectiva a um cineasta italiano. Entre os homenageados mais recentes, alguns nomes famosos na sua época, como Renato Castellani, Mario Soldati ou Augusto Genina. Este ano foi a vez de Luciano Emmer, de quem se comemora o centenário do nascimento. Já com uma longa série de documentários de arte (género que praticamente criou e ao qual se manteve fiel ao longo da sua carreira) quando assinou o seu primeiro filme de ficção, o belíssimo Domingo de Agosto (Domenica d’agosto, 1950), Emmer conheceu um certo êxito de público com as oito longas-metragens que realizou ao longo dos anos 50, embora a crítica sempre o tenha detestado. Acabou por ter um percurso anómalo, uma vez que abandonou o cinema em 1961, na sequência dos problemas com a censura de que foi vítima o filme La ragazza in vetrina, para se dedicar à televisão, onde prosseguiu o seu interesse pelo documentário, realizando telefilmes e pequenos filmes publicitários, numa época em que a publicidade estava banida da televisão. Só regressou ao grande ecrã em 1990, tendo realizado mais quatro filmes até ao seu desaparecimento em 2009.
A mostra teve como subtítulo "a arte do olhar" e era disso que se tratava: Emmer retratou a pequena burguesia nascente na Itália do pós-guerra, uma nova geração urbana que, embora trabalhando no centro, vivia ainda na periferia das grandes cidades. Marisa, Elena e Lucia, as três raparigas do título de Raparigas de Roma (Le ragazze di Piazza de Spagna, 1952), vivem os pequenos dramas da entrada na vida adulta, narrados pela pena atenta de Sergio Amidei e pelo olhar poético de Luciano Emmer. Uns anos depois, as suas personagens iriam viver os grandes dramas da dolce vita.
Outro dos maravilhosos retratos de grupo realizados por Emmer dados a ver em Bolonha foi Sete Anos de Liceu (Terza liceo, 1954). Um documento sobre duas gerações num país em transformação acelerada, centrado num grupo de estudantes do último ano de um liceu de Roma. O olhar de Emmer é simultaneamente terno, arguto e verdadeiro. Os seus detractores na época (e foram muitos) designaram o seu cinema por “neo-realismo cor-de-rosa” porque o cineasta se recusava a tratar dos grandes temas sociais, preferindo abordar as emoções das pequenas personagens, esquecendo-se esses críticos de que por trás dessas gentes estavam paisagens, grupos, movimentos. Como quem não quer a coisa, Emmer bem pode ter sido o grande retratista das transformações sociais do “milagre económico” italiano.
Das suas obras maiores, La ragazza in vetrina é certamente uma das mais estarrecedoras, e aquela em que o equívoco do rótulo “neo-realismo rosa” é mais evidente. O filme mostra a emigração italiana nas minas belgas e holandesas numa época em que se começava a tornar evidente que as condições de trabalho eram duras (ao contrário da versão oficial); contudo, depois de uma primeira meia-hora com algumas das cenas de galerias de minas mais opressivas jamais mostradas no cinema, Emmer leva os seus dois mineiros (Lino Ventura e Bernard Fresson) para Amesterdão, onde se irão cruzar com duas "meninas das montras” (Marina Vlady e Magali Noel), com quem passarão um fim-de-semana quase sem história. Emmer revela-se fiel às características do seu cinema: o grande filme das minas converte-se afinal num grande filme sobre as aspirações de pequenas personagens, atento ao meio em que se inserem, à verdade dos seus pequenos gestos.
Se a retrospectiva Emmer, ao contribuir para combater mais uma das grandes injustiças da memória em que a história do cinema é fértil, foi sem dúvida um dos momentos mais significativos, muitos outros justificaram a edição de Il Cinema Ritrovato deste ano: o encontro com Anna Karina, que veio apresentar o restauro de A Religiosa; a descoberta de La Vie de Plaisir, realizado por Albert Valentin em 1944, retrato implacável da alta sociedade francesa num cruzamento entre uma Regra do Jogo já destituída de qualquer carácter premonitório e uma versão gaulesa das comédias de recasamento (segundo a expressão cunhada pelo recentemente desaparecido ensaísta Stanley Cavell), que nada fica a dever às suas congéneres americanas; Sir Christopher Frayling, biógrafo e grande especialista de Sergio Leone, analisando as referências cinematográficas dos 20 minutos iniciais de Era Uma Vez no Oeste; o silêncio — e a emoção — de milhares de pessoas assistindo à projecção de Ladrões de Bicicletas no ecrã gigante da Piazza Maggiore...