Disseram-lhe que nunca mais voltava a andar. Hoje pede meio milhão à Brisa

Camionista despistou-se à entrada da ponte de Santarém, na A1. Julgamento da concessionária começa nesta quarta-feira. Relatório do LNEC detectou deficiências nos rails e barreiras de segurança.

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Paulo Ricca

Passaram nove anos desde o dia que os médicos lhe disseram que não ia voltar a andar e talvez não viesse a poder ter mais filhos. Contrariou-os: ao fim de vários meses de internamento no centro de reabilitação do Alcoitão o corpo deu-lhe os primeiros sinais de que ia reagir. Hoje move-se sem cadeira de rodas e teve mais dois filhos, mas as radiografias de Pedro Lobo lembram uma instalação artística feita à base de ferros, arames, próteses e parafusos.

A madrugada ainda não tinha clareado quando se fez à estrada naquele dia de Verão 2009. Conduzia um camião cheio de papel para reciclar. Porém, a carga nunca chegou ao destino. À entrada da ponte de Santarém, na A1, o rebentamento de um pneu fê-lo despistar-se e cair de uma altura de 25 metros, o equivalente a oito andares.

Conta que ainda hoje acorda muitas vezes à hora a que se deu o acidente, cerca das 5h45. “Lembro-me perfeitamente de bater contra a protecção da ponte, do silêncio que se fez e do estrondo a seguir”. Encarcerado mais de três horas dentro da cabine, diz que só se salvou por não levar posto o cinto de segurança e ter sido atirado para fora do lugar, porque o volante cortou o assento do lado do condutor.

Nesta quarta-feira, senta-se pela primeira vez no Tribunal de Santarém, para exigir mais de meio milhão de euros à Brisa. Com uma incapacidade declarada em mais de 70 por cento aos 32 anos de idade, garante que se a concessionária tivesse zelado pelas condições de segurança da auto-estrada, como lhe compete, teria escapado quase ileso. “Eu tinha verificado os pneus antes de partir”, assegura, mostrando-se convicto de que foi um objecto qualquer na auto-estrada que originou o rebentamento. Ou isso ou a junta de dilatação à entrada da ponte. “Ia a 80 ou 90 quilómetros por hora. Estes camiões têm um equipamento que bloqueia o excesso de velocidade”, descreve.

No cerne do julgamento cível que arranca nesta quarta-feira estará, entre outros factores, o estado dos rails de protecção da travessia, que não lhe estancaram a queda. Uma perícia pedida pelo tribunal ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) detectou-lhes problemas. O relatório dos peritos diz que as deficiências de concepção e execução de rails e barreiras de segurança não permitem afirmar que estas estruturas “fossem suficientes para evitar que um veículo ligeiro de passageiros os pudesse atravessar, com risco de cair do viaduto”, quanto mais para travar um pesado de mercadorias.

A Brisa escusa-se a falar do caso, alegando que isso poderia prejudicar o desenrolar do processo judicial. Na contestação que apresentou em tribunal garante que à hora do acidente não foi detectado qualquer perigo para a circulação rodoviária. Além disso o camião já se tinha despistado quando passou por cima da junta de dilatação, refere ainda, acrescentando um detalhe: as guardas de segurança e guarda-corpos dos viadutos são aprovados pelo Instituto de Infra-Estruturas Rodoviárias, que fiscaliza as auto-estradas antes de abrirem.

Depois de se reformar com uma pensão mensal de cerca de 500 euros, a que acresce uma indemnização laboral de cinco mil euros, o camionista abriu um pequeno negócio ligado ao transporte de executivos de empresas. Não consegue ficar longe da estrada, mesmo sem capacidade para guiar muito tempo seguido. Não fiz nada de mal naquele dia, repete. “Não foi justo, um acidente daqueles”.

“Uma estrada barata é uma estrada perigosa”

A capacidade que uma barreira rodoviária de segurança tem de reter um veículo depende de vários factores, dizem os peritos do LNEC: desde logo da velocidade a que circula o veículo, mas também do seu tamanho e do ângulo do embate. À frente do Observatório das Estradas há vários anos, Nuno Salpico explica que os rails de segurança têm parâmetros gradativos de segurança que não devem ser desconsiderados. “Por isso, o seu bom estado de conservação e fixação devem ser cumpridos”, sublinha. “Mesmo em veículos ligeiros ou veículos pesados, em determinadas condições, podem surtir o seu desejado efeito de segurança, perante embates laterais dos veículos a determinadas velocidades, podendo evitar a consumação de despistes”. Questionado sobre se os automobilistas podem confiar no estado das estradas portuguesas, é peremptório: “Em muitos Itinerários Principais e Itinerários Complementares não podem, dado que eles incumprem com gravidade os critérios de segurança”. O especialista dá alguns exemplos desses incumprimentos, que vão desde as distâncias de visibilidade de decisão, de paragem e de ultrapassagem, “permanentes violadas”, até aos critérios de atrito do pavimento. Resultado? “Estradas completamente heterogéneas, que surpreendem os condutores com defeitos inesperados que lhes retiram por completo a capacidade para o exercício de uma condução segura.”

É por isso que a anunciada remodelação do IP3 já vem tarde: “A correcção acontece numa altura em que muita gente morreu à mercê de tão ruim traçado”. Para Nuno Salpico, a tentação de reduzir custos por parte dos projectistas das vias rodoviárias, transformando aquilo que deviam ser curvas amplas em percursos sinuosos,  dá quase sempre mau resultado: “Uma estrada barata é uma estrada perigosa. E depois trágica.”

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