Justiça investiga actual e anterior presidentes da câmara
Autarca socialista é visado em inquérito criminal, arriscando-se, entre outras coisas, a perder o mandato e a ficar impedido de se recandidatar. O seu antecessor, Joaquim Morão, está a ser investigado por causa da gestão da Misericórdia de Idanha-a-Nova, da qual é provedor.
O Ministério Público está a investigar o actual presidente da Câmara de Castelo Branco, Luís Correia, e o seu antecessor, Joaquim Morão. O inquérito em que o primeiro é visado prende-se com indícios de violação de diversas normas legais relacionadas com contratos públicos - designadamente do regime de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos - divulgados pelo PÚBLICO. No caso do segundo estão em causa suspeitas relacionadas com a gestão da Santa Casa da Misericórdia de Idanha-a-Nova, da qual é provedor há cerca de vinte anos e em cujos serviços desempenha funções a médica anestesista com quem é casado.
De acordo com a assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral da República, os inquéritos abertos encontram-se em segredo de justiça.
Quanto a Luís Correia, o processo, de natureza criminal, que corre no Departamento de Investigação e Acção Penal de Coimbra, incide sobretudo nos contratos celebrados - em especial desde que se tornou presidente da autarquia em 2013 - entre o município local e uma empresa pertencente ao pai, ao sogro e a um tio da mulher. Em causa estão também outros contratos firmados pelo município com outras empresas em que ele próprio tem interesses directos e indirectos.
Alguns desses contratos foram revelados pelo PÚBLICO no dia 21 de Maio, tendo então o autarca afirmado que dois deles, um de 2014 e outro de 2015, nos quais interveio pessoalmente em representação do município, enquanto que o pai interveio em nome da empresa contratada, resultaram de um lapso. “Não me apercebi. Foi um lapso evidente e ostensivo”, respondeu por escrito ao PÚBLICO para justificar a sua participação nos dois contratos que somaram cerca de 94 mil euros.
A Lei da Tutela Administrativa (Lei 27/96, artº 8º, nº 2) impede os titulares de cargos políticos de intervir, nem que seja ao nível da sua apresentação ou discussão, em quaisquer contratos em que os próprios, ou os seus familiares próximos, incluindo cônjuges, filhos, pais e irmãos, tenham interesse. O incumprimento desta norma implica a perda do mandato em que estão investidos, cabendo ao Ministério Público propor a respectiva acção nos tribunais administrativos. Os processos de perda de mandato têm carácter urgente e a sua interposição é uma obrigação do Ministério Público nos 20 dias seguintes ao conhecimento dos factos.
Por outro lado, o regime jurídico das incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos proíbe as sociedades detidas por aqueles, ou por familiares próximos, em mais de 10% do seu capital de participar em quaisquer contratos com o Estado. A violação desta regra implica a nulidade dos contratos e acarreta a interdição de os intervenientes ocuparem altos cargos políticos e altos cargos públicos por um período de três anos.
Luís Correia é casado com a deputada Hortense Martins, líder do PS no distrito de Castelo Branco, e ocupou até há alguns meses o lugar de presidente do Conselho Intermunicipal da Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa (CIMBB). Este órgão, que integra todos os presidentes de câmara da região e não publica no site da CIMBB qualquer acta da suas reuniões mensais desde Julho do ano passado, tem como primeiro secretário executivo Joaquim Morão, o antecessor de Luís Correia no município de Castelo Branco. Contactado pelo PÚBLICO, Luís Correia escusou-se a prestar quaisquer declarações enquanto o processo judicial não estiver concluído.
O amigo de Sócrates
No caso de Joaquim Morão, a investigação aberta pelo Ministério Público tem a ver com a gestão da Misericórdia de Idanha-a-Nova e com a construção da sua Unidade Cuidados Continuados. A obra, no valor de 2,4 milhões de euros, foi adjudicada em Julho de 2010 à Constrope, uma empresa com sede em Belmonte, da qual Carlos Santos Silva - o amigo e financiador de José Sócrates que é também arguido na Operação Marquês - foi um dos donos durante muitos anos.
A adjudicação, apesar do seu elevado valor, foi feita por ajuste directo, sem concurso público. Para justificar o recurso ao ajuste directo, a Misericórdia invocou, conforme consta do portal da contratação pública, uma norma excepcional e transitória de um decreto-lei (artº 1º do DL 48/2008) que dispensava o concurso público para a construção de unidades de cuidados continuados.
O decreto em questão permitia a contratação dos empreiteiros dessas unidades por ajuste directo, mas impunha duas condições: as obras tinham de ser efectuadas pelas administrações regionais de saúde; e a contratação tinha de ocorrer até 31 de Dezembro de 2008.
Em Idanha-a-Nova, porém, a obra foi feita pela Misericórdia local, que figura no contrato como adjudicante, e a adjudicação foi feita em Julho de 2010. A inauguração da unidade ocorreu em Fevereiro de 2014.
Já em 2017, a instituição - que não dispõe de site na internet e não publicita os seus relatórios e contas como o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social obriga desde 2014 - lançou uma obra de ampliação daquela Unidade de Cuidados Continuados, bem como a construção de um conjunto de residências para idosos.
O PÚBLICO contactou o provedor da Misericórdia, Joaquim Morão, mas este entendeu nada dizer, não esclarecendo se já foi ouvido no âmbito do inquérito judicial em curso e não respondendo ao pedido de acesso às contas da instituição, que lhe foi dirigido ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.
Além de provedor daquela instituição, Joaquim Morão - um histórico autarca e dirigente do PS que foi presidente das câmaras de Idanha-a-Nova e de Castelo Branco durante três décadas e foi substituído na liderança distrital do partido pela mulher de Luís Correia - ocupa o lugar de vogal do secretariado nacional da União das Misericórdias Portuguesas.