Um Verão francês
Não é qualquer cinema francês do período 30-60, é o dos grandes mestres. Não é o de quaisquer grandes mestres, é o daqueles que a nouvelle vague reconheceu e defendeu como os cineastas verdadeiramente importantes do cinema francês. O Verão vai ser com eles no Nimas, em Lisboa.
Depois das retrospectivas de cinema japonês e cinema russo, é o francês que se vai falar no Nimas durante o Verão. Com início a 12 de Julho, e prolongando-se até ao principio de Outubro, a distribuidora Leopardo Filmes apresenta uma retrospectiva intitulada Cinema Francês 1930-1960 - Os Grandes Mestres (Os Padrinhos da Nouvelle Vague), composta por 16 filmes de dez cineastas, que será depois também mostrada noutras cidades (Porto, Coimbra, Braga, Setúbal e Figueira da Foz).
O título da retrospectiva é longo mas precisa de o ser para cumprir a função delimitadora. Não é qualquer cinema francês do período 30-60, é o dos grandes mestres, e não é o de quaisquer grandes mestres, é o daqueles que a geração da nouvelle vague reconheceu como inspirações e defendeu como os cineastas verdadeiramente importantes do cinema francês. É por isso que falta, por exemplo, Marcel Carné, realizador extremamente popular e altamente considerado durante o período coberto pelo ciclo, mas que nunca foi, bem pelo contrário, particularmente estimado pelos futuros cineastas da nouvelle vague. Cineastas-críticos ou críticos-cineastas, os principais nomes, e os principais "ideólogos" da nouvelle vague (essencialmente o eixo "cahierista", Truffaut, Godard, Rivette, Rohmer, Chabrol), moveram ao longo dos anos 50, nas páginas dos Cahiers du Cinéma e de outras publicações, uma guerra cerrada ao statu quo do cinema francês, de que acabaram por "salvar" relativamente pouca coisa. Cometeram-se, certamente, injustiças, e ter-se-ão feito julgamentos demasiado sumários ou demasiado severos; o recente filme de Bertrand Tavernier, Uma Viagem pelo Cinema Francês, é uma tentativa de encontrar outros pontos de interesse no cinema francês clássico para além do mapa definido pela nouvelle vague, e ainda valeria a pena mencionar o esforço revisionista de Paul Vecchiali, que também recentemente publicou um Dicionário do Cinema Francês votado em especial à redescoberta dos cineastas populares dos anos 30. Por outro lado, os dez cineastas representados não são os únicos "padrinhos" da nouvelle vague - faltam, por exemplo, Tati (o que se compreende, visto ter sido "retrospectivado" há pouco tempo) ou Jean Grémillon (o que é pena, pois é um cineasta extraordinário ainda quase desconhecido para quem não frequente a Cinemateca).
Mas a selecção apresentada compõe, de facto, um percurso coerente por alguns dos nomes e filmes essenciais para um reencontro do cinema clássico francês, e traz até a grata surpresa de contemplar cineastas que hoje, e falando de cinematecas, raramente são vistos fora desse contexto, como e o caso de Sacha Guitry e Marcel Pagnol. A primeira "tranche" do ciclo - que avançará em grupos de quatro filmes a cada vez - começa com dois cineastas que acabaram por ser contemporâneos da nouvelle vague e cruzar-se com ela. Jean-Pierre Melville, admirado pela sua atitude de maverick e pelo seu amor pelo cinema americano, e Georges Franju, que se aproximou do fantástico e da tradição folhetinesca à la Feuillade trazendo-lhes uma inexcedível poesia melancólica. Deles veremos dois filmes que bem patenteiam estas características: Dois Homens em Manhattan, de 1959, o filme realmente americano de Melville; e Olhos sem Rosto, de 1960, com uma fenomenal Edith Scob (actriz que Léos Carax trouxe para Holy Motors, onde a fez citar justamente o filme de Franju).
Estes dois filmes quase se confundem, pelo menos cronologicamente, com a própria nouvelle vague, mas os outros dois do primeiro bloco já são outra coisa. A extraordinária Madame de... de Max Ophuls (1953), um dos cumes absolutos da arte do cineasta de origem alemã, com Danielle Darrieux, Charles Boyer e Vittorio de Sica, todos sublimes, num esfuziante e tristíssimo carrocel amoroso; e um filme daquele a quem Jacques Rivette chamou "le patron", Jean Renoir, porventura a maior das sombras tutelares da nouvelle vague. O filme é o singularíssimo O Crime do Senhor Lange, de 1936, um daqueles filmes de Renoir embebidos do clima político do momento (o tempo da Frente Popular), sobre um grupo de empregados de uma editora que se organiza em cooperativa depois da deserção do proprietário.
Ophuls volta no último bloco, com O Prazer (1952), outro dos seus títulos máximos, e Renoir volta no segundo bloco, já em Agosto, com um filme feito vinte anos mais tarde, Elena e os Homens, protagonizado por Ingrid Bergman, sobre as aventuras amorosas de uma princesa polaca exilada em Paris durante a Belle Époque; e de novo no quarto bloco (em Setembro) com um filme bastante aproximável de Elena, French Can Can, de 1954, outra evocação da Belle Époque, centrada no Moulin Rouge (e são escolhas singulares: estão entre os filmes que mais dividem os renoirianos).
O segundo bloco traz ainda Louis Malle, um pouco o joker deste programa: da mesma idade de Truffaut, a sua chegada ao cinema representou efectivamente a chegada de uma nova geração e o alvor da nouvelle vague, mesmo que Malle nunca se tenha realmente chegado ao seu epicentro (o filme é o célebre Fim de Semana no Ascensor, Jeanne Moreau, a noite de Paris, e muito Miles Davis na banda musical); e Jacques Becker, verdadeiramene um cineasta inqualificável, adepto do cinema de género que fez um pouco de tudo, tão à vontade na rua como no estúdio, discípulo de Max Ophuls (foi ele quem completou o derradeiro Ophuls depois da morte súbita do realizador), e peça central na exposição da "política dos autores" tal como Truffaut a definiu num artigo crucial. Dele veremos dois soberbos filmes: Aquela Loira, de 1952, um melodrama de época, e O Último Golpe, de 1954, um policial com Jean Gabin e Lino Ventura.
Depois há os bem conhecidos Robert Bresson (Pickpocket) e Jean Cocteau (O Testamento de Orfeu), que não precisam de muitas apresentações ou elogios. Mas deve frisar-se a presença no programa de Marcel Pagnol (com dois filmes: La Femme du Boulanger e La Fille du Puisatier, do final dos 30), e de Sacha Guitry (também com dois filmes: Mon Père Avait Raison, de 1936, e La Poison de 1951). Durante muitos anos foram desconsiderados, remetidos para o campo do "teatro filmado", vistos como dramaturgos que filmavam, de qualquer maneira, as suas próprias peças. O erro de avaliação precisou de anos para ser desmontado: é justamente na assunção do artifício teatral (no caso de Pagnol, diluido no naturalismo "regional" sulista; no caso de Guitry exacerbado até à auto-irrisão) que se encontra o génio deles. Guitry, oriundo da aristocracia teatral parisiense, até desprezava o cinema, que via como mero "teatro em conserva". O contrário do "cinéfilo", portanto, e terá sido o caso em que o "ódio ao cinema" se revelou mais produtivo. Para Guitry o cinema é só "teatro", quer dizer, oralidade, palavras, encenações, máscaras e representações - o espelho perfeito, afinal, da "boa (e menos boa) sociedade" que incessantemente filmou. Estes dois filmes (e La Poison deve ser o filme mais cínico, mais misantrópico alguma vez feito, daquele género em que o riso é a única resposta possível perante a devastação humana), para quem não conheça nada do autor, podem bem ser a maior revelação do ciclo.