Boris Johnson demite-se e deixa o Governo de May em estado de emergência
Ministro dos Negócios Estrangeiros, defensor de uma saída mais radical da UE, afirma que o país "está a caminho de se tornar uma colónia". Sucede-lhe Jeremy Hunt, até aqui ministro da Saúde. Theresa May pode ter de enfrentar moção de censura no Partido Conservador.
A luta interna no Governo britânico pelo direito a usar o crachá do "Brexit" com mais legitimidade chegou esta semana ao seu ponto de ruptura, com os pedidos de demissão de dois pesos-pesados da equipa de Theresa May, ambos defensores de uma saída sem grandes concessões à União Europeia.
A porta começou a bater no domingo à noite com a saída do ministro responsável pelas negociações com Bruxelas, David Davis. Mas foi o anúncio da demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, esta segunda-feira, que fez soar todos os alarmes no Reino Unido: com estas demissões, não só o futuro do "Brexit" fica ainda mais confuso, como a liderança da primeira-ministra britânica volta a ficar tremida.
As duas importantes saídas – a que se soma a do adjunto do ministro do "Brexit", Steve Baker – começaram a ganhar forma na sexta-feira, quando Theresa May reuniu os seus ministros em Chequers, a residência de férias dos primeiros-ministros britânicos.
Durante o fim-de-semana, até à notícia da demissão de Davis, pouco se soube publicamente sobre as acesas discussões entre os apoiantes do "hard Brexit" (antieuropeístas e eurocépticos, como Davis e Johnson) e do "soft Brexit" (antigos defensores da permanência na UE, como May) na reunião de sexta-feira. A ideia geral era a de que Theresa May conseguira unir o seu Governo à volta de um plano concreto, visto como um "Brexit pragmático" – uma solução a meio caminho que assenta na criação de uma zona de comércio livre com a UE para bens industriais e agrícolas, dando ao Parlamento britânico a palavra final sobre que regras europeias são incorporadas na lei britânica.
Mas o que May entende por pragmatismo, Davis e Johnson entendem como concessões inaceitáveis. E, ao retirar algumas das linhas vermelhas nas negociações com Bruxelas, na sexta-feira, a primeira-ministra encostou à parede os seus principais rivais internos na questão do "Brexit".
Clarificar posições
Para a imprensa britânica, um episódio em particular sugere que May forçou uma clarificação sobre o "Brexit" no seu Governo, o que levou às demissões de Davis e Johnson. À entrada para a reunião de sexta-feira, os ministros foram obrigados a deixar os seus telemóveis à entrada – e o editor de Política da Sky News, Faisal Islam, disse que o ministro do "Brexit" se irritou quando ficou a saber, "depois de ter recebido de volta o seu telemóvel", que a história nos media era a de uma suposta vitória de May nessa reunião.
Lá dentro, já Boris Johnson tinha deixado bem claro o que achava do plano da sua primeira-ministra, comparando-o a um plano para "polir um monte de esterco", durante uma violenta intervenção que se prolongou por seis minutos.
Esta segunda-feira, horas depois de ter anunciado a demissão e antes de ser substituído por Jeremy Hunt (que ocupava a pasta da Saúde desde 2012), Boris Johnson explicou o que o levou a bater com a porta: "O Reino Unido está a caminho de se tornar uma colónia."
"O problema é que eu fui praticando as palavras [do plano de May] durante o fim-de-semana e percebi que elas ficavam presas na garganta. Como não posso, em consciência, defender estas propostas, cheguei à conclusão de que tenho de sair", escreveu Johnson, que muitos esperam vir a apresentar-se como alternativa a Theresa May na liderança do Partido Conservador.
Numa declaração repleta de dramatismo, Johnson conclui que "o sonho do 'Brexit' está a morrer, sufocado por uma insegurança desnecessária".
Agora, falta saber quem irá lucrar com esta clarificação sobre o "Brexit": Theresa May, mantendo-se na chefia do Governo e já sem as vozes mais críticas; ou Boris Johnson e os seus seguidores, se pelo menos 48 dos 316 deputados tories derrubarem a sua líder numa moção de censura, provocando eleições internas e uma outra clarificação – sobre que "Brexit" quer, afinal, o Partido Conservador.
Para além dos opositores internos, May tem também o Partido Trabalhista a pedir a sua demissão. Esta segunda-feira, na Câmara dos Comuns, o líder dos trabalhistas, Jeremy Corbyn, voltou a apresentar-se como o mais indicado para gerir o "Brexit" e deixou um desafio: "O Governo tem de se recompor e de negociar rapidamente, e se não conseguir fazê-lo, deve dar lugar a quem consegue."
Pelo menos nas sondagens, o futuro de Theresa May não é brilhante. Segundo a SkyData, 64% dos inquiridos não confiam na primeira-ministra para garantir o melhor acordo possível sobre o "Brexit", contra apenas 22% a favor de May.
UE quer "continuar a trabalhar"
Em Bruxelas imperava o silêncio – e aparentemente a calma – face aos desenvolvimentos em Londres.
O porta-voz da Comissão Europeia, Margaritis Schinas, informou os jornalistas sobre os contactos entre o presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, e a primeira-ministra britânica, que deu conta por telefone do compromisso fechado com o seu Governo e dos contornos do plano estabelecido para as negociações da relação futura entre os dois blocos.
"O telefonema aconteceu no domingo às cinco da tarde", revelou Schinas, que atirou a apreciação formal da proposta britânica para depois da divulgação do relatório de 120 páginas prometido por Downing Street para quinta-feira.
E acrescentou que, independentemente da demissão de Davis, a equipa da Comissão para o "Brexit", liderada pelo veterano diplomata francês Michel Barnier, continuaria envolvida no processo negocial com Londres, "com a mesma boa vontade que até aqui". Para o lugar de Davis foi nomeado Dominic Raab, um eurocéptico que estava no Ministério da Habitação.
Um facto que nenhum dos jornalistas britânicos em Bruxelas se esqueceu de sublinhar esta segunda-feira foi que desde o início deste ano, Davis passou apenas quatro horas reunido com Barnier.
Seria por isso que a Comissão estava tão indiferente à sua saída? "Para nós não é um problema. Estamos aqui para trabalhar. Temos um calendário apertado e todos sabem disso", disse Margaritis Schinas.
Pressionado pela imprensa britânica para fazer qualquer outro comentário sobre o ex-ministro britânico ("Talvez um tributo ao senhor Davis e à sua diligência durante as negociações, ou algo similar sobre as suas competências intelectuais ou o seu compromisso com o processo"), o mesmo porta-voz disse que já tinha dito tudo o que havia para dizer.
Mais sanguíneo, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, comentou a sangria no Governo britânico à margem de uma cimeira entre a UE e a Ucrânia, notando que "os políticos vão e vêm, mas os problemas que eles criam têm de ser resolvidos".
"A confusão provocada pelo 'Brexit' é a maior trapalhada na história das relações entre a UE e o Reino Unido e a questão está longe de estar resolvida", frisou, lamentando que "infelizmente a ideia do 'Brexit' não tenha caído tal como Davis e Johnson".
Ao seu lado, Jean-Claude Juncker considerou a demissão de Davis como "uma prova de que existia unidade do Governo" em Chequers – uma declaração que imediatamente fez levantar os braços dos jornalistas para um esclarecimento que Juncker não fez.