Antes de mudar o sexo no registo, Daniela preservou esperma
Começam a chegar pessoas “trans” aos centros de preservação de fertilidade. No ano passado, seis decidiram preservar esperma ou ovócitos.
O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida só tem um dado sobre este assunto: “Seis pessoas transgénero preservaram o seu potencial reprodutivo em 2017." Daniela Bento deu “uma grande volta” para abrir caminho. O sistema nem admitia a possibilidade de uma mulher preservar esperma.
À partida, parecia simples. Em Portugal, a criopreservação de gâmetas é praticada há anos. Se uma pessoa tem de sujeitar-se a tratamentos que provocam infertilidade e deseja ter filhos, o médico pode encaminhá-la para um centro de preservação da fertilidade do Serviço Nacional de Saúde. No caso dos homens, há que congelar uma amostra de esperma a baixas temperaturas. Ora, o tratamento hormonal que Daniela Bento se preparava para iniciar provoca infertilidade.
Em Julho de 2015, aquela engenheira de Software e Astrofísica já tinha tudo para mudar o nome e a menção ao sexo na conservatória do registo civil e para avançar para a tratamento hormonal: mais de 18 anos, algum dinheiro e um diagnóstico de disforia de género confirmado por dois profissionais de saúde.
Havia só uma maneira de fazer criopreservação sem custos: ser acompanhada pelo Serviço Nacional de Saúde. Foi ao médico de família, que a encaminhou para o Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que haveria de fazer um relatório e de a encaminhar para o Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina Reprodutiva.
Um diagnóstico de saúde mental
Os serviços estavam habituados a preservar o potencial reprodutivo de pessoas com doenças oncológicas, mas nunca se tinham deparado com uma pessoa “trans” a afirmar que queria acautelar a possibilidade de vir a ter filhos biológicos. “Não havia registo de nenhuma pessoa ‘trans’ que o tivesse feito. Eu só tinha ouvido falar num rapaz ‘trans’ que fez preservação de ovócitos no Porto. De mulheres ‘trans’ a fazer preservação de esperma nunca tinha ouvido falar. Eles também não.”
Havia um problema de base. O sistema não previa a possibilidade de uma mulher querer preservar uma amostra de esperma. E o que lhe valeu foi saber disso antes de mudar o nome próprio e a menção ao sexo nos documentos. “Tive de adiar a mudança de nome para poder fazer este processo.”
Não era só o nome. O diagnóstico de disforia de género e o pedido do endocrinologista não pareciam suficientes. “Como o diagnóstico ‘trans’ é de saúde mental, não é de saúde física, diziam que não me podiam registar”, conta. Teve de ir ao gabinete do cidadão fazer uma exposição de defesa do seu direito.
Enquanto esperava, ia percebendo como aquela sua vontade de salvaguardar a possibilidade de ter filhos intrigava outras pessoas. “Ainda que fosse possível criopreservar nalgum hospital, eu teria sempre um problema”, salienta. “Se tivesse uma relação com um rapaz e quisesse ter filhos biológicos com um rapaz, não havia barrigas de substituição, logo não podia usar o meu material genético”, prossegue. “Se tivesse uma relação com uma rapariga, como a homoparentalidade não era reconhecida, eu também não podia usar o material genético.”
Cresceu no seio de uma família conservadora do Ribatejo. “A minha mãe, durante muito tempo, desejou que eu me casasse e que tivesse crianças, só que eu não cresci nesse sentido", diz. "Sinto-me de uma forma diferente. O meu modelo relacional é diferente. A minha orientação sexual também é um bocadinho ampla...”
Tem uma expressão de género variada. Não é heterossexual, nem homossexual. Identifica-se como pansexual, o que quer dizer que pode apaixonar-se por homens, mulheres e “trans”. E como anarco-relacional, o que significa que não é de estabelecer fronteiras entre amizade e relação amorosa.
Não desistiu. “A lei está assim, estas discussões mais cedo ou mais tarde aparecem, nunca se sabe quando é que muda”, pensou. Haveria de chegar a altura em que, se quisesse, mandaria descongelar a amostra de esperma. E os espermatozóides poderiam ser transferidos para o útero de uma mulher ou usados para fecundar óvulos através de técnicas de procriação medicamente assistida.
A lei deu um salto no Verão de 2016, abrindo-se aos casais de lésbicas: “Podem recorrer às técnicas de procriação medicamente assistida os casais de sexo diferente ou os casais de mulheres, respectivamente casados ou casadas ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil e da respectiva orientação sexual.” Já há casos até de fertilização recíproca. As barrigas de substituição, essas, é que se mantêm num impasse.
Daniela Bento conseguiu conservar o seu potencial reprodutivo ao fim de seis meses, isto é, já em Fevereiro de 2016. “Primeiro, deram-me um nome, um papel com uma lista de condições com um papel colado a atrás a dizer que no meu caso não era aplicável nada daquilo”, recorda. “Depois chamaram-me lá, redesenharam-me o contrato, entregaram-me uma coisa já bem feitinha, a dizer que eu era portadora daquele material genético e que o podia usar.”
"Uma camada de preconceito"
Como é que se explica que nunca antes outra pessoa “trans” tivesse feito tal pedido? “Este não é um assunto em que, por norma, os médicos toquem”, considera. “Parte-se do princípio que uma pessoa ‘trans’ não vai querer ter filhos”, observa. Viu isso com um psiquiatra clínico a quem pediu um diagnóstico de disforia de género. “Achava que, por querer preservar espermatozóides, queria manter a minha masculinidade, não era ‘trans’ o suficiente. Há uma camada de preconceito enorme.”
Daniela Bento não fala só em nome próprio. Faz parte da direcção da ILGA-Portugal. Coordena o GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção Trans . Conhece inúmeras pessoas ‘trans’. “Pergunto se o médico deu essa informação. Se não deu, eu explico que é possível”, afiança. “Como os médicos raramente falam nisto, as pessoas não sabem. E eu explico que, se querem fazer isto, façam antes de começar o tratamento hormonal. Quando começam a fazer hormonas já não convém, porque tem de se parar a medicação e tudo mais. E o que reparo é que algumas pessoas têm medo de falar nessas coisas com os médicos. Pensam que os médicos podem cancelar o processo.”
Há toda uma história. Até 2011, em Portugal só era possível mudar o nome próprio e a menção ao sexo nos documentos depois de fazer a esterilização. Segundo o Trans Rights Europe Map 2018, ainda é assim em 14 países do continente europeu, sete dos quais membros da União. Em Abril do ano passado, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos afirmou que impor esterilização no reconhecimento legal de género é uma violação dos direitos humanos. E exortou todos os Estados-membros do Conselho da Europa a adequar a legislação para cumprir este princípio.
Em 36 dos 41 países ainda se requer um diagnóstico de saúde mental. Portugal está a caminho de deixar de ser um deles. A lei da autodeterminação de género – que o Presidente da República vetou no dia 9 de Maio que que no próximo dia 12 de Julho volta a ser discutida na Assembleia da República – separa o procedimento administrativo do clínico, reconhece a autodeterminação de género, deixa de exigir relatórios médicos a quem só quer alterar os documentos. E Daniela Bento lutou por isso.
“As pessoas ‘trans’ também têm direito a usufruir de parentalidade”, enfatiza Daniela Bento. “Se as pessoas cis [que se identificam com o sexo que lhes foi atribuído à nascença] podem, as pessoas ´trans’ também devem poder. O que é preciso é estarem informadas e terem acesso a métodos.”
Conta agora 31 anos, quase 32. Continua sem nada decidir sobre parentalidade. “Quando pensei nisto foi: não é uma coisa invasiva, não é uma coisa difícil, mal não fez, o pior que pode acontecer é não usar”, descreve. Se decidir não usar aquela amostra de esperma que está conservada a baixas temperaturas num banco do hospital, o material pode sempre ser aproveitado pela ciência.
“Alguma vez esse material vai ser realmente usado?”
Uma mulher "trans" a querer usar esperma que preservou antes de iniciar os tratamentos de mudança de sexo? “Quando surgir o primeiro caso vai ser interessante”, diz Carlos Calhaz Jorge, chefe de Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Santa Maria e membro do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. Algo parece-lhe certo: quando surgir a primeira candidatura, “o centro que a receber terá de pedir ao Conselho Nacional para se pronunciar”.
É “raro” haver pessoas “trans”, mais ainda que se sujeitem aos tratamentos hormonais e às cirurgias de redesignação de sexo. E é “raríssimo” haver quem queira preservar gâmetas antes disso. O Conselho Nacional contou meia dúzia de casos no ano passado. E o Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução que dirige foi um dos primeiros a ter essa experiência.
Quando uma pessoa “trans” avança com um pedido de preservação de gâmetas, “é preciso avaliar a capacidade de resposta”, explica o especialista. Há um sistema de prioridades. “Se houver uma catadupa de homens com doença oncológica [que queiram preservar esperma], eles têm prioridade”, exemplifica.
Há um outro lado da equação. “Alguma vez esse material vai ser realmente usado?”, questiona. A lei, aprovada em 2016, tem permitido várias interpretações. E são longas as listas de espera formadas, sobretudo, por casais heterossexuais que se debatem com problemas de infertilidade.
Para já, não há nada na lei que impeça uma mulher “trans” lésbica que preservou o seu esperma de o usar com uma companheira. No Serviço Nacional de Saúde, já há histórias de casais de mulheres que recorreram a fertilização recíproca. Usando um dador de esperma, conjugam os óvulos de uma e o útero da outra. “Nesse caso não haveria doação, seria intraconjugal”, observa.
Há que esperar pelo primeiro pedido. Calhaz Jorge não acredita que um Centro de Procriação Medicamente Assistida avance sem consultar o Conselho Nacional. “Isso é garantido por ser uma coisa tão fora do comum e sem antecedentes”, remata.