Desmascarar o colonialismo português dentro e fora de um contentor
Até 29 de Julho, o Teatro Experimental do Porto apresenta na Praia do Homem do Leme uma instalação e um programa de conferências em que se procura desmontar a historiografia oficial da colonização e discutir as suas heranças.
Em 2019 assinalam-se os 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães, descrito nos livros de História como um dos grandes navegadores portugueses. Além de supostamente ter provado que a terra é redonda, foi também pioneiro em várias práticas criminosas, como queimar aldeias de indígenas ou roubar e enclausurar as suas populações, sempre com a Cruz de Cristo ao seu lado, já que destruir as religiões locais também fazia parte da sua “missão civilizadora” (e não, não deu a volta ao mundo como muitas vezes se ensina, pois morreu a meio da viagem).
Nada disto está nos livros de história escolares, apesar de aparecer escrito, ainda que com alguns eufemismos, em relatos das viagens marítimas do século XVI. Mas está na fanzine do NAU!, projecto multidisciplinar desenvolvido pelo Teatro Experimental do Porto (TEP), que até 29 de Julho se dedica a falar sobre as verdades omitidas da expansão-invasão e do colonialismo portugueses, dentro e fora de um contentor estacionado junto à Praia do Homem do Leme, no Porto.
À boleia do programa municipal Cultura em Expansão, e através de um conjunto de actividades de acesso gratuito que incluem conferências, concertos e uma instalação, o TEP antecipa as celebrações dos 500 anos da circum-navegação de Magalhães para “trazer à tona o avesso” da historiografia oficial, uma historiografia exemplarmente e perversamente higienizada, adulterada, romantizada. Como disse a artista e escritora Grada Kilomba em entrevista ao PÚBLICO, a história do colonialismo português é também uma “história de tortura, genocídio, desumanização, exploração patriarcal”.
O NAU! começou a germinar há dois anos, quando o TEP levou o espectáculo Casa Vaga ao Festival de Artes Cielos del Infinito, em Punta Arenas, na Patagónia chilena, que fica precisamente junto ao Estreito de Magalhães e onde se encontra uma estátua do navegador, também conhecido lá fora por Ferdinand Magellan. “O director do festival, o Antonio Altamirano, disse-me que seria muito interessante começar a fazer um programa que colocasse o sul do mundo no mapa”, explica Gonçalo Amorim, director artístico da companhia. “Pensámos em aproveitar a circum-navegação e as comemorações que se estão aproximar para conseguir alterar algumas das palavras recorrentemente usadas quando se fala neste assunto: a ideia da ‘descoberta’, dos ‘descobrimentos’. Alterar o paradigma de que o sul do mundo estava mais do que necessitado de civilização.”
O elemento aglutinador do NAU! é o contentor que funciona como uma instalação “imersiva que procura também a emersão”, concebida por Catarina Barros e Cristóvão Neto. Lá dentro, parte do dispositivo está forrado com sacos de especiarias, numa referência às rotas de Fernão de Magalhães. Os rasgos de luz no tecto ensaiam uma aproximação esteticizada aos porões dos navios e o som tenta provocar uma espécie de desequilíbrio, de desfasamento. O que se passa no interior é gravado e reproduzido no exterior do contentor, que não surgiu aqui por acaso. “Partimos do [livro] The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study [de Fred Moten e Stefano Harney], que fala da conteinerização de corpos. A movimentação de pessoas dentro de contentores nunca desapareceu, desde o colonialismo à escravatura, passando pelo tráfico de migrantes”, nota Gonçalo Amorim.
“A ideia é fornecer informação ao espectador para contrapor às narrativas que já se tem destas viagens”, acrescenta Raquel S., também da direcção artística do NAU!. “Por um lado tens esta versão sensorial da instalação, por outro lado tens as conferências e a fanzine. É um conjunto articulado.” Na fanzine, um dos objectivos foi compilar momentos que passaram “na peneira da história”, assinala Raquel S. “Temos noção do nosso lugar de fala privilegiado — a equipa artística deste projecto é branca, ocidental, com alguns recursos financeiros —mas há aqui uma questão importante que é fazer o papel de olhar para a narrativa que foi escrita e sublinhá-la, riscá-la, fazer saltar a sua parte criminosa.” E, pelo caminho, desmontar imagens glorificadas que “foram construídas sobre o sangue dos outros.”
Passado também presente
O programa de conferências — que acontecem aos fins-de-semana, a partir das 19h, na esplanada improvisada à volta do contentor — é um eixo central deste projecto. A par da fanzine, é também a forma mais clara de perceber como o que aconteceu lá atrás enformou e continua a enformar o presente. “A premissa fundamental é levantar questões normalmente invisibilizadas. Não são questões pessoais. O racismo, por exemplo, afecta muitos portugueses e isso é resultado de 500 anos de colonialismo e desse poder simbólico”, diz Gonçalo Amorim.
As conferências arrancam este domingo com Elísio Macamo, professor de estudos africanos na Universidade de Basileia. O título da sua apresentação, Ver Com Um Olho, parte de uma referência a Luís de Camões para problematizar as visões parciais da historiografia portuguesa no que toca à chamada expansão marítima. Ao sociólogo moçambicano seguem-se Jota Mombaça, Marta Lança, Manuela Ribeiro Sanches, Rita Natálio e Mamadou Ba.
No dia 28, a artista e investigadora Rita Natálio estreia a performance-conferência Geofagia, em que se propõe a pensar o colonialismo “num sentido mais amplo, a partir do gesto extractivista da terra e dos corpos que são desqualificados de uma noção de humanidade”, adianta ao PÚBLICO. “Pensei na geofagia, ou seja, na ideia de comer terra, que tanto está presente de uma forma mitológica em algumas culturas, nomeadamente indígenas; como na prática da extracção criada pela colonização, continuada hoje; e ainda, no contexto da escravatura, o comer terra como forma de suicídio.”
Activando leituras de textos de autoras e autores como Macarena Gómez-Barris, Elizabeth A. Povinelli ou Fred Moten, a performer quer “assumir” que “as práticas iniciadas na pré-modernidade com o estabelecimento das viagens marítimas” são “a base” do que acontece hoje. “Quando se faz um projecto como o NAU! a ideia não é só relembrar. É pensar aqui, hoje, que o racismo e o extractivismo vêm de um projecto colonial. E pensar o que é, de facto, descolonizar.”
O que significa descolonizar? é, justamente, o mote (e o dilema) da conferência de dia 15, da performer e ensaísta brasileira Jota Mombaça, que colaborou com Rita Natálio no espectáculo Antropocenas (2017). “Descolonizar significa o fim de um certo mundo”, introduz Jota Mombaça. “Significa um trabalho continuado, muito implicado e cuidado para acabar com o mundo construído graças e através da colonização, ou seja, através da destruição de uma série de outros mundos que não puderam vir a acontecer ou que foram interrompidos de acontecer. Mas também graças à actualização do colonialismo: falo do imperialismo, do neoliberalismo, de todas essas forças neo-coloniais que se actualizam no presente em várias partes do mundo.”
Jota Mombaça acredita que o debate público sobre estes temas em Portugal “está a querer sair do espaço da negação”, o que é “importante”, mas ainda é dominado e protagonizado, na sua maioria, por pessoas brancas com determinadas posições de poder. “Esse centramento das vozes brancas revela um medo grande de deixar que certas narrativas emerjam, nomeadamente as narrativas negras e afro-portuguesas, e que evidenciem, sem retoques, o que sustenta essa subjectividade branca portuguesa.”
Mais do que os indivíduos, o problema é “uma episteme branca”, nota a performer — e criticar a branquitude “é mais fácil, ou mais possível, de um lugar de branquitude, no sentido em que a branquitude é, no geral, o lugar de fala e de escuta”.
Descolonizar, sublinha Jota Mombaça, passa também por “desmontar essas posições”. Perder espaço, dar vazão para que “outros corpos venham à tona”. Como diz a escritora feminista bell hooks, importa “interromper e transformar” a história com novos discursos.