Fora de brincadeiras: para Cristina De Middel, a fotografia já só está bem à beira do precipício

No campeonato em que a artista espanhola joga, já há um resultado apurado: Realidade 0 - Fotografia 1. Viagem alucinante pelas cinco exposições que escolheu para o PHotoEspaña.

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Empieza por el principio... Y sigue hasta llegar al final: allí te paras Colectiva. Comissária: Hester Keijser CentroCentro. Até 16 de Setembro Jan van der Til. Book XI, 2018

O contraste não podia ser maior. Entre as trevas densas da primeira parte da celebração dos 20 anos do PHotoEspaña, no ano passado, e o jogo esfuziante da segunda parte, este ano, há uma distância programática que parece ligada apenas por duas tangentes: uma, muito óbvia, a fotografia; outra, talvez previsível, a descontracção (pelo menos aparente) com que tanto Alberto García-Alix como Cristina de Middel levaram por diante a sua empreitada. Dois destinatários que transformaram outras tantas cartas brancas em exposições memoráveis, que ousaram olhar tanto para autores pouco óbvios como para aqueles cuja chama criativa se mantém acesa há muito. E no meio de tudo isto, um dos principais aguilhões que teima em não deixar de espicaçar a produção fotográfica contemporânea, onde e como quer que se faça: a verdade (ou os atalhos espinhosos para se tentar chegar até ela).

Se o que vimos no ano passado corresponde a um legado ancorado no valor documental (ainda que, por vezes, transgressor) da imagem fotográfica, aquilo que Cristina de Middel propõe este ano, em linha com o que tem feito como fotógrafa desde o sucesso de The Afronauts (2012), é a afirmação de uma abordagem pós-fotográfica que considera a realidade um mero trampolim para um salto no infinito campo da ficção, estratégia que, para Middel, é hoje o melhor caminho para justamente melhor compreender… a realidade. Não se trata apenas de um campo que se alimenta da edição, reinterpretação e apropriação das imagens já disponíveis (na Internet, nos arquivos, no lixo, nas gavetas…), mas sim de uma prática que “de uma maneira muito subtil transforma a realidade em algo mágico, sem deixar de ser credível” (Middel).

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Gran Final Mundial Hicham Benohoud, Miguel Calderón, Ana Hell, Jason Fulford, Robert Zhao Renhui, Prue Stent y Honey Long Comissária: Cristina de Middel Fernán Gómez. Centro Cultural de la Villa. Até 29 de Julho Hichan Benohoud

Num dos primeiros ensaios que problematiza um panorama onde “o mundo real está cheio de câmaras” e “o mundo virtual cheio de imagens”, o crítico e jornalista Robert Shore indagou sobre qual será agora o lugar dos artistas que usam a fotografia (haverá tal sítio?). Na capa de Post Photography: The Artist with a Camera (Laurence King, 2015) colocou uma fotografia de The Afronauts de Cristina de Middel, como se quisesse afirmá-la como a ponta-de-lança de uma “nova” (?) linguagem fotográfica feita sobretudo em reacção à era digital do “tudo-é-possível” e do “tudo-já-foi-feito-antes”.

Se por um lado Cristina não se põe em bicos de pés a reivindicar qualquer protagonismo na onda de “ficção realista” (ou será “realismo ficcionado?”) que contaminou a prática fotográfica contemporânea, por outro não enjeita a oportunidade de usar as possibilidades da imagética “encontrada” como matéria-prima tanto da sua prática fotográfica (mais raramente), como desta sua mais recente experiência como comissária de um dos mais importantes festivais de fotografia da Europa.

Realidade 0 – Fotografia 1

O título provocatório que Cristina de Middel dá ao seu texto de apresentação da carta branca, Realidade 0 – Fotografia 1, não podia ser mais claro como tese do seu programa expositivo, situando o leque de artistas e comissários que convidou nos universos do jogo, do lúdico, do ficcional e do alegórico.

De Middel: “A relação entre o jogo – entendido como uma modificação criativa e poderosa da realidade – e a fotografia é mais do que evidente se aceitarmos que os dois estão longe do conceito de verdade. Eu pratico uma fotografia lúdica. Proponho um jogo que questiona as grandes verdades e os costumes para, na minha opinião, compreender melhor o mundo regulado.”

Aquilo que podia parecer à primeira vista um foguetório, é, afinal, uma reflexão tão necessária quanto actual sobre o valor das imagens, o que resta delas enquanto documento (se ainda resta alguma coisa) e o modo como se transformaram quer em adicção, quer em passatempo, onde o desafio é tão-só a distinção entre o que é verdade e o que é mentira.

Cristina De Middel diz que fazer esta carta branca no PHotoEspaña foi “muito divertido” (poderia ser de outra maneira?); e que “é preciso tirar alguma seriedade à fotografia, libertá-la do ácido, sem que fique apalhaçada”. “A selecção de autores que proponho pretende oferecer uma amostra de como a exploração criativa é, hoje mais do que nunca, indispensável”, afirma em jeito de justificação do grupo de artistas (e imagens) que reuniu para esta edição celebratória do festival madrileno.

À beira do precipício

Na imensa sala cravada no subsolo do Teatro Fernan Goméz, a única exposição comissariada apenas por Cristina de Middel (Gran Final Mundial) revela como procurou extensões da sua forma de estar na fotografia, abrindo ramificações para os vários campos da pós-fotografia, tal como descritos por Robert Shore: como o do “algo emprestado, algo novo” (Jason Fulford); o do “todo o mundo é encenado” (Ana Hell e Hicham Benohoud); o da “espionagem ocular” (Miguel Calderón); o das “camadas de realidade” (Robert Zhao Renhui); o das “visões materiais” (Prue Stent & Honey Long). A estes poderia acrescentar-se o do “pós-fotojornalismo”, caso a própria titular da carta branca tivesse participado como fotógrafa na mostra. Ao todo, são seis artistas que mostram “como o jogo [com a fotografia] consegue colocar todo o visível no lugar que merece: à beira do precipício” (De Middel).

Sublinhando um colectivo de artistas vindos de todos os continentes, bem como a paridade entre homens e mulheres (“assim haverá menos críticas e as que aparecerem podem ser mais justas”), De Middel escolheu a espanhola Ana Hell para abrir a corrida, uma artista que descobriu no Instagram. Dela, decidiu imprimir toda a série de imagens da bizarra série Secret Friends, um trabalho em torno da representação do corpo no qual a artista pede, durante as suas viagens pelo mundo, a pessoas que se dobrem sobre si mostrando as costas, onde são pintadas as mais variadas representações faciais e colocados todo o tipo de adereços (cabeleiras, bigodes, barba…). Vistas em conjunto, as imagens parecem dar conta de uma invasão de monstros. Nas palavras da comissária, são “um embuste, uma tontice”, ao mesmo tempo que formam “uma série divertida, atrevida, lúdica e obsessiva com a repetição”.

Funcionando como statement que serve para dizer logo à entrada que é o espectador que decide o que quer ver nas imagens, a exposição de Hell provoca estranheza e comprova a opção da comissária por um jogo de altíssimo risco.

Ainda mareados pelas curvas do corpo e pela ilusão de óptica das mais de cem fotografias de Hell, entramos na onda de Jason Fulford, um dos artistas preferidos de Cristina de Middel. As paredes estão pintadas de azul-marinho até uma linha que vai andando para cima e para baixo, instável, como as marés. Não revelando tão imediatamente o tipo de jogo que se pretende jogar, o trabalho de Fulford, que partiu de um espólio vernacular de fotografias de cogumelos, estabelece associações visuais entre estas imagens e outras da sua autoria, onde as formas geométricas e as sombras dominam.

Com o desenho expositivo menos ambicioso desta colectiva, a montagem em mosaico das imagens de Miguel Calderón (“o menino de ouro da arte contemporânea mexicana”) revela como a ambiguidade é um dos factores determinantes nas suas imagens, que andam entre a fotografia vernacular, o registo de apanhados e a caça de absurdos urbanos.

À primeira vista, o absurdo é também a matéria-prima base das duas séries fotográficas de Hicham Benohoud, talvez a melhor exposição dentro desta colectiva. Mas um olhar mais atento leva-nos antes para obras com um pendor performativo, nas quais se investiga a relação que mantemos com os espaços do quotidiano e onde se propõe uma reflexão sobre relações de poder, no caso entre alunos e professor.

Nesta Gran Final Mundial há ainda espaço para o minimalismo obsessivo de Robert Zhau Renhui e as suas investigações pseudo-científicas num instituto de investigação zoológica inventado, na mais exigente exposição do conjunto; e para a problematização dos estereótipos associados ao corpo da mulher e ao feminino, através do trabalho da dupla australiana Prue Stent & Honey Long, onde gigantes painéis colados nos enchem de cor-de-rosa, de pele e de órgãos humanos. Pode não parecer, mas uma das mensagens principais destas artistas – que sendo reivindicativas “não apontam culpados” – é um grito de “chega de cor-de-rosa!”

O Papa e o meteorito

Sendo reivindicativo sem ser activista declarado, Samuel Fosso apresenta uma pequena retrospectiva da sua obra, que, entre outras coisas, joga com os ícones da cultura visual fotográfica apropriando-se deles para que através da estranheza dessa apropriação possa surgir uma oportunidade para se pensar mais sobre o seu significado, origem e contexto. Numa das salas mais imponentes do percurso (“Bem-vindos à igreja, entrem!”, disse o comissário Azu Nwagbog), Fosso apresenta uma das suas últimas séries, o Papa negro, na qual brinca com a possibilidade estatística de haver um chefe da Igreja católica de tez escura. Para Fosso, essa possibilidade é equivalente à queda de um meteorito em cima de cada um de nós. É por isso que a acompanhar os seus auto-retratos como Papa, está lá o tal meteorito. “Samuel não pretende ser um activista, o que mais gosta é de jogar com o poder simbólico das imagens, introduzindo-se nelas como jogador. E intenção é levar-nos a ver o mundo de maneira diferente, fazer-nos parar para pensar, por exemplo na veneração que a cultura audiovisual do presente tem pela mulher e pelo homem brancos. É alguém que questiona aquilo que temos por estável e garantido.”

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Una Odisea africana Samuel Fosso Comissário: Azu Nwagbog Fernán Gómez. Centro Cultural de la Villa. Até 29 de Julho

Se a palavra for agitação, o Archive of Modern Conflict (espécie de respigador da memória fotográfica vernacular do mundo) pode ter uma palavra a dizer. Palavras ou imagens, centenas de imagens, milhões delas. Para a exposição incluída na carta branca de Cristina de Middel o curador Kalev Erickson escolheu o circo como tema, justamente numa altura (“por sorte”) em que se assinalam os 250 anos sobre os primeiros exemplos deste espectáculo na era moderna. Na apresentação, De Middel avisou que era preciso estar preparado para o “bombardeamento de imagens” que a exposição El Mayor Espectáculo del Mundo proporcionaria. Não sendo necessária nenhuma protecção especial, o corredor e os nichos do espaço onde se cravou a tenda deste circo de imagens oferece uma visão caleidoscópica, bem organizada por temas (malabaristas, animais, freaks, palhaços…) num exercício de gosto e de rasgo conceptual, que pretende tornar público aquilo que começou por ser uma paixão, uma obsessão e uma aventura privada.

Já fora do Fernan Goméz, no espaço Centro Centro mais uma das jogadas arriscadas de De Middel, que deu à comissária holandesa Hester Keijser a missão de pôr aqueles que a fotógrafa espanhola considera os maiores jogadores profissionais no campo da fotografia contemporânea: os suíços e os holandeses. Keijser pegou no imaginário de Alice no País da Maravilhas, de Lewis Carroll, sobretudo para lhe roubar o título (Começa pelo princípio… continua até chegar ao fim; aí, pára) e o imaginário – há pequenos sinais alusivos à obra de Carrol nos trabalhos em exposição. O percurso vai sendo pontuado por um pingue-pongue entre artistas de um e de outro país, mediados por vídeos do veterano Roman Signer. Nota-se uma intenção de experimentar o mais possível. Keijser classificou esta exposição como “selvagem”, De Middel diz que é “a mais complexa e a que requer mais flexibilidade mental” da sua carta branca. E ainda Keijser : “Se não perceberam algumas coisas isso é normal, em muitos casos era exactamente isso que estávamos à procura.”

Agora a sério, fora de brincadeiras

A exposição onde a faceta lúdica preconizada por De Middel na sua carta branca mais se sente é aquela onde prevíamos que fosse mais difícil acontecer, Players. Los fotógrafos de Magnum entran al juego. Certo é que o riso ora desbragado ora envergonhado dos visitantes é uma constante e é impossível sair do Espácio Fundación Telefónica sem a sensação de se ter aberto as vias respiratórias com várias gargalhadas, coisa nem sempre fácil de conseguir com a fotografia.

Nomeada no ano passado como candidata a entrar na agência, Middel sabe que o seu campo de criação está longe do da maioria dos fotógrafos da cooperativa. Mais do que isso, é a própria a admitir que o que a move é o “questionamento do valor documental da fotografia”, valor esse que está nos alicerces da agência. No entanto, quis enfrentar esse “fantasma” sem constrangimentos mostrando que no arquivo da Magnum não faltam — desde a sua fundação — trabalhos onde a experimentação e as abordagens conceptuais também faziam (e fazem) parte da prática corrente de muitos dos seus autores. Alertando que não concebeu esta exposição para justificar o seu trabalho ou a sua possível entrada na agência, De Middel procurou um aliado de peso para a curadoria, Martin Parr, ex-presidente da cooperativa, profundo conhecedor do seu arquivo e admirador confesso da fotógrafa.

Por um lado, a ideia que guiou os dois fotógrafos no longo trabalho de pesquisa no arquivo foi a de procurar imagens de todos os autores da agência, onde a ideia de jogo (e também humor, divertimento, caricatura…), fosse mais ou menos nítida. Por outro, tratou-se de “baixar as expectativas que se projectam sobre a agência, mostrando-a descontraída, na intimidade, sem a obrigação de ter que gravar na pedra verdades universais a cada disparo”. Esse propósito é plenamente conseguido nas salas onde se mostram mais de 140 imagens de mais de 40 fotógrafos. Sem afrontar o legado da Magnum, a dupla De Middel/Parr foi capaz de alargar o espectro criativo da agência.

De Middel confessa ao ípsilon que passou muito tempo a trocar emails com Martin Parr por causa desta exposição. Foi difícil, mas no final acabaram de acordo em tudo, menos numa coisa – a inclusão de imagens do fotógrafo britânico, que como co-comissário não queria participar. De Middel foi inflexível e lá conseguiu que Parr incluísse duas fotografias pequenas no final da exposição. Desencontros que fazem parte do jogo.

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