“A câmara fotográfica tem potencial para transformar a realidade em algo mágico, mas sem deixar de ser credível”

O festival PHotoEspaña deu carta branca a Cristina de Middel. Houve logo quem tivesse “medo”. Porquê? Talvez porque seja uma das artistas do momento que mais pensam em dinamitar os alicerces do que (ainda?) resta da fotografia como documento. Irrequieta, prolífica, de gargalhada fácil, a fotógrafa espanhola, nomeada para a agência Magnum, escolheu, para o XX aniversário do festival madrileno, o campo onde se sente melhor: a atitude lúdica perante a fotografia.

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Nani Gutierrez

Cristina de Middel não vê na arte que faz outra coisa que não seja uma extensão de si. Os artistas e curadores que convidou para a carta branca Players, conjunto de cinco exposições que fecha em Madrid a celebração dos 20 anos do festival de fotografia e artes visuais PHotoEspaña, não revelam apenas os seus gostos pessoais, são também uma afirmação de como se coloca perante a vida — não se levando demasiado a sério.

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Cristina de Middel com artistas e comissários do PHotoEspaña. A espanhola não gosta de se levar demasiado a sério: “O sentido de humor não é só uma ferramenta muito eficaz para resolver problemas, mas também para fazer crítica Julio César González. PHotoEspaña

Confessa que preferiu “a intuição e a emoção” ao “estudo académico” ou à tentação de pensar que acrescentaria algo de substancial à história da fotografia. Nada disso. Cristina de Middel gosta de “falar sobre o que sabe”. E gosta de mostrar o que gosta, como se percebeu pelo prazer com que foi apresentando os trabalhos espalhados pelas salas do Teatro Fernán Goméz ou do Espacio Fundación Telefónica, onde se pode ver a exposição que dá nome à carta branca e que junta o trabalho de dezenas de fotógrafos da cooperativa Magnum sob o prisma do jogo, do divertimento, do cómico e do riso.

E riso constante é coisa que não falta a Cristina de Middel, que, no ano passado, viu a sua candidatura àquela agência de fotografia ter luz verde. Isto, “apenas” seis anos depois de ter feito uma exposição nos Encontros de Arles, França, e um livro, The Afronauts, que a lançaram para a ribalta da fotografia contemporânea, depois de anos a trabalhar como fotojornalista.

The Afronauts — cuja narrativa parte da tentativa do excêntrico professor zambiano, Edward Makuka Nkoloso, de colocar o primeiro africano no espaço, em 1964 — foi a rampa de lançamento, mas a fotógrafa espanhola, a viver no Brasil, parece cansada de falar sobre ele. Certo é que boa parte dos seus trabalhos posteriores — e foram muitos — andou na mesma linha ténue entre ficção e realidade, um campo conceptual por onde muitos se têm aventurado, mas onde poucos têm conseguido o reconhecimento, a agitação e a reacção que as suas obras têm merecido. Irrequieta e prolífica, desdobra-se em vários projectos ao mesmo tempo, seja como comissária e editora, seja como fotógrafa e orientadora de oficinas de trabalho.

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Uma mulher vê-se ao espelho em Nova Iorque, em 1969, e o fotógrafo da Magnum Richard Kalvar apanha-a em duplicado. É uma das fotografias da exposição Players, concebida pela dupla De Middel/Parr Richard Kalvar. Magnum Photos

Conversa em assentos precários, numa sala escaqueirada do velho edifício da Tabacalera de Madrid, onde havia um sofá cor-de-rosa todo roto, mas cheio de balões luzidios.

A primeira pergunta que lhe quero fazer é um pouco inevitável.
Oh não, The Afronauts.

Não, não, The Afronauts aparecerá mais à frente.
Tudo bem [risos]!

É que no texto de apresentação desta carta branca no PHotoEspaña tem uma provocação a quem faz perguntas aos fotógrafos. Diz que se pergunta muitas vezes “Como é que começou na fotografia?”, mas que o interessante seria perguntar: “Por que continua na fotografia?” Devolvo esta pergunta e acrescento um ponto: por que continuou na fotografia depois do fotojornalismo?
Sempre gostei de fotografia. O fotojornalismo foi uma porta de entrada. Depois continuei com a fotografia fora do jornalismo. O que se passa no fotojornalismo é que, muitas vezes, perde-se o gosto pela fotografia.

E acha que isso acontece porquê? Por causa da rotina?
Sim, mas também porque se passa o tempo a fazer fotografia para os outros. Não se faz fotografia para nós. Imagino que para os jornalistas da escrita seja um pouco a mesma coisa. Há os que gostam de escrever e os que copiam notas de imprensa.

Mas porque é que continuou com a fotografia?
Continuei porque decidi dar um tempo à profissão quando estava a chegar a uma fase de resignação, aceitando fazer o que me pediam e mais nada. Ou seja, decidi tirar um ano sabático para perceber o que ainda restava de mim. E foi nessa ocasião que tive as melhores ideias, que fui desenvolvendo ao longo dos últimos anos, até que estamos aqui: tu e eu, a falar.

Quando aconteceu essa pausa?
Saí dos jornais no final de 2010. Depois fui para a China e andei por vários outros lugares durante um ano.

Pelo reconhecimento que o trabalho tem tido, esse ano sabático parece ter resultado...
Sim. Foi muito produtivo [risos].

No ano passado, o PHotoEspaña convidou o fotógrafo Alberto García-Alix para comissário da carta branca e este ano surge outra vez uma comissária vinda da prática fotográfica. Acha que os fotógrafos têm alguma vantagem sobre os demais enquanto comissários?
Como qualquer artista na sua disciplina, tem um ponto de vista diferente. Creio que é menos analítico, mais intuitivo e emocional. Quando me convidaram para fazer esta carta branca não me senti tentada a fazer qualquer estudo académico ou acrescentar algo à história da fotografia. Quis antes escolher aquilo de que gosto. A carta branca tem esta vantagem. Acho que nas minhas escolhas há menos análise e mais intuição e emoção. Foi um exercício onde tentei ser menos académica, teórica ou sisuda. Não me atreveria a fazer discursos sobre aquilo que não sei. Por isso, o leque de exposições que escolhi espelha aquilo de que posso falar, aquilo que posso acrescentar — uma atitude lúdica em relação à fotografia.

O trabalho de Ana Hell que abre a colectiva no Teatro Fernán Goméz tem um lado surrealista que pode ser entendido como afirmação-tese do que vamos ver a seguir. Interessa-lhe o surrealismo?
Sim. Mas não sou perita. Não poderia dar 40 nomes de artistas surrealistas. No campo da literatura interessa-me o realismo mágico. A câmara fotográfica tem um enorme potencial para, de uma maneira muito subtil, transformar a realidade em algo mágico, mas sem deixar de ser credível. O trabalho da Ana é como uma declaração de intenções sobre o que se pode encontrar nas restantes exposições.

Nos últimos anos a fotografia vernacular tem marcado presença nos vários campos da fotografia. E ela faz parte do seu programa de exposições. Como vê este crescendo de interesse por este universo visual?
Creio que faz todo o sentido. Estamos a viver um tempo de democratização total da fotografia, estamos a gerar uma quantidade gigante de imagens, actos quotidianos banais que são registados e lançados para o mundo. A fotografia vernacular tem um encanto particular e, de certa maneira, é um espelho dessa extraordinária democratização.

O trabalho de Samuel Fosso (Kumba, Camarões, 1962) parece caricaturar a iconografia dominante para nos pôr a pensar no valor das imagens. Por que decidiu dedicar-lhe a única exposição individual da sua carta branca?
Por um lado, porque queria ter um nome consagrado que não fosse do habitual círculo artístico ocidental do hemisfério norte. Apesar de ser um nome firmado, é um grande desconhecido. Tem um corpo de trabalho que fala por si — é quase só trazê-lo, mostrá-lo e já está. A ligação de Fosso com a temática desta carta branca é clara. Era um nome lógico. Joga com temas sensíveis. Se fosse um autor branco, americano, francês ou português a fazer a série do Papa negro, teria uma leitura distinta. O que se passa é que Fosso está empenhado em fazer a autobiografia, o auto-retrato de África.

Para outra das exposições convidou uma curadora, Hester Keijser, que faz um pingue-pongue entre fotógrafos suíços e holandeses. O que é que se passa nestes dois universos fotográficos que tanto a surpreendem?
Bem, acho que me surpreendem a mim como a qualquer pessoa que esteja atenta ao que se vai fazendo de novo na fotografia contemporânea. A Suíça e a Holanda são as duas fontes fundamentais de inovação e atrevimento na fotografia actual.

E ironia...
Ironia, sim, mas... em Espanha e Portugal, por exemplo, somos mais de fazer piadinhas. O que se passa na Suíça e na Holanda é que eles são jogadores profissionais. A sua profissão é questionar e romper as bases da fotografia para ver até onde é que ela pode ir. E fazem isto não tanto para conseguir uma graça, uma piadinha, mas com a intenção de dinamitar de forma irreverente o que até aqui entendíamos como fotografia. É uma exposição bizarra, mas creio que também necessária.

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Cristina de Middel e Martin Parr, fotógrafo da Magnum, durante a inauguração da exposição que os dois comissariam; um olhar para o arquivo da agência à procura dos fotógrafos que registaram, subtilmente, a ideia de jogo

E o resgate do arquivo mais humorístico da Magnum pode ser visto como uma provocação à ideia que a agência tem de si hoje?
Creio que é mais uma provocação à audiência, àqueles que pensam que a Magnum é uma determinada coisa. A agência sabe bem quem é. O que se passa é que vivemos num mundo sempre pronto a simplificar e a etiquetar as coisas. A ideia da exposição não é romper com o seu legado. É dizer que há um legado, mas também há tudo o resto. A Magnum é uma casa enorme e normalmente só visitamos um quarto. Mas há muitas salas, umas pequenas, outras não. O arquivo da agência é muito surpreendente.

Depois de The Afronauts, já publicou mais nove livros. O que é que a fascina neste suporte?
O facto de ter o controlo sobre todas as etapas. Sou uma apaixonada por livros em geral, não apenas fotolivros. É um objecto que me fascina. Encanta-me a ideia de poder ter todo um universo dentro de um livro, que se fecha e se activa quando quisermos.

The Afronauts contribuiu para uma borbulha que foi crescendo à volta do livro de fotografia auto-publicado. Até que ponto essa borbulha está hoje inflacionada? A quantidade está a prejudicar a qualidade?
Acho que se está a abusar um pouco e que há trabalhos cujo livro não é o melhor suporte. É uma pena, porque se vêem óptimos trabalhos que se desmoronam porque se decide metê-los num livro. Eu não ganhei dinheiro com The Afronauts. Pelo contrário, perdi. Se soubesse disso antes, tinha poupado algumas árvores. [risos] Mas, por outro lado, creio que dentro do universo da fotografia foi uma experiência interessante. Fez com que muita gente começasse a considerar que trabalhos seus poderiam funcionar da mesma maneira. Mas nem tudo funciona e acho que esta borbulha vai acabar por rebentar. Não durará muito mais a este nível tão intenso.

Quem acompanha o seu trabalho percebe que tem tido actividade intensa. Não está cansada de produzir e ver imagens?
O que mais me cansa são as viagens. Mas o ritmo que tenho é o que ponho em tudo. Aprendo muito a trabalhar, compreendo melhor as coisas.

Diz que pratica uma “fotografia lúdica”. Como define esta prática? É uma boa estratégia para descodificar um mundo regulado?
Não creio que tenham sido os fotógrafos a descobrir o quão regulado e subordinado é o mundo. Mas acredito que pode funcionar como uma pastilhinha para que não levemos as coisas tão a sério. Geralmente, levarmo-nos demasiado a sério não nos serve de nada. O sentido de humor não é só uma ferramenta muito eficaz para resolver problemas, mas também para fazer crítica.

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Elliott Erwitt. Magnum

O que lhe interessa para além da fotografia?
O cinema, muito. A BD, o desenho, a leitura.

Costuma andar com um colar de figas. É supersticiosa?
Só com este símbolo.

É uma protecção contra quem?
Contra os que me querem mal. Não sei se alguém me quer mal, suponho que sim. Vivemos numa sociedade que tem a síndroma do caranguejo — se todos formos medíocres, parece que reina a paz, mas se há alguém que se destaque... e sendo mulher... começam logo a fazer-se associações sobre como conseguiu chegar a determinado lugar. 

Mas fazem-na sentir assim?
Sim, um pouco. Espanha é um país onde até há pouco tempo não se podia dizer que se era artista. Fazendo o que faço, sem nenhuma rede de apoio institucional, abordar o que me dá na telha e sendo mulher... há gente que não gosta. Por isso vivo muito longe de Espanha. Prefiro não estar exposta a este panorama. Por outro lado, gosto de experimentar outras dinâmicas.

Precisa de estar fora.
Fora de Espanha e fora da Europa, que me parece muito previsível. Preciso de uma dose de caos na minha vida, senão aborreço-me.

Quando se leva a sério?
Nas entrevistas [risos]. Tenho de explicar-me. No dia-a-dia vou improvisando, não penso muito, mas quando me perguntam alguma coisa tenho de pensar bem. É que os jornalistas deixam sempre alguma coisa escrita. E se calhar depois tenho de pôr mais figas ao peito. Para já, tenho oito.

O Ípsilon viajou a convite do PHotoEspaña

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